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1 EDUCAÇÃO INCLUSIVA E ATENDIMENTO EDUCACIONAL

1.4 CONCEPÇÕES E DISPUTAS DO MODELO CLÍNICO E SOCIAL SOBRE

A Educação Especial ainda é vista como um espaço fragmentado e especializado da educação. Em determinados casos é marcada pela inserção médico- pedagógica (RAMPELOTTO, 2004), com práticas pedagógicas ancoradas em modelos clínicos com uma proposta de normalização. Essa prática de normalização ou de tornar todos iguais tem como objetivo intervir de maneira terapêutica no tratamento e cuidado do corpo e da mente. Skliar (1999, p. 17), salienta que isso é “consequência de uma tradição histórica de controle do [outro] sujeito deficiente por expertos e aficionados na Medicina.”

A partir da compreensão de Skliar e Souza (2000, p. 269) pode-se perceber que a Educação Especial ainda preserva “para si um olhar iluminista sobre a identidade de seus sujeitos.” Dessa forma, ela constitui algo “perfeito/imperfeito, normalidade/anormalidade, de racionalidade/irracionalidade e de completude/ incompletude como elementos centrais na produção e práticas pedagógicas.” (SKLIAR; SOUZA, 2000, p. 269). Os pesquisadores supramencionados enfatizam que na Educação Especial, “os sujeitos [outros] são homogeneizados e naturalizados, valendo-se de representações sobre aquilo que está faltando em seus corpos, em suas mentes e em sua linguagem.” (SKLIAR; SOUZA, 2000, p. 269).

Estudos apresentados por Rampelotto (2004) revelam que entre os séculos XVIII e XIX, surgiu na França o caso inusitado de um jovem com hábitos inteiramente selvagens e sem o uso da comunicação oral. Esse menino, conhecido como Aveyron, quando chegou em Paris, no Instituto que atendia surdos-mudos13, muitos cientistas e pesquisadores curiosos o observaram por um determinado tempo, pois o estado em

13 “Surdo-mudo” provavelmente é a mais antiga e incorreta denominação atribuída ao surdo. Até esse

período o termo “surdo-mudo” era muito utilizado. A partir da oficialização da língua e de inúmeras discussões e conquistas, a comunidade surda conseguiu impor que o termo correto é “surdo”.

que se encontrava e o seu comportamento faziam com que o achassem demasiadamente intrigante e diferente dos demais seres humanos.

O médico Philippe Pinel iniciou seus estudos comparando o comportamento desse menino, que não era aceitável pela sociedade, com o comportamento dos outros meninos da mesma faixa etária. Concluiu que o menino com comportamento tão diferente não poderia ter nenhum tipo de recuperação e também que não conseguiria ser educado. Um aluno desse médico Pinel, porém, muito aplicado na/pela Medicina, interessou-se pelo comportamento do menino e iniciou algumas atividades na intenção de educá-lo e reintegrá-lo na sociedade. Jean Marc-Gaspard Itard (1774-1838) apresentou um diagnóstico do jovem como alguém que, na verdade, teve privação de convivência social, mas que não possui nenhum tipo de anormalidade em relação à aprendizagem.

A partir do ano de 1854, a história da educação de pessoas com deficiência no Brasil foi marcada por iniciativas de caráter muito privado, especialmente questões quanto ao atendimento médico/clínico especializado. Nesse período da história brasileira também surgiram instituições com atendimento tradicional com vistas ao atendimento assistencialista e segregacionista às pessoas com deficiência.

Estudos realizados por Sassaki (2002), no início da década de 1970, revelam que um movimento sobre a integração social passou a ser alvo de intensas discussões, pois tratava da intenção de inserir o deficiente na sociedade. Mas foi somente a partir da década de 1980 que, de um modo geral, com o amplo surgimento de discussões sobre o tema, a prática de integrar a pessoa com deficiência realmente se efetivou em alguns setores, mais especificamente nas Instituições de Ensino.

A partir do caso apresentado por Rampelotto (2004), percebe-se que a ênfase no atendimento ao menino Aveyron era na perspectiva da sua “anormalidade”. Mesmo que pudesse não apresentar uma deficiência visível, ele era visto como diferente ou como um sujeito incapaz. Essa incapacidade ou perspectiva de não ser igual aos outros fez com que estudos fossem propostos para compreender esse seu comportamento tão diferente, considerado e estereotipado pela sociedade. Ao relacionar o caso com os sujeitos com deficiência da atualidade, percebe-se que isso ainda acontece, pois muitos pesquisadores olham apenas para a deficiência, pensando em uma incapacidade ou em uma desvantagem, limitando um olhar clínico/médico/biomédico da deficiência (BATISTA, 2006).

Esse Modelo Clínico/Médico/Biomédico compreende a deficiência como um fenômeno biológico, cuja concepção trata a deficiência como uma lesão no corpo adquirida por meio de uma doença (DINIZ, 2003). Assim, a deficiência é percebida como uma incapacidade física, uma doença que leva esses indivíduos a possuírem uma série de desvantagens se comparados aos sujeitos sem deficiência.

