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Ensaios sobre justiça, reconhecimento e criminalidade

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Academic year: 2021

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Ensaios sobre justiça,

reconhecimento e

criminalidade

Organizadores:

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Reitora

Ângela Maria Paiva Cruz Vice-Reitor José Daniel Diniz Melo

Diretoria Administrativa da EDUFRN Luis Álvaro Sgadari Passeggi (Diretor)

Wilson Fernandes de Araújo Filho (Diretor Adjunto) Judithe da Costa Leite Albuquerque (Secretária) Conselho Editoral

Luis Álvaro Sgadari Passeggi (Presidente) Ana Karla Pessoa Peixoto Bezerra Anna Emanuella Nelson dos S. C. da Rocha Anne Cristine da Silva Dantas

Christianne Medeiros Cavalcante Edna Maria Rangel de Sá Eliane Marinho Soriano Fábio Resende de Araújo Francisco Dutra de Macedo Filho Francisco Wildson Confessor George Dantas de Azevedo Maria Aniolly Queiroz Maia Maria da Conceição F. B. S. Passeggi Maurício Roberto Campelo de Macedo Nedja Suely Fernandes

Paulo Ricardo Porfírio do Nascimento Paulo Roberto Medeiros de Azevedo Regina Simon da Silva

Richardson Naves Leão Rosires Magali Bezerra de Barros Tânia Maria de Araújo Lima Tarcísio Gomes Filho Teodora de Araújo Alves Editoração

Kamyla Alvares (editora)

Alva Medeiros da Costa (supervisora editorial) Natália Melão (colaboradora)

Emily Lima (colaboradora) Revisão

Wildson Confessor (coordenador) Márcio Xavier Simões (revisor) Design Editorial

Michele de Oliveira Mourão Holanda (coordenadora) Márcio Xavier Simões (miolo e capa)

ASSOCIAçãO BRASILEIRA DE ANTROpOLOGIA Coordenador: Antonio Carlos Motta de Lima (UFPE) Vice-Coordenadora: Jane Felipe Beltrão (UFPA) Patrice Schuch (UFRGS)

Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ) Conselho editorial

Andrea Zhouri (UFMG)

Antonio Augusto Arantes Neto(UNICAMP) Carla Costa Teixeira (UnB)

Carlos Guilherme Octaviano Valle (UFRN) Cristiana Bastos (ICS/Universidade de Lisboa) Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP) Fábio Mura (UFPB)

Jorge Eremites de Oliveira (UFPel) Maria Luiza Garnelo Pereira (Fiocruz/AM) María Gabriela Lugones (Córdoba/ Argentina) Maristela de Paula Andrade (UFMA) Mónica Lourdes Franch Gutiérrez (UFPB) Patrícia Melo Sampaio (UFAM) Ruben George Oliven (UFRGS) Wilson Trajano Filho (UnB) Diretoria

Presidente: Antonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ) Vice-Presidente: Jane Felipe Beltrão (UFPA) Secretário Geral: Sergio Ricardo Rodrigues Castilho (UFF) Secretária Adjunta: Paula Mendes Lacerda (UERJ) Tesoureira Geral: Andrea de Souza Lobo (UnB) Tesoureira Adjunta: Patricia Silva Osorio (UFMT) Diretora: Carla Costa Teixeira (UnB)

Diretor: Carlos Guilherme Octaviano do Valle (UFRN) Diretor: Julio Assis Simões (USP)

Diretora: Patrice Schuch (UFRGS)

Associação Brasileira de Antropologia – ABA

Universidade de Brasília – Campus Universitário Darcy Ribeiro – Asa Norte Prédio do ICS – Instituto de Ciências Sociais

Térreo – Sala AT-41/29 – Brasília/DF – CEP: 70910-900 Caixa Postal 04491 – Brasília/DF – CEP: 70904-970

Original submetido à Editora da UFRN, 2015. Coordenadoria de Processos Técnicos

Catalogação da Publicação Na Fonte. Ufrn / Biblioteca Central Zila Mamede Ensaios sobre justiça, reconhecimento e criminalidade [recurso eletrônico] /

Organizadores: Juliana Melo, Daniel Simião, Stephen Baines. – Natal, RN: EDUFRN, 2016.

671 p.: PDF; 2,39 Mb ISBN 978-85-425-0655-6

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Ensaios sobre justiça,

reconhecimento e

criminalidade

Organizadores:

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Sumário

09 | Prefácio | Patrice Schuch

13 | Introdução | Juliana Melo, Daniel Simião, Stephen Baines parte 1 – Desafios da Equidade

21 | As três dimensões do Direito e a (des)consideração pelos delitos

morais em um Juizado Especial Criminal de Natal | Jairo de

Souza Moura

57 | Novas estratégias, mesmos fins: pensando o Sistema Penal

contemporâneo à luz de Foucault | Sophia de Lucena Prado

85 | Concepções de igualdade e dignidade no PCC | Carolina Barreto Lemos

123 | Reflexões sobre o governo da punição em São Paulo: as

contribuições de Golden Gulag para as investigações sobre a gestão prisional no Estado (1993-2014) | Rodolfo Arruda Leite de

Barros

159 | Fissuras do Estado de Direito: o dispositivo militarizado

de segurança e punição no Brasil contemporâneo | Carlos

Henrique Aguiar Serra, Luís Antônio Francisco de Souza, Luana de Carvalho Silva Gusso

parte 2 – Gênero

187 | O amor da “mulher de bandido” | Leonardo Alves dos Santos 219 | A mulher e a carreira criminosa: habilidades e competências

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247 | Normatizando o tabu: análise do projeto de lei Gabriela

Leite no contexto da prostituição brasileira atual | | Gabriela

Wanderley da Nóbrega Farias de Barros, Raul Victor Rodrigues do Nascimento

283 | “A violência não tem gênero”: indignação e vitimização de

homens autores de violência contra a mulher na judicialização das relações sociais | Marco Julián Martínez-Moreno

307 | Agentes estatais e o “trabalho em rede”: uma experiência

institucional de atenção aos conflitos abarcados pela Lei Maria da Penha | Nicholas Moreira Borges de Castro

327 | Marcha das Mulheres Negras 2015: etnografia das lutas por

reconhecimento do Movimento Feminista Negro | Andressa

Lídicy Morais Lima parte 3 – Juventude

367 | “Quando as jovens infracionam”: as relações de gênero por

entre as grades do sistema socioeducativo de internação | Joana

D’arc Teixeira

403 | Da dimensão formal-estrutural à dimensão simbólica:

tensões e contradições nas Varas de Justiça especializada para adolescentes em Querétaro, México | Guadalupe Irene Juárez

Ortiz

433 | Por uma etnografia das transversalidades urbanas: entre o

mundão e os dispositivos de controle | Fábio Mallart, Taniele Rui

457 | Entre o pouco e o quase nada: alternativas colocadas a

um jovem num bairro periférico de Salvador | Luiz Cláudio

Lourenço

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parte 4 – povos Tradicionais

519 | O conceito de aculturação indígena na antropologia e na

esfera jurídica | Gustavo Hamilton de Sousa Menezes

541 | “Tinham aquellas terras como suas”: poder, conflito e

reconhecimento na territorialização dos índios Pitaguary | Eloi

dos Santos Magalhães

571 | Terra, família e trabalho: o projeto camponês de um

ex-escravo e de seus descendentes no pós-abolição | Carlos

Alexandre B. Plínio dos Santos

605 | O que as narrativas indígenas revelam sobre a cidade?

Considerações dos Baré sobre Manaus, AM | Juliana Melo

629 | De “primeros pobladores” a usurpadores: “invenção da

tradição”, invisibilização e criminalização do povo indígena Mapuche na Patagônia Argentina | Sebastián Valverde

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PrEfácio

patrice Schuch

Em um texto originalmente publicado em 1983, intitulado: “Por uma antropologia do direito, no Brasil”, Roberto Kant de Lima (1983) salientou a vocação clássica da Antropologia de explicar as diferenças entre as diversas sociedades, utilizando-se do método comparativo. Categorias, valores e significados, ao invés de “naturais” ou “gerais”, passam a ser percebidos como arbitrários e específicos. No campo dos estudos sobre o que hoje chamamos de “Antropologia do Direito’, isso significou um longo percurso de estudos que, de uma abordagem inicialmente interessada em descrever e classificar diferentes formas de controle social para descobrir suas leis de desenvolvimento, pas-sou a abarcar o próprio questionamento do mito da centralização e da progressiva racionalização das práticas de poder. Especialmente referindo-se ao Brasil, Kant de Lima (1983) proclamou a urgência das etnografias das instituições jurídicas e, sobretudo, anunciou uma agenda de estudos em torno das consequências da implantação de uma ordem jurídica liberal em uma sociedade que se representava hierarquicamente. Para o autor, o estudo do Judiciário poderia ser considerado uma “janela”, a partir da qual era possível compreender e interpretar alguns dos aspectos da sociedade brasileira, aprofun-dando seu conhecimento e ocupando, afinal, um espaço vago.

