• Nenhum resultado encontrado

concepções de igualdade e dignidade no Pcc

Carolina Barreto Lemos1

O artigo pretende analisar as singulares concepções de igualdade e dignidade no PCC (Primeiro Comando da Capital) demonstrando como se articulam com a estrutura social, a sensibilidade jurídica (GEERTZ, 1983) e as diferentes subjetividades produzidas por essa organização. Os dados utilizados resultaram da análise de etnografias produzidas por diferentes autores sobre o PCC2, de relatos escritos

sobre experiências prisionais3, de vídeos e entrevistas com rappers

da periferia paulista e da transcrição integral do depoimento de Mar- cos Willian Herbas Camacho (Marcola) à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Armas, em 2006. De forma subsidiária, recorri ao material etnográfico produzido até o momento no âmbito da minha pesquisa de doutorado4, a artigos de jornais e outras etno-

grafias produzidas sobre o “mundo do crime”5.

1 A autora é aluna de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, sob orientação do Professor Luís Roberto Cardoso de Oliveira. Formou-se no ano de 2009, na Faculdade de Direito da UFMG, e realizou seu mestrado no ano de 2010, na Faculdade de Filosofia da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

2 Biondi (2006; 2009; 2014), Marques (2009; 2010) e Feltran (2010). 3 Lima (1991); Jocenir (2001) e Rap (2002).

4 Este material resultou da realização de 29 entrevistas com 22 pessoas (12 mulheres e 10 homens) em situação de prisão no Distrito Federal, que cumprem pena no regime fechado, semiaberto ou aberto e de dados co-

Procura-se evidenciar como o fenômeno do surgimento e amplia- ção das atividades do PCC insere-se em um contexto em que formas de tratamento desigual se associam à sistemática desconsideração da dignidade de determinadas parcelas da população brasileira. Nesse quadro, a concepção de igualdade proposta por essa organização pa- rece se diferenciar das duas vigentes em nossa sociedade, nos termos de Cardoso de Oliveira (2009). Não corresponde à concepção de tra- tamento uniforme, nem àquela de tratamento diferenciado para os desiguais – perspectiva sobre a igualdade expressa por Rui Barbosa – mas, sim, à de tratamento de igual. Esta decorre de um proces- so singular de construção de identidades particulares (do crime, do

proceder, da periferia), em que a noção de dignidade figura como

ponto nevrálgico.

1 formação do Pcc

O Primeiro Comando da Capital é uma organização6 que surge na

década de 1990 em São Paulo, após o episódio conhecido como “Mas- sacre do Carandiru”. Nessa ocasião, uma intervenção policial com o fim de interromper uma suposta rebelião instaurada no Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru resultou na morte oficial de 111 detentos7.

O presídio – construído na década de 1920, com a capacidade para 1.200 homens – chegou a abrigar quase 8.000 presos (BIONDI, 2009). Após o massacre, o então diretor foi transferido para o Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, onde perpetuou a política de

6 Uso a palavra “organização” aqui em sentido genérico, não no sentido de “organização criminosa”.

7 A informação de que havia uma rebelião em curso no dia do massacre, bem como o número de mortos, é contestada pelo relato do sobrevivente André du Rap (2002).

maus-tratos aos presos: “Só que o diretor do Carandiru foi para Tau- baté, e lá ele impôs a mesma lei do espancamento. Então, quer dizer, juntou a situação do Carandiru com a de Taubaté, deu o PCC” (MAR- COLA, 2006).

De acordo com a versão consolidada entre os membros sobre seu surgimento (BIONDI, 2009), o Primeiro Comando da Capital teria surgido no dia 31 de agosto de 1993, durante um jogo de futebol en- tre o Comando Caipira e o Primeiro Comando da Capital no Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. A briga entre as duas equipes teria ocasionado a morte de dois integrantes do Comando Caipira e, naquele momento, teria sido firmado um pacto para pro- teção dos presos contra os castigos infligidos pelos funcionários da instituição e por eles mesmos. Foi acordado que a punição de um dos integrantes do time do PCC colocaria fim à discórdia e simbolizaria a reação de todos os membros do outro time. Com isso, evitava-se um ciclo infinito de vinganças entre os presidiários e se estabelecia a união em torno de uma causa comum: evitar os maus-tratos sofridos dentro do sistema penitenciário (BIONDI, 2009).