De acordo com França (2013), o principal registro que cristaliza de fato a condição dos conceitos clínicos encontra-se no documento denominado Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e desvantagens (CIDID). Esse documento foi elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no ano de 1976, com o objetivo principal de classificar as condições de saúde derivadas de algum tipo de doença. Ainda conforme o autor, a CIDID oferece suas próprias concepções de deficiência, incapacidade e desvantagem. Tais conceitos, a saber, estão assim descritos por França (2013, p. 60-61):

Deficiência (Impairment): qualquer perda ou anormalidade, temporária ou permanente de uma estrutura física ou função fisiológica, psicológica ou anatômica. Nessa perspectiva, a deficiência é, portanto, algo que está completamente no domínio do corpo. Incapacidade (Disability): restrição ou total incapacidade de desempenhar uma atividade de maneira considerada normal ou dentro de um limite assim também considerado para um ser humano. A incapacidade é consequência de uma deficiência. Desvantagem (Handicap): limitação ou impedimento do desempenho dos papéis sociais tidos como normais para o indivíduo. É o resultado de uma deficiência ou incapacidade, e depende diretamente das atribuições culturais e sociais esperadas para um determinado indivíduo de acordo com seu perfil social.

Atualmente, esse documento foi substituído pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Seu intuito é classificar as condições de saúde dos indivíduos (OMS, 2002), considerando-os a partir de outro olhar, e atribuir às deficiências um olhar diferenciado, dentro de um novo modelo a ser tratado – o Modelo Social. A deficiência, portanto, sai desse olhar clínico e passa a ser percebida como limitação ou situação social que o sujeito tem devido a sua situação social ou à sua deficiência. A CIF envolve as questões biomédica, psicológica e social, de maneira que todas sejam analisadas de forma interdisciplinar no sujeito (DINIZ, 2007). O Modelo Social surgiu nos anos 1960, no Reino Unido, “e provocou reviravolta nos modelos tradicionais de compreensão da deficiência ao retirar do indivíduo a origem da desigualdade, experimentada pelos deficientes, e devolvê-la à sociedade.” (BAMPI; GUILHEM; ALVES, 2010, p. 6). O modelo é considerado “uma corrente

teórica e política que se contrapõe ao modelo médico dominante.” (BAMPI; GUILHEM; ALVES, 2010, p. 6).

O sociólogo Hunt (1966), ao argumentar sobre as limitações sociais para além das questões médicas, elaborou a primeira publicação com o auxílio de pessoas com deficiência. Na Inglaterra, Hunt também foi o pioneiro em articulações políticas em prol de um movimento a favor das pessoas com deficiência (BARNES; MENCER, 1996). A partir dessas interlocuções surgiu, em 1976, a Union of the Physically Imapired

Against Segregation (UPIAS), uma entidade de natureza social, responsável por uma

nova concepção de deficiência.

Conforme a UPIAS, o Modelo Social é um instrumento essencialmente político para a interpretação da realidade com fins de transformação social. França (2013), em seus estudos, ressalta que o Modelo Social desconsidera qualquer tipo de relação entre deficiência e saúde. O autor ressalta que “a deficiência independe da lesão física, mesmo sendo condição necessária para a manifestação da deficiência.” (FRANÇA, 2012, p. 63). Com base nessas afirmações pode-se assegurar, a partir de Vygotsky (2002, p. 153), que “a cultura pode criar condições para desfazer as diferenças de capacidades. O desenvolvimento cultural desfaz ou, falando com mais exatidão, torna histórico o caráter natural da insuficiência orgânica.”

Nessa mesma perspectiva, estudos realizados por Werneck (2004, p. 16-20) mostram algumas proposições referentes às principais diferenças descritas entre o modelo clínico e social sobre a deficiência.

A partir de tais proposições apresentadas por Werneck (2004) é possível compreender o Modelo Social como um assunto ainda a ser estudado pela comunidade escolar, alterando significativamente a compreensão da maioria dos sujeitos sobre a deficiência e diversidade. Percebe-se, porém, que este não apenas concebe o ser humano de forma isolada ou individualizada para se inserir num padrão de normalidade, exigida por uma sociedade exclusivista, como também alguém em processo de relação com o outro e consigo mesmo, participando de um grupo social, constituindo-se a partir de relações com o outro (PAULA, 2004).

Quadro 2. Modelo médico/clínico14 x Modelo social da deficiência

Modelo Médico/Clínico Modelo Social

A deficiência quando analisada sob o modelo médico se torna

A deficiência quando analisada sob o modelo social se torna

Um incidente isolado, individual e, no máximo, familiar.

Um tema de direitos humanos e de desenvolvimento inclusivo (conceito em

construção que estuda as relações entre pobreza/ desenvolvimento e deficiência).