A coletânea: Ensaios sobre justiça, reconhecimento e

criminali-dade, organizada por Juliana Melo, Daniel Simião e Stephen Baines,

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não deixa dúvidas de que esse espaço não está mais vago e que as análises antropológicas sobre as formas jurídicas de administração de conflitos e suas relações com outras práticas, valores e categorias de produção da justiça continuam sendo um espaço relevante para compreender aspectos fundamentais de nosso país. Na coletânea, instituições consideradas centrais das sociedades ocidentais, como tribunais, delegacias e prisões, deixam de serem imunes à reflexão antropológica e aos olhares críticos e reflexivos de pesquisadores de áreas afins, para compor um repertório criativo de interrogações, em conjunto com a análise de processos socioculturais e políticos referentes aos grupos e populações tradicionalmente abarcadas pela análise antropológica, como povos tradicionais e indígenas.

A riqueza da obra está na reunião de artigos cujas problemáticas colocam-se em intenso diálogo com a tradição de estudos da An-tropologia do Direito no Brasil, o que demonstra o vigor dessa área temática. Destacam-se as análises dos modos de administração de conflitos em espaços variados de produção da justiça, no escopo das interpretações em torno da cultura e da tradição jurídica brasileira. A dimensão dos processos de reconhecimento e as relações entre o direito legal e as ofensas morais são também um eixo importante de debate, perpassando vários artigos. De certo modo transversalmente aos textos do livro estão as dinâmicas de gênero, geração, classe e cor que marcam os processos de distribuição da justiça no Brasil e que, como especificam os organizadores na introdução da coletânea, deli-mitam um conceito de igualdade jurídica cuja base é a desigualdade. Essa contribuição é particularmente importante para o cenário político contemporâneo brasileiro em que, após mais de 30 anos de restauração democrática, as práticas, modos de funcionamen-to e sentidos da “democracia” ainda permanecem como desafios interpretativos às pesquisadoras e aos pesquisadores. Sobretudo,

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impõem engajamentos críticos em um cenário heterogêneo de perspectivas e valores no qual as categorias de “justiça”, “reconhe-cimento” e “criminalidade” – que dão nome à coletânea – se en-contram em permanente disputa. Ao focalizar prioritariamente os significados evocados pelos atores sociais na singularidade de suas inserções socioculturais, assim como na compreensão da dinâmi-ca de suas prátidinâmi-cas e relacionamentos, perspectivas normalmente menos audíveis são trazidas à tona, como por exemplo, aquelas dos jovens de periferia, das mulheres presas, dos povos indígenas, dos moradores de comunidades etc. Outros processos, como aqueles referentes à militarização da segurança, à seletividade do sistema penal e à conformação de reformas judiciais, são analisados à luz de suas dimensões históricas, políticas e socioculturais, revelando o seu caráter arbitrário e, sobretudo, político.

É neste sentido que considero que as análises que compõem esta coletânea, ao se debruçarem na compreensão de universos tão diver-sos – Juizados Especiais Criminais, sistema socioeducativo, Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), Primeiro Comando da Capital (PCC), sistema penal, Rede de Proteção à Mulher, Marcha das Mulheres Ne-gras, processos de reconhecimento, dinâmicas de criminalização de povos tradicionais, entre outros – contribuem não apenas para a vitalidade do campo acadêmico da Antropologia do Direito, mas, sobremaneira, na expansão do sentido político desse campo e de suas relações com outros espaços de conhecimento.

É válido mencionar nesta direção que os artigos aqui presentes provêm não apenas da área da Antropologia, mas também de par-cerias disciplinares no âmbito nacional e internacional que essa área necessariamente tem que realizar para potencializar suas ferramen-tas analíticas e se pôr à prova, no diálogo nem sempre fácil com ou-tras áreas de conhecimento. Sem dúvida, o trabalho de

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constitui-ção de redes de relações e de debates mostra, nesta coletânea, a sua potência, ao afirmar a contrariedade às fáceis homogeneizações tão costumeiras no universo jurídico. Extrapolando limites disciplina-res, a obra abre novas “janelas” não apenas para compreender e in-terpretar a sociedade brasileira, mas também para renovar – e desa-fiar – a própria Antropologia.

REFERÊNCIA

KANT DE LIMA, Roberto. Por uma Antropologia do Direito no Brasil. In: FALCÃO, Joaquim. Pesquisa Científica e Direito. Recife: Massangana, 1983. p. 89-116.

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iNTroDUÇÃo

Ensaios sobre justiça, reconhecimento e criminalidade reúne

textos essenciais e amplia o campo de estudo sobre Antropologia do Direito, particularmente no contexto brasileiro. A partir de diferen-tes focos e perspectivas teóricas, os artigos e ensaios aqui reunidos buscam, ainda que nas entrelinhas, pensar sobre as relações entre “fatos sociais” e “leis” e apreender os sentidos de justiça a partir das categorias acionadas pelos próprios atores contextualmente. Evi-denciam como os fatos jurídicos devem ser interpretados como re-presentações acionadas em contextos específicos e para atores parti-culares, tal como propõe Geertz (1998).

Os artigos reunidos, em grande medida, privilegiam o trabalho de campo e, entre outras questões, apresentam dados que permitem pensar sobre temas relevantes em termos sociais e desafiantes aca-demicamente. Além de reflexões críticas acerca de procedimentos, normativas legais e práticas sociais, o foco se direciona para dispo-sitivos disciplinares de poder e saber, seja no âmbito da produção do conhecimento, das prisões, dos centros de aplicação de medidas socioeducativas ou na configuração de políticas de segurança públi-ca, apresentando importantes questões para reflexão. No panorama traçado, revelam as ambiguidades, as tensões e as contradições que marcam os processos de distribuição de justiça no Brasil e delimitam um conceito de igualdade jurídica cuja base é a desigualdade.

Os textos dessa coletânea dão formas concretas a um debate extre-mamente atual. Como sabemos, questões concernentes à violência, à criminalidade e ao encarceramento massivo, por exemplo, estão

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longe de se esgotar e demandam fôlego. Além de povoarem o senso comum e o cotidiano contemporâneo, novas conexões exigem estra-tégias teóricas renovadas e maior investimento etnográfico. Pode-se citar, por exemplo, o debate sobre a relação entre encarceramento, juventude e carreira criminal; entre mercado de “drogas” e encarce-ramento feminino; além de outras, quase infinitas, possibilidades de conexão e reflexão.

Por outro lado, os dados aqui reunidos permitem ir além da identificação dos processos de criminalização de determinados gru-pos. Afinal, mesmo que a grande maioria dos estudos apresentados mostre a situação de desigualdade de determinados grupos (como jovens favelados, presidiárias e presidiários, mulheres de presidi-ários, entre outros) e evidenciem processos de sujeição criminal, é possível perceber como esse é apenas um lado de uma realidade muito mais complexa.

Ressalte-se, aliás, que as relações entre justiça/desigualdade/pu-nição/sofrimento são reafirmadas em diversos ensaios, assim como também evidenciadas práticas e visões estereotipadas sobre certos lugares (como a própria cidade, a favela ou a prisão), bem como são delimitados “grupos morais” que merecem maior “controle” por parte dos sistemas judiciário e de segurança pública, tais como: “as mulheres de bandido”, “os usuários de crack”, “os/as adolescente em conflito com a lei”, “os/as presidiários(as)”, “os membros do Primeiro Comando da Capital – PCC”, “as prostitutas” e, até mes-mo, “os índios que não são mais índios” por viverem na cidade e/ ou desafiarem os estereótipos sobre o que é “ser índio”. A questão da desigualdade e da vulnerabilidade, portanto, continua sendo uma marca inexorável em alguns contextos (como favelas, cracolândias, prisões e centros socioeducativos para adolescentes em conflito com a lei). No entanto, essa não é a única chave explicativa.

