• Nenhum resultado encontrado

Pequenos e grandes movimentos de transição 39 

PARTE III – RITUAL

Retrato 3 Pequenos e grandes movimentos de transição 39 

Zé tem 22 anos. Aprendeu a tocar numa escola de música durante a adolescência e tem integrado algumas das bandas mais populares da clique hardcore da Cidadela. O leque de atividades que combina com a prática de músico é bem variado: o trabalho num estúdio de ensaio e gravação, onde desempenha funções de técnico e gerente, embora a tempo parcial; a conclusão de um curso superior na área de comunicação social e cultural; o recente envolvimento numa companhia de teatro e dança, primeiro como participante em workshops e depois num projeto artístico de intervenção social. Para além disto, teve uma primeira e breve experiência de coabitação conjugal. Encontra-se portanto numa encruzilhada quanto à definição presente (e futura) do seu projeto de vida.

Para além de estar assegurado do suporte familiar, tanto económico como afetivo, ao ser entrevistado, Zé relata este preciso momento de encruzilhada e os seus antecedentes recorrendo a uma dupla narrativa coletiva, a história da banda e do movimento.

40 Muito frequentemente, a remissão para narrativas coletivas reconstrói, através de um efeito metonímico, o que é afinal o percurso individual. Os signos linguísticos banda ou movimento ocupam discursivamente o lugar do self, na medida em que definem as rotinas e circunstâncias do papel social com que o músico se autoidentifica. A prática musical, não apenas como atividade criativa, mas também como fio condutor, quer da dinâmica relacional e das tarefas a realizar no seio da banda, quer dos esquemas de sociabilidade da clique local, presta-se a essa negociação da singularidade em quadros de interação sobrepostos.

O excerto seguinte dá conta da dissolução da sua antiga banda e da rutura das relações de afetividade (de namoro e amizade) durante o processo. Ao mesmo tempo, embora mantenha uma outra banda ativa – muito popular, tal como a anterior –, revela o seu progressivo distanciamento da clique local. O relato é típico do efeito metonímico da troca entre self e coletivo e vice-versa.

P. – A banda [Rage Day] acabou porquê?

Zé – O que pôs a banda em causa, o que matou a banda, foi um caso amoroso. A minha ex- namorada entrou. Há a rutura e banda entra num período mau. O período mau passa a período péssimo quando ela começa a namorar com o Nélson, outro elemento da banda. Foi aí que a banda devia ter morrido. Apesar de termos dado vários concertos a rebentar. [De facto, estes concertos, terminados antes do trabalho de campo, foram-me descritos como “lendários”, tal como tenho visto com a sua atual banda]. A aparência resultava e resultava muito bem, só que o feeling que fazia a cena andar, a química já se tinha perdido. (…)

A nível musical, cada vez resultava melhor. À medida que o tempo passava íamos tocando melhor. Cada vez as ideias resultavam melhor, cada vez era mais original, cada vez estávamos a trabalhar de uma forma mais esquisita, que é mesmo o termo. Nas últimas fases já não se parecia com nada, uma mistura de um punk muita marado. E resultava a nível musical. Só que uma pessoa que viesse ver os nossos ensaios, nós parecíamos robots. O som sai bem, a nível de executantes, já tocamos há dez anos, cada vez tocávamos melhor. Mas eu não conseguia olhar para o Nélson, o Nélson não olhava para mim, eu olhava para a Sofia.

