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PARTE III – RITUAL

Retrato 28 Um concerto híbrido 180 

Duas noites de concerto na Coletividade Subcultural, com bandas de diferentes géneros. A coletividade fica numa moradia grande incrustada no meio duma rua tipicamente residencial. Tem um pátio de entrada, no rés-do-chão existe o bar, com 2 mesas de snooker, televisão e mesas, e subindo as escadas laterais da casa tem-se acesso à sala do concerto. A sala é pequena mas com bom som. O palco é suficiente para albergar uma banda grande e é baixo mas suficientemente destacado. No recinto, à esquerda a banca de discos e outros produtos dos promotores do concerto, na parte de trás a mesa de som.

O concerto da primeira banda começa com o público encostado à parte de trás, longe do palco (zona 2) e só à terceira música é que os adeptos se chegam à frente. A banda toca cerca de 25 minutos, inicia-se o ambiente de festa.

O público é dividido entre pessoal com indumentária mais rock e hardcore – os que vêm ver AM – e pessoal a puxar para o freak – que vêm para os NK e SKR. Isto, aliás, resulta ao longo da noite num efeito engraçado, a transferência muito gradual destes grupos no espaço do concerto. Quando uma banda cede o seu lugar em palco a outra, não há lugar a uma substituição instantânea de um grupo de adeptos por outro, como se fossem tribos recortadas. Pelo contrário, de forma impercetível, os grupos diluem-se quase por osmose e finalmente constato que o “tipo” de população que estava no início é bem diferente do que encontro no fim.

Concluo daqui que, embora haja uma clara divisão entre os estilos do público de acordo com as bandas que acompanham ou vêm ver, há disponibilidade e curiosidade suficientes para ir ouvindo as bandas desconhecidas. Quando pergunto a João Pequeno o critério de escolha das bandas, a sua resposta é que são bandas que partilham certas ideias comuns e até uma certa ideologia – a da auto-produção, do alternativo, do DIY – mas não necessariamente de género musical.

A performance de SKR, banda de ska cabeça de cartaz, parece exemplificar a mistura de géneros. Depois das primeiras bandas em ambiente “fanfarra chic” e hardcore rapidinho e gozão, eis que parece agora um festejo anti-globalização. Na frente de palco (zona 1) há densidade suficiente para mosh, stage-diving e brincadeiras afins. Atrás e nos lados (zona 2), dança-se em registo world music, com os grupos inicialmente distintos agora misturados. Sem dúvida, há um momento de partilha ritual do concerto.

181 Na segunda noite, com uma banda rap (NBA), outra punk (Canibais) e novamente SKR, o efeito também existe, mas muito mais mitigado. Apesar de NBA ser uma banda reconhecida no género, não posso deixar de reparar a quase ausência de hip-hopers.

[Registo de campo 51]

A efervescência em torno da performance musical depende portanto da formação de um contexto de densificação social e excitação controlada de acordo com parâmetros padronizados de ocupação do espaço. Dispositivos cénicos como a zonalidade dos comportamentos e os movimentos da audiência dentro e fora do recinto criam uma dinâmica de envolvimento coletivo mas fluido. É tentador ver esta fluidez como manifestação da plasticidade das culturas juvenis musicais. Porém, o concerto subterrâneo é marcado por diferentes formas de estratificação: entre adeptos “verdadeiros” e “novatos” (Fox 1987; Moore 2007); entre diferentes segmentos de uma audiência não apenas em termos de género musical como também de posição social; entre a composição social de diferentes concertos (por exemplo, nos retratos apresentados, a diferença entre os concertos do Laboratório, para um público tipicamente universitário, e os concertos auto-produzidos em coletividades, alguns dos quais mais participados por jovens de classe trabalhadora).

A par do equilíbrio entre busca de excitação e autocontrolo, o equilíbrio entre estratificação e fluidez é um fator fundamental na produção social do concerto.

DISPOSITIVO CÉNICO:MÁSCARA

A par da dinâmica espacial do concerto, as formas de apresentação dos músicos em palco e de relação estabelecida com a assistência configuram a experiência de exaltação. Como referi no Capítulo 6, a espera antes da entrada em palco é um momento ritual de encenação identitária. Antes de mais trata-se da incorporação do papel performativo perante um público, mesmo quando este é formado por amigos.

Usualmente os músicos reúnem-se em separado num curto período de concentração do grupo. A excitação de entrada em palco é contrabalançada por um exercício de relaxação, muitas vezes auxiliada pelo consumo de álcool ou outros estupefacientes, em que há um incentivo e suporte mútuo entre músicos (e eventualmente os apoiantes mais próximos). Em concertos mais pequenos, onde o grupo de fãs conhecidos da banda predomina claramente no espaço, também acontece com frequência que esta preparação ocorra perante o olhar dos espetadores.

182 Em qualquer dos casos trata-se de um momento de invocação da banda (Bennett, H. Stith 1980: 48), em que é negociado o rito de cena, ou, nos termos de Goffman (1993 [1959]: 29ss), em que é construída a convicção no desempenho próprio – uma fachada ou máscara de palco. A máscara é construída a partir de um conjunto de expedientes interacionais que permitem manter a performance entre a desejada busca de excitação, designadamente através de comportamentos provocatórios e respetivo controlo (Lee, Jooyoung 2009a).

A transição bastidor/palco implica um jogo ritual de inversões estatutárias: a performance em palco corresponde a uma intensificação da experiência juvenil, cujo carácter espetacular e transgressivo é resguardado em situações do quotidiano; mas essa intensidade performativa durante o próprio concerto também comporta por um turno momentos de pausa e distanciamento. Os modos de entrada e saída em personagem de palco é uma prática construída pela experiência de participação nos circuitos subterrâneos.

Vejamos duas situações contrastantes de encarar o público, isto é, de incorporação da máscara.