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Não há uma relação direta entre criminalidade e desigualdade social, cabendo compreender como os atores dessas práticas acio-nam outros sentidos para suas ações, entendendo a criminalidade também como parte de um projeto e resultado de escolhas de vida. De modo geral, a criminalidade envolve teias de afetividade, bem como exige habilidades específicas, além de propor uma ênfase em certas emoções (como adrenalina e endorfina) e sentimentos (como vingança, indignação, reparação). Em certos contextos, parece ha-ver uma certa “positivação” dos atos criminais, que passam a ser interpretados como uma espécie de resposta a uma conjuntura de desigualdade e estão relacionados a um desejo de superação dessa relação. Nesse processo, velhas práticas podem ganhar novas sig-nificações e ser interpretadas como metáforas através do qual de-terminados grupos/indivíduos pensam a justiça, acionam certos conceitos (como dignidade e respeito) e dão sentido às suas “car-reiras”, visões e ações no mundo.

Um grupo de artigos se propõe a uma análise de procedimentos através do quais os conflitos são administrados formalmente, seja no âmbito das Varas Especializadas de Justiça ou nos Juizados Especiais Criminais. Além de abordarem a ideia de mediação e conciliação, tratam dos desafios da equidade em termos mais amplos, buscando apreender os significados de justiça para os autores envolvidos nes-sas ações. Evidenciam a relação entre a dimensão legal e moral dos direitos, tal como propõe Cardoso de Oliveira (2011), bem como per-mitem pensar no diálogo (e nas limitações) entre a Antropologia e o Direito. De maneira interessante, buscam entender como conceitos antropológicos são analisados e acionados por operadores do Direito em situações específicas de administração de conflitos.

Se a maioria dos textos se restringe à análise da relação entre indivíduos e entre indivíduos e Estado no contexto formal da

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ad-ministração de conflitos e em ambientes predominantemente ur-banos, a perspectiva torna-se mais abrangente quando se trata também de processos de demanda de direitos coletivos realizados por grupos etnicamente diferenciados que, entre outros aspectos, requerem o reconhecimento de suas terras, memória, identidade e visões de mundo.

Diante desse panorama mais amplo, o livro está organizado em torno de quatro eixos principais, quais sejam: (1) Desafios da Equida-de; (2) Gênero; (3) Juventude e (4) Povos Tradicionais. Os textos po-dem ser lidos de acordo com essa orpo-dem e tendo em vista as conexões propostas, mas outras possibilidades de combinação são possíveis. Ressalte-se, inclusive, que o livro faz parte do Projeto Procad Uni-versidade de Brasília – UNB/ UniUni-versidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, denominado Conhecimentos tradicionais, direitos

e novas tecnologias: interfaces da Antropologia contemporânea, e

foi viabilizado, em grande medida, por recursos provenientes do CNPq. Entre outros aspectos, trata-se, portanto, da materialização de alguns dos resultados do Projeto que, efetivamente, fortaleceu os vínculos acadêmicos entre os Programas de Pós-Graduação da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN e da UniUni-versidade de Brasília/UNB, particularmente.

Ressalte-se, finalmente, que a coletânea resulta da aplicação dos seguintes princípios e orientações na seleção dos textos, quais se-jam: (1) As propostas são oriundas de diferentes perspectivas e va-lorizam uma visão multidisciplinar. Embora a grande maioria seja de antropólogos, há contribuições de pesquisadores do campo da Sociologia, da Ciência Política e do Direito, em particular. Há, in-clusive, autores que atuam tanto no campo da Antropologia como no Direito, possuindo essa dupla formação; (2) Além de diferentes perspectivas multidisciplinares, estamos propondo um panorama

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que é amplo e resultado da pesquisa de uma extensa rede de colabo-radores provenientes de diferentes instituições e contextos. Assim, há pesquisadores provenientes de diversas universidades brasileiras, como UNB, UFRN, USP, UFBA, UNESP, UFF, de institutos de pesqui-sa, como o INCT/InEAC, e de instituições de fora do Brasil, como do CIESAS-DF/México e da UFBA/Argentina (por essa razão, inclusive, dois textos estão escritos em espanhol). A intenção foi estabelecer o diálogo entre diferentes instituições e ao mesmo tempo identifi-car realidades diferenciadas e pensar nas relações de continuidade e descontinuidade entre elas; (3) Também optamos por valorizar a participação de pesquisadores em diferentes estágios de formação. Nesse sentido, ainda que a maior parte dos artigos seja de pesquisa-dores que estão na Pós-Graduação e/ou já sejam docentes, fizemos um esforço para valorizar a participação de alunos da graduação, como forma de incentivar a atividade de pesquisa e publicação desde esse primeiro momento. Dentro das possibilidades possíveis e das li-mitações existentes, buscamos estabelecer uma relação de simetria; (4) Esclarecemos ainda que que o livro resulta de diferentes situações de trocas acadêmicas (seja no âmbito de sala de aula, do trabalho de orientação, da participação em congressos e grupos de trabalhos em eventos acadêmicos como, por exemplo, a RBA, a REA, o ENADIR, a ANPOCS, Jornadas em Antropologia Jurídica da UFRN; além das reu-niões do LAGERI e do CAJU/UNB, realizadas na UNB).

Esperamos, por fim, que esta coletânea seja uma entre muitas e contribua para a consolidação de uma ampla rede de pesquisadores engajados e interessados em pensar na relação entre justiça, reco-nhecimento e criminalidade. Para os futuros leitores, esperamos que a leitura seja proveitosa e instigante; que seja de capaz de contribuir para uma análise mais densa da realidade social e das questões que se apresentam – que, por sua própria complexidade, demandam conti-nuidade e novos desdobramentos.

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REFERÊNCIAS

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e insulto moral. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos

confli-tos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.

GEERTZ, Clifford C. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva compara-tiva. O Saber Local: novos ensaios em Antropologia interpretacompara-tiva. Petrópo-lis: Vozes, 1998.

KANT DE LIMA, Roberto. Ensaios de Antropologia e de Direito: acesso à justiça e processos institucionais de administração de conflitos e produção da verdade jurídica em uma perspectiva comparada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma con-tribuição analítica sobre a categoria bandido. São Paulo: Lua Nova, 2010. p. 15-38. v. 79.

RIFIOTIS, Theophilos. Nos campos da violência: diferença e positividade.

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Parte 1 – Desafios da

Equidade

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As três dimensões do Direito e a (des)

consideração pelos delitos morais em um

Juizado Especial criminal de Natal

Jairo de Souza Moura1

breve introdução

Os Juizados Especiais surgem historicamente como uma respos-ta aos anseios de várias classes de intelectuais no que diz respeito aos problemas de gestão do Judiciário. Em parte, porque os proces-sos brasileiros são extremamente burocratizados, em parte porque o próprio Judiciário encontra dificuldades técnicas e orçamentárias para dar conta da demanda processual, que, por vezes, estipula em anos a resposta a qualquer litígio.

A Lei 9.099/95, que criou os juizados especiais cíveis e criminais, trouxe algumas formas consideradas “novas” de resolução de con-flitos: a conciliação e a transação, junto com a mediação, são alter-nativas que buscam salientar o diálogo entre as partes, no ímpeto de resguardar as suas respectivas características. Não raramente, essas três figuras causam confusão por serem demasiadamente parecidas, mas há diferenças fundamentais entre elas.

1 Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRN. Bacharel em Direito e em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Explicando em poucas palavras, a conciliação é um acordo entre duas partes, com a presença e a atuação de um conciliador, que dá fim ao conflito. A transação é uma proposta de prestação alternativa do Ministério Público para a parte acusada, que, se cumprida, dá fim ao processo. Já a mediação se assemelha bastante à conciliação, mas difere quanto ao grau de influência que o terceiro, agora chamado mediador, tem sobre as partes que tentam dialogar.

Nesse contexto de medidas alternativas nos juizados especiais, há duas grandes correntes de interpretação (VIANNA et al., 2008): a primeira delas encara a criação dos Juizados como uma possibilida-de possibilida-de possibilida-democratização do acesso à Justiça das camadas mais pobres, enquanto a outra enxerga uma flexibilização de direitos adquiridos quando equipara partes assimétricas no diálogo.