Em pouco tempo, os oito fundadores8 do Comando começaram

a contar com o apoio dos outros presos. Redigiu-se um Estatuto9

postulando a intenção de lutar contra os abusos sofridos na prisão e regulando a relação entre os presos, para que os maus-tratos não partissem deles mesmos:

8 “Ademar dos Santos (Dafé), Antônio Carlos dos Santos (Bicho Feio), An- tônio Carlos Roberto da Paixão (Paixão), César Augusto Roris da Silva (Cesinha), Isaías Moreira do Nascimento (Isaías Esquisito), José Márcio Felício (Geleião), Misael Aparecido da Silva (Misa) e Wander Eduardo Ferreira (Eduardo Cara Gorda)” (MARQUES, 2009).

9 Disponível em: <http://pt.wikisource.org/wiki/Estatuto_do_PCC>. Acesso em: 09 set. 2016.

11. O Primeiro Comando da Capital PCC fundado no ano de 1993, numa luta descomunal e incansável contra a opressão e as injustiças do Campo de Concentração “anexo” à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, tem como lema absoluto a “Liberdade, Justiça e Paz”. [...] 13. Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esqueci- do na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões10.

Para muitos, a criação do PCC significou o fim do tempo de “guer- ra de todos contra todos” entre os presos (BIONDI, 2009, p. 49). Os estupros, as extorsões e o uso de crack foram coibidos; as mortes e agressões banais, controladas:

Eu não faço apologia ao crime, mas antes de existir o PCC, os presos sofriam muito. [...] E existia muita extorquição, estupro, mortes ba- nais. [...] eu comecei a observar o meio deles trabalhar, e vi que a ca- deia mudou. O xadrez que você tinha que comprar, hoje em dia você não compra mais, estupro não existe mais na cadeia, aquelas mortes banais não existe mais. [...] Para mim só tem feito o bem (SACRA- MENTO, 2003).

A fala reflete uma mudança no código moral dentro da prisão, in- vocando um sentido de autopreservação e de união entre os presos contra um inimigo comum: a instituição penal.

10 Disponível em: <http://pt.wikisource.org/wiki/Estatuto_do_PCC>. Acesso em: 09 set. 2016.

Desconstruindo a hierarquia

O primeiro estatuto do PCC, que data do ano de 1993, em seu item 10, previa que as decisões finais dentro do Comando caberiam aos seus fundadores: “Todo integrante tem que respeitar a ordem e a dis- ciplina do Partido11. Cada um vai receber de acordo com aquilo que

fez por merecer. A opinião de Todos será ouvida e respeitada, mas a decisão final será dos fundadores do Partido”.

Marcos Willian Herbas Camacho (Marcola) – que não participou da fundação do PCC, mas viveu o momento de “crise” de suas lide- ranças – explica que, quando surgiu, o PCC obedecia a uma organi- zação hierarquizada: “era uma estrutura piramidal — tinha uma base e ia fechando até lá em cima” (MARCOLA, 2006).

Ao longo da primeira década após seu surgimento, a liderança exercida pelos fundadores dentro do Partido começou a entrar em atrito com seus próprios ideais, renovando o ciclo de mortes, agres- sões e extorsões na prisão (MARQUES, 2009).

Quando eu retornei [à prisão, ano de 2002] já existia uma organização dentro do sistema penitenciário, só que era uma organização contra o preso, ela tinha fugido totalmente da ideologia que era aquela coi- sa de conscientização, de melhorar... [...] Aí as pessoas ligadas a essa liderança se embriagaram com esse sucesso todo... [...] E acabaram cometendo atrocidades pior do que aquelas que eles vieram para coi- bir. [...] Eram 80 presos, 90 presos assassinados por ano (MARCOLA, 2006).

Seis dos oito fundadores foram assassinados e, os dois últimos,

Cesinha e Geleião, a quem cabiam as decisões finais segundo o Es-

11 “Aqueles que participam da existência do PCC costumam chamá-lo tam- bém de Comando, Partido, Quinze, Família” (BIONDI, 2009, p. 12).

tatuto, foram repudiados do PCC por empreender contra a popula- ção carcerária aquilo que haviam pactuado combater: “a opressão do preso pelo preso” (MARQUES, 2009, p. 47). Marcola foi um dos personagens centrais nessa história, pois “bateu de frente” com as lideranças, recebendo grande apoio da população carcerária.

