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Identidades e públicos (5): três noites na fronteira do underground 173 

PARTE III – RITUAL

Retrato 25 Identidades e públicos (5): três noites na fronteira do underground 173 

Uma combinação de circunstâncias leva-me a três concertos seguidos no Laboratório, dentro do que poderia chamar de aristocracia underground.

Noite 1 – A festa do Alt-Zine está apinhada de gente, 400 espetadores. Mais tarde, Mariana, produtora da sala, diz-me que no total da noite estiveram 700 e tal, mas corroborou que no momento mais cheio estariam 400 e tal. Público heterogéneo, mas a maioria universitários

174 alternativos – tal como as bandas. Muitos grupos de amigos e atenções dispersas por todo o espaço, não apenas centradas no palco – mundanidade alternativa.

A principal atuação esteve a cargo de uma banda de rock alternativo proeminente nos anos 1990, com uma atividade mais intermitente no presente. Todavia, toda a festa é muito movimentada, não só ao sabor dos concertos: os espetadores movimentavam-se para cima e para baixo durante as atuações, vão ao bar, parece viverem o espaço mais em função da festa que dos concertos. Afinal é a festa do fanzine, meio de comunicação da “comunidade” que se celebra.

Noite 2 – Festa de natal alternativa, muito menos gente, para aí umas 150 pessoas, ambiente mais intimista e população entre o arty e o alternativo, com muito pessoal hip-hop para ver o primeiro concerto em Lisboa de uma banda rap do Porto.

Primeiro o rocker, concerto muito bom, mas o pessoal ainda um pouco chocho – até o performer diz. Depois, o público vai-se chegando à frente e ocupando o espaço porque… vai começar o rap. Muito mais gente à frente do palco, mais de três quartos rapazes, muitos grupos sabem as letras de cor. O concerto é enérgico no palco, pouca fisicalidade na plateia, mas, ainda assim, com o pessoal todo a dar ao braço.

A atuação é ponto alto da noite, como se previa do cartaz. Dado curioso, ou se calhar não: não há negros, nem pretos, nem blacks, nem niggas. Só um rasta todo estiloso com a namorada branca. Os restantes hip-hopers são brancos, como dizer?, todos brancos – incluindo o escriba.

Noite 3 – Uma espécie de concerto de legitimação, talvez consagração, da banda «N», no sentido em que foi, até à data, a sua apresentação numa sala maior e mais prestigiada da fronteira entre underground e alternativo. Como é habitual nestas ocasiões, uma grande parte do público é constituído por amigos e conhecidos, cerca de três quartos da assistência, o que talvez também explique as raparigas serem em número semelhante aos rapazes, acima da proporção habitual, portanto. Outra explicação é a circunstância de esta clique ser originária de um bairro de classe média qualificada em Lisboa. Muitos dos presentes serão certamente universitários.

[Registo de campo 53]

Do ponto de vista do ritual, é interessante notar que Turner (1974), associando os ritos liminóides às sociedades contemporâneas e a uma componente volitiva (oposta à prescrição dos ritos liminais), define-os como dispositivo de individualização, especialmente operativo no tempo de lazer por oposição ao tempo de trabalho. Contudo, para além dos limites teóricos de uma conceção de lazer dicotomicamente oposta à de trabalho (Eijck e Mommaas 2004; Rojek 1995, 2009), a configurações do rito liminóide tem formulações muito distintas conforme os papéis rituais desempenhados no momento de concerto.

Por um lado, para os adeptos, o concerto subterrâneo (tal como qualquer concerto de música popular, mas acrescentado de uma semântica de marginalidade simbólica), é uma ocasião de efervescência coletiva, vivida – seguindo ainda Turner (1974) – como desregramento lúdico e dissolução momentânea no rito voluntariamente escolhido e, nesse sentido, um dispositivo de individualização.

175 Por outro lado, para os agentes sociais da auto-produção musical (tanto músicos, especialmente os empenhados, como dinamizadores), o concerto é um labor coletivo, tendo o rito por exato efeito – se bem-sucedido – a fusão entre lúdico e trabalho, a celebração da capacidade criativa num contexto de densificação coletiva.

Esta dicotomia é apenas esquemática, muitos adeptos vivem o ritual precisamente como dispositivo de identificação coletiva e pertença a um grupo e muitos músicos vivem o concerto como performance da sua própria singularidade. Não obstante, o carácter liminóide do concerto subterrâneo é vivido diferentemente por adeptos, de um lado, e músicos (empenhados) e dinamizadores, de outro. Os primeiros, não obstante possam ser participantes ativos (e são, como se demonstra nos exemplos apresentados), têm um papel de assistente ou de participante de segundo grau no desenvolvimento do rito. Os segundos, músicos e dinamizadores, têm um papel de participantes de primeiro grau na medida em que são os produtores do rito.