A primeira corrente salienta que a própria facilidade de acessar o Judiciário permite que as camadas que se beneficiam desse aces-so tenham uma oportunidade ético-pedagógica para a formação de uma nova cultura cívica. Para os entusiastas dessa hipótese, a pró-pria expansão do direito às grandes massas tem por consequência um fortalecimento da democracia (VIANNA et al., 2008, p. 151). É um pensamento que está de acordo com a abertura ao diálogo nos Juizados Especiais: se as partes trabalham juntas para uma melhor solução de seu conflito, ambas saem ganhando na agregação e na solidarização social.

A segunda corrente não chega a enfrentar os pontos positivos da primeira, mas aponta para as possibilidades de apropriação pelo Estado dos ideais dos Juizados, resultando em uma negação de di-reitos recém-conquistados às camadas menos favorecidas – econô-mica, social ou culturalmente –, além de um maior controle por parte do Estado nas demandas criminais. No Brasil, o agravante dessa corrente é que os movimentos de ampliação da participação

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popular vêm prioritariamente da intelligentsia, geralmente asso-ciações de magistrados e outros ramos do Direito, o que pode apon-tar para a simples manutenção de poder de certas categorias sobre as novas formas processuais.

A partir dessa discussão mais ampla, meu objeto de pesquisa era saber se, na prática, era possível verificar a prevalência de uma ou de outra corrente. Para tanto, realizei uma pesquisa de campo junto a um Juizado Especial Criminal – JECRIM de Natal, vendo em primei-ra mão as audiências preliminares, nas quais as soluções alternativas são negociadas para pôr fim ao litígio ou, em caso de negociação frus-trada, para segui-lo até a fase de sentença.

Ao analisar as audiências, alguns dados sensíveis foram surgindo e, neste artigo, estão organizados mais ou menos de forma temática nos tópicos posteriores. Nesses tópicos, tento traçar linhas mais ge-rais a partir de casos concretos, em estruturas mais ou menos habi-tuais para lidar com os fatos em questão.

Da parte da prestação judiciária estatal, a audiência preliminar conta com uma conciliadora específica, uma promotora de justiça e um defensor público. A juíza não participa, via de regra, das audiên-cias, e os técnicos administrativos cuidam da parte operacional, mas fora do ambiente conciliatório. O JECRIM se localiza na Zona Sul da cidade, reconhecidamente a mais próspera em termos econômicos. Embora não pareça ser determinante no que se refere aos tipos de crimes mais recorrentes, é possível traçar um direcionamento no que se refere às pessoas, sejam físicas ou jurídicas.

Obviamente, há várias “Zonas Sul” em Natal. Ao mesmo tem-po em que as grandes atrações turísticas da cidade convivem com o parque hoteleiro da Via Costeira, há regiões mais pobres que sofrem com os mesmos problemas de qualquer aglomeração urbana desor-denada. Na mesma medida em que há empresários participando das

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audiências, há desempregados que são autuados por fazerem peque-nos “bicos” sem a devida licença da prefeitura. Em outras palavras, a localização é um dado importante, mas não determinante para o tipo de indivíduo que frequenta o JECRIM.

os delitos morais e as dimensões de análise do Direito

Os autores mais estudados nos cursos de Direito tendem a reco-nhecer ao menos duas de suas dimensões: a do Direito enquanto or-denamento jurídico, ou seja, um sistema de regras e procedimentos com fins próprios, que regem o Estado e a vida em sociedade; e a dos interesses, uma dimensão subjetiva que justifica o acesso ao Poder Judiciário pelo particular – uma compensação pecuniária, uma con-denação moral, uma punição etc.

Por outro lado, autores da Antropologia, aqui representados por Geertz (2004), tendem a ter uma visão mais ampla sobre o fenômeno jurídico. Para Geertz, o Direito é um saber local e, como tal, é parte de um sistema simbólico que permeia a própria cultura, refletindo e principalmente constituindo a vida social (GEERTZ, 2004, p. 329). Estudar diferentes sistemas jurídicos, portanto, seria um exercício de tradução cultural, não muito diferente do que é feito com as dife-rentes categorias do estudo antropológico. Essas sensibilidades jurí-dicas, como ele as definiu, usam – ao mesmo tempo em que consti-tuem – fatores sociais para diferenciar o discurso normal do anormal (GEERTZ, 2004, p. 337), que podem ser aqui entendidos como o nos-so padrão legal ou ilegal.

Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2011), nesse sentido, inova ao adicionar àquelas duas primeiras uma terceira dimensão do Direito, qual seja, a dimensão moral ou do reconhecimento. É com essa di-mensão que analisa os dados que surgiram enquanto estudava os es-paços de pequenas causas dos Estados Unidos. Muitas vezes, as partes

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se recusavam a fazer acordos porque se sentiam lesionadas em um âmbito moral que as leis e os seus intérpretes raras vezes conseguiam entender. Nas suas palavras (2010, p. 461):

Enquanto as duas primeiras dimensões são diretamente enfrentadas pelo Judiciário (por exemplo, desrespeito a direitos positivos e pre-juízos causados como consequência), a última remete a um direito de cidadania, associado a concepções de dignidade e de igualdade no mundo cívico, e não encontra respaldo específico em nossos tribu-nais. O reconhecimento, ou o direito de ser tratado com respeito e consideração, é o aspecto que melhor expressaria a dimensão moral dos direitos, e as demandas a ele associadas traduzem (grande) in-satisfação com a qualidade do elo ou relação entre as partes, vivida como uma imposição do agressor e sofrida como um ato de desonra ou de humilhação. Nos casos em que a reparação a esse tipo de ofensa é suficientemente embutida nas deliberações judiciais sobre as outras duas dimensões temáticas dos conflitos (direitos e interesses), os tri-bunais promovem um desfecho satisfatório para as respectivas cau-sas. Entretanto, nas causas em que este tipo de ofensa – que tenho caracterizado como insulto moral – ganha precedência ou certa auto-nomia nos processos não há reparação adequada e o desfecho judicial é frequentemente insatisfatório do ponto de vista das partes.

Com base nessa ideia, podemos analisar a atuação da conciliadora, principalmente, e entender por que nem sempre é possível chegar a um acordo conciliatório que satisfaça as partes. Em alguns casos, não importa o que se ofereça, se prestações materiais ou imateriais, o ofendido não se contentará e buscará a condenação penal como for-ma de punição ou de vingança. Podemos entender como ufor-ma ten-tativa de impingir sofrimento para compensar a vítima em sua di-mensão moral, a fim de pagar pela agressão que sofreu na sua esfera de reconhecimento, por não ter sido tratado com a dignidade que se esperava do relacionamento ou do contexto situacional.

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Também nesse sentido, Axel Honneth (2003, p. 157-158), anali-sando Hegel e Mead, dentre outros autores, chega a três formas de reconhecimento recíproco: dedicação emotiva (relações amorosas e amizades), reconhecimento jurídico e assentimento solidário. Se-gundo Honneth, essas três formas são melhor encontradas em esfe-ras mais ou menos delimitadas da vida humana. Para Hegel, famí-lia, Estado e sociedade civil. Para Mead, relações primárias, relações jurídicas e esfera do trabalho. Mesmo usando conceitos diferentes, a ideia é de que, a depender do tipo de relacionamento, é esperado determinado tipo de reconhecimento.

Para ilustrar, segue o quadro sinóptico elaborado por Honneth:

Modos de reconhecimento Dedicação emotiva Respeito cognitivo Estima social Dimensões da personalidade Natureza carencial e afetiva Imputabilidade moral Capacidades e propriedades Formas de reconhecimento Relações primárias (amor, amizade) Relações jurídi-cas (direito) Comunidade de valores (solidarieda-de)

Potencial evolutivo Generalização,

materialização

Individuali-zação, iguali-zação

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Formas de desrespeito Maus-tratos e violação Privação de direitos e exclusão Degradação e ofensa Componentes ameaçados da personalidade Integridade física Integridade social “Honra”, dignidade Fonte: Honneth (2003)

No entanto, essas esferas não são tão definidas quanto o trabalho dos autores pode fazer parecer. A própria vivência no JECRIM mos-trou casos em que as três esferas estavam interconectadas, a ponto de expectativas e padrões de comportamento de determinadas rela-ções interpessoais se misturarem: não raramente, colegas de traba-lho relatam mágoas pessoais como feridas de amizade; ou vizinhos reclamam o reconhecimento do Estado em vez de aproximação nas relações primárias. Há, aparentemente, um fluxo entre as três esferas de reconhecimento e as demandas podem dizer respeito a todas elas.