A partir desse momento, foi operada uma mudança organizacio- nal dentro do Comando. Segundo Marcola, quando as antigas lide- ranças caíram, os demais integrantes queriam que ele assumisse seu lugar. Entretanto, com medo de que outra liderança resultasse em novas disputas de vaidade entre os presos e, consequentemente, em novas mortes, houve o consenso de que seria mais adequado descen- tralizar a estrutura de poder do PCC.

Com a lição que houve por parte deles mesmos, que era uma estru- tura piramidal [...], aí eles resolveram... descentralizou totalmente. [...] Mas eu não tenho uma liderança. A partir do momento que eu distribuí, entenda, a partir do momento que foi dividido... acabou a piramidal. A partir daquele momento que acabou a minha liderança [...] (MARCOLA, 2006).

Com a desconstrução da pirâmide, foi abolida a diferenciação entre fundadores e irmãos e entre irmãos e companheiros12. Adi-

cionava-se, naquele momento, ao lema paz, justiça e liberdade, a

igualdade. A partir de então, “todos os presos de ‘cadeias do PCC’,

sem exceções, seriam efetuações do signo de igual13. Tratava-se, sem

dúvidas, de uma refundação do PCC” (MARQUES, 2009, p. 48).

12 Irmãos é o nome dado aos membros batizados do PCC. Companheiros (antes chamados de primos) são pessoas que vivem em cadeias ou que-

bradas (bairro; local de moradia), que seguem a disciplina do PCC, mas

não são membros batizados (BIONDI, 2009).

2 identidade e alteridade: condição para o exercício da igualdade

Entre irmãos e companheiros, há igualdade; mas essa ideia é con- cretizada por meio de radical diferenciação do outro e da construção local da ideia de self. Para compreender o sentido local da concepção de igualdade do PCC, precisamos compreender a ideia de self vigente nesse grupo. Compreender a construção da autoimagem pelos nati- vos permite ouvir e interpretar adequadamente seu ponto de vista, não enquadrando suas experiências conforme a nossa própria noção de indivíduo (GEERTZ, 1983).

Segundo Biondi (2009), entre os membros do PCC, há um princí- pio de separação entre população carcerária e sociedade; este termo refere-se aos de fora, não apenas fora da prisão, mas fora do crime14.

Em diversos outros relatos de pessoas presas, é possível identificar o mesmo princípio. Em Ramalho (2002), chama atenção a referência à massa como “entidade” do crime, em contraposição a sociedade. De forma semelhante, quando meu interlocutor Eduardo me fala que

o crime no Distrito Federal não é “unido”, estabelece-se, novamen-

te, um corte entre crime e sociedade.

A ideia de que os detentos pertenceriam ao mundo do crime, e não à sociedade, sugere que a criminalidade e a consequente mar- ginalização criada por ela são incorporadas por integrantes da po- pulação prisional e ressignificadas como elementos constitutivos de identidade e alteridade no grupo. Em relação a esse fenômeno, Misse (1999; 2010) ressalta que a “sujeição criminal”, processo que implica tornar-se “bandido”, pressupõe, além de uma trajetória criminável, designações sociais e autorrepresentações específicas.

14 Segundo Biondi (2009, p. 36), crime é um “conceito nativo utilizado não só para fazer referência aos atores que praticam crimes, mas também a uma ética e uma conduta prescrita”.

A apropriação do elemento criminoso como constitutivo da iden- tidade dessas pessoas fica também evidenciada pelo costume de os presos, em unidades prisionais de São Paulo, referirem-se uns aos outros como ladrões, independentemente dos crimes pelos quais são acusados (BIONDI, 2009; 2014; MARQUES, 2009; 2010). No universo nativo, ladrão não se refere àquele que pratica crimes de furto ou roubo, condutas tipificadas pelo Código Penal, mas, sim, a uma de- marcação de identidade de grupo. “Assim, a identidade dos presos é criada a partir da aceitação do estigma que se lhes atribui, na opo- sição ao outro. Essa identidade, bem como filiações a essas organi- zações, pode persistir fora do ambiente carcerário, pois é quando o sujeito vai fazer a afirmação do pertencimento ao ‘crime’” (BIONDI, 2006, p. 340).