Quero com esta observação distinguir dois graus de volição no rito de concerto. Para os adeptos a participação ritual é voluntária e circunstancial – o adepto pode decidir estar ou não estar em determinada situação ritual.

Para músicos e dinamizadores, a participação é também voluntária, ou, mais rigorosamente, voluntarista, porque indexada a um compromisso individual (o seu próprio investimento na prática de auto-produção) e coletivo (com a banda e outros agentes sociais com que colaboram nos circuitos subterrâneos), compromisso de que depende decisivamente a sua prática e o seu estatuto identitário enquanto agente social nos circuitos subterrâneos.

Não tem utilidade analítica propor aqui uma distinção formal entre “oficiantes” – estes últimos – e “oficiados” – aqueles primeiros. Desde logo, os papéis são permutáveis (adeptos, músicos e dinamizadores acumulam ou trocam frequentemente de papel, como referi acima). Para além disso, o rito desenvolve-se tipicamente em quadros de interação marcados por um forte interconhecimento.

Não obstante, é imprescindível assinalar que a experiência liminóide, já de si uma gradação da experiência liminar, comporta perceções, representações, práticas e efeitos rituais diferentes, pelo menos em grau. Em suma, a performance do rito de concerto é composta de elementos que diferem entre si, não como atributos fixos, mas antes num continuum simbólico (Schechner 1993).

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DISPOSITIVO CÉNICO: ESPAÇO

A grande maioria dos concertos tem entre 100 e 200 espetadores, mas o número pode variar entre poucas dezenas e cerca meio milhar, raramente mais. Número de espetadores e densidade interacional são tendencialmente correlativos mas, em rigor, nem sempre têm correspondência exata. Um concerto pequeno revela-se uma situação de efervescência ritual quando se verificam duas condições: a excitação provocada pela concentração física de corpos em movimento num espaço exíguo e a existência de relações de interconhecimento e sociabilidade intensa entre os participantes. Pelo contrário, um concerto com muitos espetadores falha a sua dimensão ritual quando se conjugam a dispersão espacial dos participantes e a inexistência de um núcleo denso de participantes ativos.

Daí que os aspetos relacionais e morfológicos sejam determinantes na configuração do dispositivo ritual de concerto. No seu estudo sobre o campo da música indie na Grã-Bretanha, Wendy Fonarow (1997 [1995], 2006) identifica a estética e rituais deste género musical com a divisão da audiência em três parcelas demarcadas: na zona imediatamente junto ao palco (zona 1) estão os fãs mais jovens e entusiastas, cuja participação no ritual é de grande intensidade física (dança e efervescência na multidão); na zona seguinte da plateia (zona 2), contígua à primeira mas mais afastada do palco, estão os fãs frequentadores habituais de concertos que preferem uma experiência musical contemplativa e focada na apreciação da performance em palco; na última zona identificada, oposta ao palco (zona 3), ao fundo da sala ou junto da mesa de som e do bar, estão os frequentadores veteranos de concertos, grande parte deles profissionais da indústria musical.

Tirando concertos de plateia sentada ou espetáculos multitudinários, este esquema é muito comum nos concertos de diversos géneros de música pop, de média escala, por assim dizer. Verifica-se igualmente nos circuitos subterrâneos, embora de forma incompleta nos concertos mais pequenos (ver exemplos adiante).

O esquema em si mesmo dá bem conta do concerto underground como um exercício controlado de busca de excitação (Elias e Dunning 1992), um equilíbrio entre a exaltação física e emocional e a restrição de comportamentos potencialmente disruptivos. A construção desse equilíbrio está na configuração do concerto. O esquema de três zonas é um dispositivo de balanço entre efervescência e normatividade. A exuberância na zona 1 (frente do palco) é contida pela participação mais autocontrolada na zona 2 (plateia). A zona 3 (perímetro afastado do palco) é uma zona de relaxação e de olhar distanciado.

177 Fonarow identifica o alinhamento das zonas espaciais do recinto de concerto com o desenvolvimento típico da experiência musical durante a passagem da adolescência ao estatuto de adulto. Os espetadores na zona 1 são os mais novos e na zona 3 os mais velhos. A transição entre zonas é uma mudança do modo de viver a música e, por isso, uma transição simbólica para a vida adulta. Esta análise refere-se aos adeptos que formam o público, demarcado dos artistas. No caso do underground, o dispositivo de três zonas é identificável, mas de forma bastante mais diluída, dada a proximidade relacional entre músicos e adeptos. O ritual do concerto distingue-se por isso mesmo, pela fluidez de fronteiras que são comuns nos eventos do mercado profissional, mesmo que alternativo.

Apresento de seguida três relatos de concerto diferentes entre si quanto à situação de efervescência e aos modos de participação.