Em alguns casos, a dimensão moral dos direitos pode até mes-mo passar despercebida pelos representantes institucionais. Mesmes-mo que não seja o caso, ela precisa ser necessariamente empobrecida para “caber no direito”. O próprio Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2010; 2011) tem trabalhos que apontam para a dificuldade de reduzir demandas morais a termo e, pior ainda, para a possibilidade de des-considerar as demandas morais porque não se adequam aos modelos padronizados do Estado para administrar conflitos.

Diferentes sentidos de justiça e formas de satisfazê-los

Na busca pela “justiça”, vários atores que buscam no Judiciário algum tipo de reparação demonstraram noções diferentes do que se-ria um tratamento “justo”. Essas diferenças sobre o que sese-ria justo

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obter como compensação pela ofensa podem advir de duas análises distintas, mas complementares. A primeira delas é mais filosófica e diz respeito ao processo de transformação da vingança privada em persecução estatal. Ricoeur (2008) define esse processo como a pas-sagem da simples indignação ao estabelecimento de um terceiro dis-tante que possa dirimir conflitos e reparar injustiças. Se entendemos esse terceiro distante como o Estado de dominação (Herrschaft) de Weber ou a sua versão através do Judiciário, a justiça emana do poder estatal e as diferentes versões surgem dos diversos outros conheci-mentos não estatais.

A segunda análise é mais antropológica, tendo por base Geertz (2004) e sua Antropologia simbólica, nas já mencionadas sensibili-dades jurídicas. Para o autor, diferentes culturas exibem diferentes configurações sobre o que seria justo e quais os mecanismos de re-paração das injustiças. Tomando essa análise, poderíamos estendê--la não só para diferentes culturas estanques, mas também para as diferenças socioculturais dentro de um mesmo agrupamento social. A diferença de justiça, nesse caso, surge da pretensão estatal pela hegemonia diante de outras configurações de justiça, que ainda têm fortes laços com a vingança e o sofrimento como forma de expiação.

Esse confronto entre o que é estatal, hegemônico e singular – bases representativas do Direito ocidental – e o que é não estatal, marcado pela pluralidade de opiniões e medidas de justiça, pode desaguar em processos judiciais nos quais a máquina estatal serve como uma ame-aça, somente acionada depois que a composição entre as partes falha. Foram casos assim que Daniel Schroeter Simião (2011) encontrou em Timor Leste, nos quais, por exemplo, agressores sexuais só foram le-vados à justiça quando negociações de casamento entre agressor e vítima terminavam sem sucesso.

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Das duas análises, vê-se que a diferença está entre a abstração le-gal do Estado-Punidor e das medidas compensatórias que a popula-ção em geral espera desse Estado. Apesar de parecer uma distinpopula-ção clara, ela é meramente operacional, e pude perceber isso durante um fato atípico. Durante o período de campo, a promotora que regular-mente atua no JECRIM passou a figurar como vítima de uma deman-da judicial: uma senhora causara deman-danos em seu carro enquanto este estava estacionado no espaço do JECRIM.

As duas combinaram que a promotora faria o orçamento de re-paração dos danos e repassaria os valores para a senhora, que arca-ria com os custos. No entanto, a promotora se surpreendeu quando tentou contatar a senhora pelo telefone e pelo endereço eletrônico fornecidos e não obteve respostas. Com isso, a promotora pediu o ajuizamento de uma ação por crime de dano (Art. 163 do Código Pe-nal) e tentou intimar judicialmente a senhora com os contatos que já tinha. No dia da audiência preliminar, a senhora não compareceu e a falta da formalidade de intimação por oficial de justiça deu azo para a parte não comparecer sem maiores prejuízos para si.

Foi nesse momento que a promotora, mesmo acostumada a interpretar e aplicar sensos de justiça de acordo com os procedimentos estatais, demonstrou a indignação de um “leigo”, como tantos outros casos que pude observar. Enquanto preparava um ofício para que a empresa de telefonia fornecesse os dados cadastrais para encontrar o endereço correto da senhora, a promotora conversava visivelmente irritada com a conciliadora e uma segunda promotora, que precisou atuar no caso porque a primeira não poderia figurar em causa própria: “A gente encontra [a senhora], nem que bote um outdoor na Roberto Freire [avenida de grande circulação da cidade de Natal]. Agora é questão de honra encontrar essa infeliz!”

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A evocação à honra foi o ápice da indignação e permite interpretar a reação furiosa da promotora em consonância com o que se percebe de outros jurisdicionados. Enquanto ela exerce o papel de represen-tante do Estado, sua função é aplicar aquele ideal de justiça às partes, mantendo-se calma e com ares de imparcialidade. Por outro lado, enquanto agredida, mesmo que somente no seu patrimônio, pode deixar fluir toda a frustração de não ser recompensada, principal-mente quando os métodos estatais de persecução falham.

Se interpretarmos como Cardoso de Oliveira (2011), no momento em que a senhora desapareceu e se negou a cumprir o que havia pro-metido, aquela demanda que era predominantemente material pas-sou a se constituir em delito moral. Esse delito se intensificou por-que, mesmo com o ofício enviado à empresa de telefonia, a segunda audiência marcada também foi frustrada, pois a senhora ainda não havia sido intimada pessoalmente.

O delito moral, assim, se configura quando a ofensa é sentida como ato de desconsideração. Foi dessa forma com um suposto caso de traição no ambiente de trabalho: espalhou-se o boato, entre os em-pregados, de que a esposa do chefe da repartição tinha um caso com um dos funcionários, confirmado nos boatos pelo suposto amante. A esposa ingressou com ação por difamação contra o suposto amante e mais três empregados acusados de espalhar o boato, e o seu marido estava visivelmente irritado, tomando até mesmo o protagonismo da fala que deveria ser da ofendida.

Mesmo após várias propostas da Conciliadora e da Promotora e de conselhos de seus próprios advogados, o marido da vítima de di-famação não aceitou transigir com o suposto amante, pois ele con-tinuava a negar ter confirmado o boato – aceitou o acordo com os outros três empregados, que foram demitidos antes do processo ser formalizado. É mera especulação, mas é possível imaginar uma

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situ-ação de acordo, caso o suposto amante, reconhecendo sua “culpa” pelo boato, pedisse desculpas formalmente ao casal afetado. Talvez reconhecer o dano causado fosse condição para fluir o diálogo.

O suposto amante se defendia de duas acusações: a de que tinha um caso com a esposa do chefe e a de que espalhou a notícia, verda-deira ou não, sobre a traição. O marido disse querer chegar à “ver-dade dos fatos” e parecia se contentar com a confissão de culpa pelo boato, pelo menos. Contudo, o suposto amante estava irredutível e não cogitava arrogar para si qualquer das acusações, o que bloqueava totalmente qualquer tipo de aproximação de discursos.

Outro caso nesse sentido foi o de duas vizinhas que aumenta-ram o grau de ofensa e animosidade gradativamente, até que houve ameaças de morte por parte de uma delas. Antes e durante a audiên-cia preliminar, trocaram ameaças e ofensas em tons cada vez mais agressivos. Não só não se abriram para um possível reconhecimento de culpa pelas ofensas tomadas pela outra parte, como continuaram a (re)afirmá-las, adicionando novas outras. Na falta de uma repara-ção moral, sequer houve espaço para diálogo com as duas.

Um terceiro exemplo vem de um caso entre colegas maçons: du-rante uma festa, um dos maçons agrediu fisicamente o seu colega. Na audiência preliminar, em vez de convergirem para um diálogo, os dois interagiam com a conciliadora no sentido de convencê-la de sua conduta ilibada para causar estranhamento ao fato de que estavam envolvidos em um processo criminal.

O colega agressor não procurou negar a agressão, mas sim tentar justificá-la por uma agressão moral anterior perpetrada pela esposa do colega agredido, ao impedi-lo de tocar sua música durante a festa da loja. Já o colega agredido tentava de todas as formas criar uma representação maligna e de dupla personalidade do agressor, que, segundo ele, se transformava quando bêbado.

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Esses casos mostram que o sucesso da conciliadora em estabe-lecer um espaço para as partes exporem frustrações e expectativas depende da própria disposição das partes em dialogar, segundo no-ções próprias de perdão e de ofensa. Quando há disposição, o diálogo flui sem maiores problemas e quase sempre se encontra uma solu-ção. Quando não há, a conciliadora precisa tentar atingir um ponto para estabelecer o diálogo sobre o que estão dispostos a conceder. Às vezes, parece simplesmente impossível atingi-lo e o fator tempo se torna um problema: na pauta, cada audiência tem vinte minutos de agenda.