Entre os ladrões, são operadas ainda outras diferenciações: entre

companheiros e irmãos e entre aqueles que podem permanecer no convívio e os que moram no seguro15, espaço reservado àqueles pre-

sos que não têm proceder16. Nas instituições prisionais, o proceder

diz respeito a avaliações feitas pelos próprios presos sobre determi- nados aspectos da conduta dos outros. De forma geral, o proceder compreende a apreciação acerca de certas formas de demonstração de respeito (como o modo de se pedir licença para entrar numa cela), de certas condutas (como a vida pregressa à prisão) e atitudes (como o comportamento durante a resolução de litígios). É na combinação desses três elementos – respeito, conduta e atitude – que se constrói

15 O convívio refere-se ao espaço normal de circulação dos presos, onde fica

a grande maioria. Seguro são locais especiais destinados a presos sem pro-

ceder, não aceitos no convívio.

16 Assim são chamadas as “junções singulares de regras e instruções sobre condutas, em contínua transformação, verificadas em diferentes redes sociais” (MARQUES, 2009, p. 24), como as cadeias e as periferias de São Paulo.

o atributo ter proceder, requisito essencial para a permanência no

convívio (MARQUES, 2009).

Entre os detentos considerados sem proceder, inclui-se uma tipologia de presos sem proceder: os condenados por crimes con- siderados inaceitáveis (como estupro, infanticídio e parricídio), os pertencentes a outras facções, os ex-profissionais da justiça estatal, os justiceiros17, os caguetas (delatores) e aqueles que não respeitam

as regras de conduta dentro da cadeia, entre outros. Tanto os presos que não têm proceder como os policiais e funcionários da adminis- tração prisional em geral são chamados coisa.

A separação em convívio e seguro, baseada em princípios seme- lhantes, existe não apenas nos territórios do PCC, mas, igualmente, em diversos outros ambientes prisionais, como as cadeias do Distrito Federal. É mesmo possível afirmar que todo presídio estabelece uma separação entre aqueles que são aceitos no convívio (ou na massa) e aqueles que não o são. Assim, o crime produz regras que, a exem- plo da máxima “não caguetar” (RAMALHO, 2002), ganham validade praticamente universal.

[...] só não vale caguetar. Isso é um grande conceito da massa do cri- me, isso é geral, no mundo todo. Que aí tem diversos criminosos aí, estrangeiros, nós dialogamos, que eles que aprendem logo o portu- guês, nós dialogamos, nós entramos em contato, ele explica, é a mes- ma coisa em geral, isso é um crime em geral, isso aí é um crime, é no mundo todo, não existe, não pode existir cagueta. No tempo do Al Ca- pone cagueta não existia, apesar que desde que existiu Cristo, já existe o cagueta, que traiu Deus por umas moedas, mas nunca foi quisto na massa (RAMALHO, 2002, p. 244 [grifos meus]).

17 “(1) Aquele que comete homicídios em troca de dinheiro. (2) Quem mata

Feita a distinção fundamental entre coisas e ladrões, há, entre os ladrões, os que são irmãos e os que são apenas companheiros. A diferença essencial entre estes e aqueles não se refere à concessão de privilégios aos irmãos, já que, com a inclusão do ideal de igualda- de, repudiou-se qualquer sistema de benefícios tanto entre irmãos quanto entre estes e os companheiros. Ainda que o companheiro deva ser leal e correr lado a lado18 com o PCC, somente os irmãos

têm de ter total comprometimento com os objetivos do Comando (o que pode implicar participar de rebeliões, contribuir para ten- tativas de fuga, assumir postos de responsabilidade etc.). O rapper Dexter (2012), que recebeu inúmeros convites para integrar o PCC, mas sempre declinou, destaca que o Partido não força ninguém a se tornar irmão, mas “se você entrou, você tem que arcar com seus compromissos, né? A partir do momento em que você entra em qual- quer repartição você tem, além de um objetivo, você tem também compromissos, você vai ter que cumprir com esses compromissos.” Quanto ao estatuto da igualdade vigente entre companheiros e ir-

mãos, Biondi (2009, p. 74 [grifo meu]) destaca:

Por mais paradoxal que pareça, existe um estatuto de igualdade entre

primos e irmãos. É em nome dessa igualdade que um irmão repreen-

deu outro que não estava distribuindo doces fornecidos pela institui- ção equitativamente. Ao se deparar com o irmão reservando a maior parte dos doces para a faxina19, disse: “Que fita é essa, irmão? Por

que está separando os doces? Vai mandar de bonde para a rua? Cadê a igualdade? Tem que distribuir igual pra todo mundo, não tem essa não. É de igual!”.