Um caso médico e funcional a ser tratado, curado ou resolvido.

Um assunto de interesse público universal. Uma interferência capaz de prejudicar a

eficácia do trabalho dos professores das escolas de ensino regular.

Um valor agregado ao trabalho

desenvolvido pelos professores das escolas de ensino regular.

Algo que padece as pessoas, impedindo-as de sobreviver e de se manter como adultas por outros meios além do assistencialismo governamental ou não governamental.

Um fator a mais para que uma pessoa adulta conquiste autonomia e se torne um sujeito de todo e qualquer direito, participando ativamente das decisões de sua comunidade e nação. Uma “doença” que infelizmente atinge certas

pessoas.

Um tema imprescindível na avaliação do impacto social dos programas para reduzir pobreza, garantir educação básica e bons níveis de empregabilidade para a população. Um número a ser considerado em programas

de reabilitação e/ou campanhas de prevenção de deficiência.

Uma estratégia para se lidar com qualquer forma de diversidade: regional, linguística, cultural, entre outras.

Um fardo oneroso para a sociedade. Um pré-requisito para se pensar em políticas públicas inclusivas e formar novas coalizões interssetoriais.

Uma condição “anômala” que não se entrelaça com etnia, gênero ou religião.

Uma condição humana que se entrelaça com qualquer outra.

Um tema abordado pela mídia com ênfase apenas nos dias de celebrações relacionadas à deficiência.

Um tema que faz parte do dia a dia das redações, mobilizando a mídia como o fazem economia, cultura, esporte ou lazer.

Um fator que necessariamente prejudica o desenvolvimento de uma comunidade porque a deficiência reduz a capacidade produtiva das pessoas, impedindo-as de obter ganhos de qualquer natureza.

Um fator que só prejudica o desenvolvimento de uma comunidade se as pessoas com deficiência continuarem invisíveis, sem acesso a bens e serviços disponíveis.

Um assunto de política especial, raramente contemplado nas políticas públicas gerais.

Uma prioridade na abordagem dos problemas enfrentados pelas populações de risco. Fonte: Werneck (2004, p. 18).

Izquierdo (2006) relata em seus estudos que, de acordo o Warnock Report, o diagnóstico que até então preconizava uma visão médica foi muito contestado e substituído por um modelo que valorizasse a questão educacional como forma de integrar a criança com deficiência nas escolas do ensino regular, bem como na sociedade. O que se percebe, porém, a partir do Warnock Report e da Declaração de Salamanca, é que inicia um novo período de transição na educação. Assim, a

14 As terminologias aqui usadas em relação ao modelo médico/clínico estão baseadas a partir dos

integração que até então vinha sendo defendida não era suficiente para que o sujeito tivesse acesso e direito à permanência na escola.

Depois de aproximadamente 25 anos da publicação do Relatório Warnock, houve uma extensa e variada produção acadêmica em relação à questão da Educação Inclusiva em termos de significado, aplicação e desafios futuros, tanto em relação à política como à prática. Paula (2004) relata que o legado mais desastroso do Relatório trata do conceito de inclusão que hoje notoriamente é interpretado de maneira totalmente errônea.

A autora infere que a falta de reconhecimento das diferenças significativas decorre da confusão de que a inclusão é específica aos indivíduos categorizados ou com necessidades especiais. Inclusão, na visão de Frederick (2005, p. 19), não se refere somente a pessoas com deficiência, mas vai muito além, "[...] inclusão significa lutar contra racismo, homofobia e bullying. É uma questão de toda a escola [...]" e, como tal, está relacionada à diversidade existente na escola, bem como às formas de discriminação e exclusão. Na verdade, o autor ressalta que inclusão é perceber o sujeito no seu bem-estar, enfim, no bem-estar dos seres humanos.

Em seus estudos, Vygotsky (2008a, p. 3) discorre sobre a questão das diferenças existentes nos seres humanos e da necessidade de preservar o que a criança apresenta. Dessa forma, muitas vezes se atribui certas ações compensatórias às crianças com deficiência. Essas compensações são compreendidas como “um processo fundamental do desenvolvimento do indivíduo com deficiência” e se faz presente em qualquer pessoa que pertença a certo grupo com relações sociais.

Para Góes (idem), no ser humano “ocorrem compensações de ordem orgânica, pelas quais um órgão substitui o outro, ou realiza as funções deste. Não obstante, para compreender o funcionamento humano, é essencial considerar as compensações sociopsicológicas.” De acordo com a autora, as relações estabelecidas com o outro são de troca, e promovem a interação e o desenvolvimento do ser humano.

Ainda nas palavras de Góes (1996, p. 3), “o desenvolvimento se constitui, então, com base na qualidade destas vivências. Assim, o funcionamento humano vinculado a alguma deficiência depende das condições concretas oferecidas pelo grupo social, que podem ser adequadas ou empobrecidas.”