Na prática, as audiências variam de duração conforme o caso se desenrola. Naqueles mais simples, houve casos em que o acordo sur-giu antes mesmo do tempo da agenda, enquanto outros extrapola-ram bem mais do que vinte minutos e, mesmo assim, não se chegou a uma solução. Quando perguntada sobre o assunto, a conciliadora me respondeu o seguinte:

Essa duração média de vinte minutos, em regra, em geral, atende bem à finalidade da audiência. Entretanto, existem algumas que a gente vê a necessidade de estender mais um pouco, e quando a gente vê que há possibilidade de acordo, a gente faz isso sem uma preocupação maior, porque a gente sabe que nas outras a gente vai equilibrar. Quando acontece isso e a gente atrasa a outra audiência, a gente já procura pe-dir desculpa e esclarecer que a audiência anterior atrasou em virtude de uma demora, porque a gente sabe que a parte está lá fora ansiosa, esperando. Mas a gente sabe que a gente não pode deixar passar uma oportunidade de acordo, uma possibilidade de resolução de um pro-blema em razão do relógio. Como em geral o tempo é adequado – a gente utiliza até bem menos tempo – a gente consegue equilibrar isso direitinho, faz a compensação, né?

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Por mais que o tempo não seja seguido à risca, há certa pressão para que o atraso não atrapalhe as outras audiências. Por vezes, ad-vogados ou partes abriram a porta da sala de audiência para saber se suas audiências ainda aconteceriam, dado o atraso relativo à hora em pauta. Enquanto me encontrava no corredor, um advogado pergun-tou, com relativa fúria, se sua audiência ainda aconteceria, alegando que já era a segunda vez que uma audiência de seus clientes atrasara naquele JECRIM e que considerava isso um desrespeito.

A pauta cheia e o número elevado de demandas, como as que vi-mos acima, apontam para o que Rifiotis (2008) chamou de judicia-rização dos conflitos. Para ele, o direito é um importante elemento simbólico de construção da legitimidade e, por isso, muitas lutas so-ciais são travadas no seu âmbito. O autor enxerga dois movimentos na judiciarização dessas relações: “a expansão do Judiciário e as es-tratégias de reconhecimento focadas no Judiciário” (p. 229).

O primeiro aspecto corresponde exatamente à expansão do Ju-diciário nos juizados especiais. Sendo mais fácil ajuizar demandas, houve um aumento quantitativo de causas a julgar, mas não houve o devido acompanhamento para saber se também houve um aumento qualitativo da prestação judiciária. Por isso, não é possível dizer que essa judiciarização das relações sociais é equivalente ao acesso à Jus-tiça, à democratização e à cidadania.

O segundo aspecto é que, segundo o autor, “ainda que [a judi-ciarização] faça parte da dinâmica das sociedades democráticas, tal processo pode, inclusive, limitar ou ameaçar a cidadania e a demo-cracia, transferindo e canalizando no e para o Estado as lutas sociais” (RIFIOTIS, 2008, p. 232). Isso porque o Direito opera em uma lógica própria que não pode ser adotada por movimentos sociais sem a de-vida reflexão prévia.

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Apesar de uma abordagem mais condizente com a terceira di-mensão orientar a levar em consideração os pequenos insultos como algo relevante, é impossível deixar de notar, do ponto de vista prá-tico, que seria impossível dar conta de todas as pequenas interações que formam uma espiral de conflito (RUBIN; PRUITT; KIM, 1994). Pior ainda se todas essas pequenas interações configurarem crimes, quando poderiam ser resolvidos com reparações cíveis.

As espirais podem ser uma reação de retaliação, quando o agre-dido responde ao agressor, ou de defesa, quando o mecanismo de reação por medo do agredido parece uma ameaça ao agressor, que aumenta a escala da agressão. Em geral, os pequenos insultos morais não chamam a atenção do legislador penal, reservado a casos em que a sociedade como um todo teria algo a perder com a impunidade das condutas.

Essa espiral também pode nos ajudar a pensar por que os jurisdi-cionados esperam uma reação tão violenta do Estado. Obviamente, a imagem geral de um Estado violento, representado pela truculência da força policial e das precárias condições prisionais, contribui para a expectativa de respostas cruéis até mesmo para pequenos delitos. Mesmo assim, parece haver algo mais, algo que justifique um motivo anterior a essa busca por vingança.

A partir das observações, percebi que há um grau de frustração nas partes. Em um primeiro momento, porque a resposta do Judi-ciário vem depois dos fatos que deram origem à demanda, mesmo com a relativa velocidade dos juizados. Em um segundo momento, principalmente nas relações de continuidade, porque a busca pelo Judiciário se deu após esgotarem as outras vias particulares: conver-sas, discussões, ameaças, brigas, agressões etc.

Levando em consideração a relação Indivíduo-Estado, talvez seja interessante que o Estado não consiga estar presente em todas as

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es-feras, pois seria o panóptico orwelliano em sua plenitude. Por outro lado, diante dessa impossibilidade, resta-nos pensar sobre a estraté-gia política de selecionar o que pode ou não estar sob o jugo do Esta-do e o jogo entre o que está dentro e fora Esta-do círculo que “merece” a atenção estatal por vezes esconde interesses escusos.

Nas audiências, se há uma espiral de conflitos aparente, refleti-da nos pequenos insultos que levemente se intensificam, há também uma espiral de conflitos antecessora. Essa segunda espiral de confli-tos, quase invisível para o Judiciário, parece explicar a animosidade das partes, aparentemente sem motivos. Se a persecução penal foi a última chance de ver a sua demanda por reconhecimento atendida, não seria por menos esperar que a resposta fosse proporcional em violência à agressão sentida.

A imagem da cadeia como inferno no qual seriam jogados todos os agressores parece ser adequada para representar o sentimento de vingança. Contudo, essa busca implacável pela reparação violenta se afasta dos objetivos do JECRIM, seja a resolução ou a administração dos conflitos. Na verdade, espelha bem melhor a justiça inquisitorial que Kant de Lima descreve em suas obras (1991; 1999; 2010).

Esse tipo de justiça exige uma reparação com forte viés religioso, segundo a qual o “pecado” só pode ser pago através de dor e sofri-mento. Isso torna o trabalho dos representantes institucionais das novas formas de resolução de conflito mais complicado. Em parte, porque grande parte de sua atuação será no sentido de desconstruir esse sentido de punição. Alcançada essa meta, entra a busca por uma resposta que seja igualmente satisfatória para o demandante e que preserve o mínimo de relacionamento entre as partes em conflito.

Tudo isso, é claro, acontece quando há duas partes distintas na demanda. Em outros casos, a demanda se dá entre o autor do fato e o Ministério Público, representante da sociedade para os objetivos processuais. Vejamos o andamento desses casos.

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A transação penal

A transação penal surgiu no Brasil com a própria Lei 9.099/95, na qual está prevista no Art. 76, nos seguintes termos:

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação pe-nal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Mi-nistério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

A redação causa confusão quando fala em “aplicação imediata de pena”, pois dá a entender que a pena poderia ser aplicada de maneira preliminar, sem o devido julgamento processual, ferindo princípios constitucionais e garantias dos indivíduos. Além da falta do devido processo legal para a restrição de direitos, também não seriam res-peitados o contraditório e a ampla defesa, o princípio da presunção de inocência2 e o da fundamentação das decisões judiciais3, pois o

Mi-nistério Público, na figura do Promotor de Justiça, não precisa expli-car como, nem por que chegou àquela pena.

2 Preceito constitucional que garante o status de inocente ao acusado até que o devido processo legal seja concluído. Está presente no Art. 5º, LVII, da Constituição Federal, com a seguinte redação: “ninguém será conside-rado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 3 Preceito constitucional que garante a fundamentação de todos os atos

ju-diciais. Serve para que o indivíduo entenda e ataque, se possível, os ar-gumentos de quem o julga. Está presente no Art. 93, IX, com a seguinte redação: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão pú-blicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, po-dendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” [grifo nosso].

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Outra discussão é sobre a natureza jurídica4 da sentença do juiz na

transação penal. Ora, se o Ministério Público decide quais são todos os pressupostos da transação e o acusado os aceita, comprometendo--se a cumpri-los, o que restaria ao juiz? Assim, entendecomprometendo--se que a sen-tença é meramente homologatória, isto é, apenas dá fé ao acordado (GRINOVER et al., 2000). Nesse sentido, o juiz só poderá reformar o acordo se as condições oferecidas pelo Ministério Público forem de-sarrazoadas (Art. 76, § 3º).