18 Correr lado a lado significa manter uma relação de cooperação desprovi- da de hierarquia (BIONDI, 2009).

19 Os faxinas são responsáveis pela distribuição entre as celas dos alimentos fornecidos pela instituição (BIONDI, 2009).

É interessante observar, ademais, o intenso recurso à gramática do parentesco dentro do PCC. Além da referência ao Comando como

Família e a seus integrantes como irmãos, há outros usos da gramá-

tica familiar. Aqueles que indicam um companheiro para ser batiza- do irmão, tornam-se seu padrinho20 e são responsáveis por avaliar

a capacidade de seus afilhados de “assumirem a responsa de serem

irmãos” (BIONDI, 2014, p. 81). De modo semelhante, as companhei-

ras ou esposas dos irmãos são chamadas de cunhadas. Por meio do estatuto da igualdade do PCC, a família deixa de ser, como na tradi- cional leitura de DaMatta (1997), um corpo que produz privilégios e desigualdades interna e externamente. Nesse caso, o espaço de orga- nização da família não é mais a casa, já que o PCC transcende mesmo os muros da prisão e os limites territoriais. Pode-se dizer que o PCC se organiza não em um determinado local ou território, mas em es- paços de exclusão institucional e/ou social e em torno da noção de

ética do comando21. Dessa forma, a Família, o Comando, ressignifica

espaços de exclusão como espaços de inclusão e exercício da igualda- de, introduzindo aspectos de dignidade onde até então imperava a violência e a morte. Para essa família, a tensão igualdade/desigual- dade aparece não dentro de um contexto de conquista de privilégios, mas por meio da diferenciação radical (ladrão/coisa) necessária para produzir um sentido de identidade de grupo.

3 Posições políticas

Embora não haja lideranças propriamente ditas no PCC, existem dentro e fora da cadeia posições políticas ou responsas, cujas funções

20 Biondi (2014, p. 81) explica que: “Para ser batizado no PCC, é necessária a indicação de dois padrinhos que já sejam integrantes do Comando. Esses padrinhos se tornam responsáveis pela indicação de seus afilhados”. 21 Sobre a ética do comando ou o certo, ver Biondi (2014, cap. 8).

têm o objetivo comum de zelar pela disciplina do comando (BIONDI, 2014). A impessoalidade dominante no exercício dessas funções não permite classificá-las como posições de comando sem deturpar seu sentido; trata-se, na realidade, de “posições políticas protuberantes nas relações entre os próprios presos e desses com a administração prisional” (MARQUES, 2010, p. 316). A maior parte dessas funções já existia antes do surgimento do PCC, mas foi seu estatuto da igualdade que conferiu a elas seu eminente caráter não individualizado.

Dentro da cadeia, os postos de piloto22, faxina e torre23 não cons-

tituem uma forma de promoção ou atributo definitivo dentro da es- trutura prisional ou do Comando, pois são ocupados de forma transi- tória e, por vezes, anônima, o que confere a eles uma “independência em relação a seus ocupantes, isto é, a permanência das posições fren- te às constantes mudanças de quem as ocupa” (BIONDI, 2009, p. 80). A transitoriedade deve-se, em grande parte, às constantes transfe- rências de presos entre cadeias. Um detento que é piloto em uma ca- deia, uma vez transferido, deixa de sê-lo na outra.

Ocupar um cargo de responsa não se assemelha em nada a ocupar um posto de prestígio ou privilégio, mas, acima de tudo, um lugar de muita responsabilidade, já que ele – e, em última instância, todo

irmão – representa, em cada ato e decisão, o próprio PCC. Os res- ponsas tampouco são encarregados de dar ordens ou impor regras.

Mesmo quando são passados salves (ver nota 39), estes não são vistos pelos seus destinatários como ordens provenientes de pessoas hie-

22 Pilotos são acionados para problemas que envolvem grande parte ou toda a população prisional, como fornecimento de comida, água, horário de abertura e fechamento das celas, queixas sobre a revista íntima das visitas, distribuição de remédios, entre outros.

23 “As torres são as posições políticas das quais partem as diretrizes, comu- nicados e recomendações do Partido para todas as suas unidades, os cha- mados salves” (BIONDI, 2009, p. 90).

rarquicamente superiores e que devem ser obrigatoriamente cum- pridas (BIONDI, 2009). Se o Comando é personificado por cada irmão