A outra questão se resolve com um formalismo processual: a tran-sação penal é oferecida na audiência preliminar de conciliação, ou seja, antes do processo formalmente instaurado. Assim, a transação penal é uma figura estranha na qual o acusado abre mão de preceitos constitucionais do processo penal para que o Ministério Público não promova o processo formalizado. Ao aceitar a transação, o acusado assina uma espécie de “confissão de culpa” e acata a “punição” que o Promotor de Justiça julgar necessária como resposta pedagógica ao ato criminoso.

Se o acusado deve cumprir certas medidas que se assemelham às punitivas, que vantagens, então, teria em aceitá-la? Uma das princi-pais vantagens está prevista no próprio instituto (Art. 76, § 6º):

A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

Em outras palavras, o acusado que aceitar a proposta de transação penal não será formalmente considerado culpado, para os efeitos da

4 No Direito, “natureza jurídica” é a ontologia da norma. Ela determina que tipo de efeitos a norma trará e aponta por quais caminhos é possível confirmá-la ou revogá-la.

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lei penal. Dentre esses efeitos, além da reparação dos danos causados e da perda dos produtos do crime (Art. 91, I e II, do Código Penal), estão a perda de cargo, função pública ou mandado eletivo, a incapa-cidade para o exercício do poder familiar e a inabilitação para dirigir veículo, a depender dos casos (Art. 92, I a III, do Código Penal). Tam-bém perderá os direitos políticos enquanto durar o cumprimento da pena (Art. 15, III, da Constituição Federal), e será incluído na lista de antecedentes criminais, que duram até o final do processo de reabili-tação previsto no Art. 93 do Código Penal.

Um trabalho muito interessante sobre a transação penal foi desen-volvido em JECRIMs do Rio de Janeiro por Vera Ribeiro de Almeida (2014). No estudo, ela falou sobre incongruências dos procedimentos realizados em diferentes cidades, o poder (auto)atribuído ao conci-liador e ao Promotor de Justiça, bem como sobre as arbitrariedades na aplicação e na justificação das penas na oferta da transação penal.

No meu trabalho, também observei determinada tabulação de pe-nas, aumentadas ou diminuídas de acordo com ilações subjetivas da promotora. Para prestações pecuniárias, ela estabeleceu o padrão de pagamento de um salário mínimo ou de 30 horas de serviço comu-nitário em um mês, que foi seguido pela conciliadora mesmo quando a promotora não estava presente. O caso envolveu o crime de dirigir sem a Carteira Nacional de Habilitação e, excepcionalmente, houve posterior redução do valor, pois o acusado alegou que isso prejudi-caria o pagamento de pensões alimentícias que devia às mães de seus filhos.

Por outro lado, vi o padrão ser aplicado em dobro em duas oca-siões: na primeira, um ex-patrão cabeleireiro agrediu fisicamente a funcionária, que revelou aos clientes que o patrão era portador do vírus HIV, justificando o aumento do valor por ser uma lesão corporal contra mulher; na segunda, quando a polícia local estourou uma casa

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de bingos clandestinos e os presentes no momento foram autuados a partir da contravenção de participação em jogo de azar (Art. 50, § 2º, do Decreto-Lei 3.688/41).

O caso dos bingos é interessante para ver como funciona a lógica da punição da transação penal. Pelo Art. 50, § 2º, a pena é apenas de multa, pois considera-se que o vício em jogos de azar “merece” uma pena menor do que quem explora o vício alheio. Mesmo assim, a oferta de transação penal oferecida no JECRIM era o dobro do padrão para outros crimes que preveem pena em abstrato maior do que a que está em jogo aqui.

Na verdade, a conciliadora e a promotora revelaram que aqueles acusados não eram jogadores e estavam, isso sim, trabalhando para o funcionamento dos bingos. Como o inquérito policial não provou cabalmente que prestavam serviços – com exceção de um policial militar que fazia a segurança do local quando não estava de plantão –, todos os acusados foram autuados como jogadores para que não ficassem sem punição, pois a mera presença no local já configurava a contravenção.

Foram quatro acusados cujas audiências acompanhei relacionados ao estouro dos bingos: o policial militar e três “jogadores”. O policial, por não restar dúvidas sobre a sua participação, teve uma postura de admissão do comportamento, permaneceu cabisbaixo durante a audiência, não contestou fato algum e aceitou de bom grado a tran-sação penal, questionando tão somente se seria possível parcelar o valor total.

Os outros três tiveram uma postura mais agressiva: alegaram ser apenas visitantes, reagiram com indignação e reclamaram da injusti-ça de estarem ali, enquanto os “verdadeiros criminosos”, donos dos bingos, estavam soltos. Sobre estarem no bingo, deram motivos dife-rentes: um trabalhava com empréstimos e conversava com clientes;

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outro falou que era mesmo viciado em jogos de azar; o terceiro disse que só estava tomando umas cervejas, mas não jogava.

A indignação comum dos três “jogadores” era seguida por uma afirmação padrão da promotora, mais ou menos como segue: “Se o senhor me der informações sobre os donos, nós também pegamos eles”. Todos negaram conhecer os verdadeiros donos e um deles, o que alegou fazer empréstimos no local, relatou ter visto um deles “de longe, numa tremenda Hilux [picape de alto luxo] com cinco mulhe-res, rasgando o dinheiro dos viciados na beira da praia”.

Mais do que um relato fidedigno, interpreto essa passagem como uma metáfora do sentimento de impunidade, como se os ricos não fossem processados pela Justiça no Brasil. Ou como se ele, que se considera pobre, sofresse perseguição seletiva, por ser um “peixe pe-queno”. Esse mesmo “jogador”, que antes só entrara naquela noite para oferecer serviços de empréstimo, revelou no decorrer da audi-ência: “Eu já me livrei umas duas vezes indo lá... até tive a curiosi-dade de jogar algumas vezes, mas, agora, com isso aqui [o processo penal], só se legalizarem...”.

Ao final do dia, perguntei à promotora se havia mais gente relacio-nada com o estouro dos bingos. Ela me contou que, somente naquele JECRIM, havia mais vinte contraventores, dentre funcionários com atuação comprovada e “jogadores”, sobre os quais não havia certeza sobre participação efetiva na condução dos bingos, ou se eram so-mente jogadores e viciados, como alguns alegavam em sua defesa.

Principalmente nos processos em que houve transação penal, foi possível perceber o que Almeida (2014) chamou de imposição do agente estatal. Seja porque o Ministério Público é o titular da ação pe-nal, seja porque ele se apresenta na audiência como a “única” autori-dade constituída, o fato é que os particulares poucas vezes puderam influir no resultado final.

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Diferente da pesquisa de Almeida, no entanto, a promotora não seguiu características sociofinanceiras ou culturais para decidir so-bre as penas aplicadas (ALMEIDA, 2014, p. 195). Além daquelas pa-dronizadas, como vimos, o critério econômico só foi usado para di-minuir o valor total em um caso extremo, sendo o salário-mínimo oferecido para todos os processos que eu acompanhei. Nos casos em que o valor foi dobrado, também foi dobrada a oferta de serviços co-munitários para 60 horas em dois meses.

Por outro lado, os efeitos retributivos das medidas foram levados em consideração (ALMEIDA, 2014, p. 206). Assim como vimos no caso da violência contra a mulher e dos colaboradores com o jogo ile-gal, a promotora usou critérios morais pessoais para majorar a pena ofertada, como forma de punir com maior rigor os comportamentos julgados mais reprováveis. Parecia que dar a estes casos o mesmo tra-tamento dos outros seria oferecer um “benefício” ao acusado.

Essa natureza impositiva da transação penal vai contra os princí-pios compositivos do JECRIM e o recurso poderia ser usado de uma forma mais específica em determinados casos. A própria promotora fez isso, quando sugeriu que um dentista acusado de calúnia contra um segurança de casa noturna cumprisse as horas de serviço comu-nitário em um local de crianças carentes que necessitavam de serviço dentário.

Na maioria dos casos, sequer perguntaram aos acusados que pro-fissão exerciam e, talvez por isso, quase todos optaram pelo paga-mento. Quando falavam sobre a prestação de serviço comunitário, sempre falavam em escolas, hospitais ou postos de saúde como locais de atuação, mas nunca detalhavam que tipo de serviço poderia ser prestado. Quando tentavam dar mais informações, parecia sempre que o serviço seria relacionado à limpeza do local.

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A hipótese com que trabalho é que a promotora não tem a for-mação específica para o ambiente compositivo e esses pequenos de-talhes passam despercebidos aos seus olhos. Também é possível que ela realmente entenda que simplesmente oferecer a transação penal seja suficiente para cumprir o seu papel. Essa segunda hipótese tem alguns pontos a seu favor.

Em diversas audiências, principalmente quando a promotora ti-tular entrou de férias e foi “substituída” por uma promotora de outra comarca, distante cerca de 100 km de Natal, a oferta fora deixada por escrito. O Supremo Tribunal Federal se manifestou no sentido de que a transação penal em audiência sem a presença do Ministério Público é nula5. Mesmo assim, para todos os efeitos, aquela proposta por

es-crito é considerada “presença” do Ministério Público.

Se tal explicação é suficiente para o formalismo jurídico, não ajuda na consecução dos propósitos do JECRIM. Nas ausências da promo-tora, a conciliadora tomou as vezes de negociadora, mesmo que não pudessem transigir sem a autorização expressa da promotora “pre-sente”. A negociação era somente no sentido de convencer o acusado de que a transação era a melhor saída para ele.

Nesses casos de transação, a terceira dimensão dos direitos é quase esquecida e discute-se apenas se o acusado aceitará ou não a dádiva oferecida pelo Ministério Público, “para o seu próprio bem”. Quando não aceita, o acusado está assumindo, por sua conta e risco, todos os malefícios que um processo penal formalizado pode oferecer – e, ao final, este é o argumento máximo para coagi-lo a aceitar as benesses de finalizar o rito ali mesmo.

5 Recurso Extraordinário 468.161-7/GO. Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pagina-dor.jsp?docTP=AC&docID=368532>. Acesso em: 31 out. 2014.

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Somente quando o acusado está firmemente convicto de sua ino-cência é que ele despreza a transação. Foi assim com o suposto aman-te, que se negou veementemente a aceitar o acordo, pois seria uma assunção de culpa. Para ele, por mais que transigir fosse meramente um ato extintivo do processo, havia um forte sentimento de injustiça em tomar para si algo que poderia ser provado em contrário diante do juiz.

Também foi o caso com um corretor de imóveis estagiário que foi acusado de exercício irregular da profissão, pois supostamente esta-va de plantão em um imóvel e não poderia trabalhar ali por não ter o registro no CRECI (Art. 47 da Lei de Contravenções Penais). Na ver-dade, seu nome constava apenas em uma lista cedida pela imobiliária de plantonistas para aquele dia, mas ele nunca comparecera ao local – era “ausente”, na descrição dos autos – e sequer se lembrava de ter ido ao local, em dia diferente.

Esse foi o único caso em que o acusado foi aconselhado direta-mente pelo Defensor Público a não aceitar a transação penal. Segun-do ele, porque não havia nada nos autos que comprovasse algum ato ilícito por parte do estagiário e sua inocência seria provada na audi-ência de instrução e julgamento, sem a necessidade de assumir ônus para encerrar o processo naquela audiência.

É por todo o exposto que a transação penal no Brasil, por mais que tenha inspiração na plea bargaining do common law, segue cami-nhos opostos. Segundo Ferreira (2004, p. 34-38), a plea bargaining também é uma audiência pré-processual, entre o acusado e o seu de-fensor (defense attorney) e o promotor (prosecutor). No entanto, o

prosecutor deixa de oferecer a acusação mediante confissão do

acu-sado ou sua colaboração para a descoberta de coautores.

Quando recusada ou se o acusado permanece em silêncio, a plea

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es-tatais ao acusado, e o prosecutor terá de provar a materialidade do delito e a autoria do acusado. Apesar de ser semelhante à nossa tran-sação penal, destaque-se que aqui não há necessidade de colaboração por parte do acusado, nem mesmo de sua confissão. Por mais que o aceite da transação possa indicar uma confissão implícita, o acordo não precisa desse pressuposto para acontecer.

A grande diferença, portanto, reside nas consequências do aceite/ não aceite da transação penal e da plea bargaining. Enquanto nesta há a presunção de inocência e a verdade processual se constrói dia-logicamente com o prosecutor, na transação penal admite-se existir uma verdade condenatória e a aplicação imediata da pena é um “be-nefício”, que serve para que ele não sinta os efeitos da condenação criminal formal (ALMEIDA, 2014, p. 122).

As drogas, o risco e o estigma

Um dos casos de aplicação da transação penal está na Lei de Dro-gas (Lei 11.343/2006), quando o acusado é considerado usuário (Art. 28) – se considerado traficante (Art. 33), a pena é maior e excede o teto de competência do JECRIM. Esses casos relacionados às drogas são bem específicos em suas características e destoam dos outros que tramitam no JECRIM, ainda que também sejam considerados de me-nor potencial ofensivo.

Em primeiro lugar, porque a representação social de usuários de drogas já envolve certo estigma, para usar a categoria de Goffman (1975, p. 6):

O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atribu-to profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que es-tigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto

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Em outras palavras, embora usuários de drogas tenham entre si este traço como formador de uma identidade, talvez, no ambiente do Judiciário, onde são processados e julgados como criminosos, tal traço indubitavelmente é um atributo depreciativo. Nesse sentido, os acusados precisam demonstrar uma intenção de “largar o vício”. Na classificação de Goffman (1975, p. 7), é o tipo de estigma decorrente das “culpas de caráter individual”,

[...] percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não natu-rais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, pri-são, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical.

Para esses casos, há uma oferta de transação penal padrão por par-te da promotora: o comparecimento a palestras do Núcleo de Orien-tação e Acompanhamento aos Usuários e Dependentes Químicos de Natal-NOADE, que extingue o processo. A informação padrão é que se trata de um programa da Justiça do Estado que visa à conscienti-zação de usuários de drogas sobre os malefícios do uso continuado de substâncias ilícitas.

Essas palestras são conduzidas por um grupo interdisciplinar que inclui, dentre outros profissionais, psicólogos e assistentes sociais. São estes os profissionais que decidem o tempo de cumprimento da obrigação, que, segundo relatos da conciliadora e da promotora, cos-tumam variar de dois a cinco meses. Há ainda a possibilidade de o acusado comparecer às palestras e voltar ao JECRIM para substituí--las por outra medida, o que não parece ocorrer comumente.

A oferta é quase sempre aceita porque parece mais “benéfica” dentre as alternativas – pagamento em dinheiro ou serviços comu-nitários. As medidas estão previstas no Art. 28 da Lei de Drogas: I –

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advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; e III – medida educativa de comparecimento a progra-ma ou curso educativo. O pagamento em dinheiro não está nas hipó-teses, mas é revertido a instituições filantrópicas e não tem caráter de multa, então é entendido como prestação de serviços à comunidade.

Tanto a conciliadora, quanto a promotora e o defensor público, parecem crer que o procedimento é suficiente para “abandonar o ví-cio” – ou, no mínimo, que é uma boa alternativa para quem assim o desejar. Há sempre a pergunta “o/a senhor/a senhora continua fa-zendo uso da substância?” (sem revelar o nome da droga que causou o processo), ao que os atores do Judiciário revelam alívio ou apreen-são, dependendo da resposta do acusado.

Quando um deles revelou ter “largado o vício” em crack, a con-ciliadora se mostrou curiosa em saber se houve algum tipo de auxílio religioso, tendendo a maximizar o que os réus narraram como pe-quenas contribuições. O caso de um acusado com posse de crack é bastante revelador, neste sentido:

Conciliadora: O senhor teve alguma ajuda religiosa?

Acusado: Eu fui umas vezes na igreja da minha mãe, mas passei mais tempo mesmo no sítio do meu pai. Eu fui pra lá e fiquei lá um tempo, aí parei de usar “pedra”.

Conciliadora [para a promotora]: A gente percebe que quando tem religião fica mais fácil mesmo.

Nas audiências, os demais acusados, com exceção de um caso de comprimidos Ecstasy, foram flagrados com maconha. Mesmo sem tantos dados, é possível perceber uma “tabela de risco”, a depender da droga: havia certa apreensão com a maconha, mas houve como-ção com o crack. A “tabela” condiz com a representacomo-ção social de “perigo”, o que gerou desconfiança na veracidade da afirmação de

Referências

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