Eu pessoalmente assumi aguentar o mal-estar, conviver com eles dentro da banda, mas para que a banda sobrevivesse. Esse foi o nosso erro, foi admitir isso. O que devia ter acontecido… – «Foi isto aconteceu, não vai ser possível continuar». A cena resulta quando há amizade, quando há aquela química, aquela vontade de querer fazer… Que já não havia. (…)

[Depois], a saída do David veio quebrar aquela união que já havia há 6 anos, dos três putos de início com aquele ideal. Isso [reunião de algumas bandas locais hardcore no coletivo La Famiglia] foi uma tentativa do Dados quando perdemos o David … Porque o sonho do Dados – o “sonho” entre aspas do Dados para os Rage Day –, o sonho acabou com a saída do David. E o Dados tentou então criar uma nova cena, que seria a união de três bandas, quatro bandas. Na altura, Rage Day, Hattemachi*, Act of Anger e FP-Funeral Party. Desmoronou-se: Act of Anger acabou, Funeral Party continua e Hattemachi* continua e Rage Day acabou, claro.

P. – E La Famiglia continua? Zé – Não, morreu agora.

41 Zé – Não, não. Pelo contrário, La Famiglia foi um afastamento de Cidadela hardcore. Pois, o movimento da Cidadela hardcore continua, acho eu. Mas agora continua de uma maneira diferente.

P. – O que é que tem a ver com música, o movimento?

Zé – O problema é esse, é que só tem a ver com música. Agora. Não sei se percebes o que eu quero dizer?

P. – Sim, sim. Queres dizer noutra altura tinha a ver com mais qualquer coisa que não era só música…

Zé – Claro. Tinha a ver com amizade, tinha a ver com uma ideologia de descontentamento, uma ideologia de mudança, de revolução. Agora olho para a cara deles e já não vejo nada disso.

A gente queria arrastar massas, mas massas que entendessem a mensagem e que não estivessem lá só pela figura do Dados, que bastava a gente entrar em palco e fazer qualquer coisinha e começa logo tudo ao pontapé nos célebres concertos do Palco Municipal. Acho que havia… Acho que a gente conseguia transmitir, mas conseguíamos transmitir só um sentimento de raiva, não a mensagem em si, a mensagem construtiva que a raiva trazia. (…)

P. – Então devia passar muito pelas letras, por exemplo?

Zé – Sim, pelas letras, pela postura em palco, pela transmissão de informação nos concertos. P. – Que informação?

Zé – Informação agressiva e revolucionária, muitas das vezes. Coisa que, se fores a um concerto agora… Por exemplo, experimenta ir este sábado, não, esta sexta, ao concerto e vais ver duas bandas da Cidadela hardcore – não sei hei-de chamar da nova Cidadela hardcore, porque para mim Cidadela hardcore morreu quando tinha que morrer – e vais ver a mensagem que eles tentam passar e não há aquele sumo, não há o conteúdo.

P. – Eles não estavam na primeira Cidadela hardcore? Zé – Não, não estavam.

P. – São mais novos?

Zé – São mais novos. É uma questão de idade, é uma questão… de ajuntamento por moda. O que nos fez ver – «O que é isto?». Chegámos ao cúmulo de – «Assina-me a minha Hi-Stec, a mala da moda, porque és o vocalista de Rage Day e eu quero isto assinado por ti».

Zé, Sexo masculino, 22 anos, Estudante universitário, Técnico de som (tempo parcial)

O uso da metonímia vai de par com outros efeitos figurativos como a metaforização e a mimetização. A reapropriação de referentes simbólicos “primitivos” ou “tribais” é um recurso estético expressivo das bandas que corresponde a uma situação de bloqueio das aspirações juvenis, uma de recuperação de símbolos do passado de soluções para o presente e futuro. Por exemplo, a reciclagem de signos tribais como recurso expressivo, ligada a processos de constante hibridação cultural. A metaforização de identidades dissidentes é jogada em elementos estilísticos como o visual, a linguagem, emblemas e claro nome da banda (Pais 2004: 25-27). Mimetização tem um sentido próximo, mas refere-se aqui especificamente à apropriação de símbolos musicais através dos media, que são decisivos na identificação de

42 ídolos ou outras figuras de referência e na definição das regras de cada género, que são reconstruídas localmente24. Em todo o caso as simbologias metonímicas, metafóricas e miméticas servem também narrativas singularizantes dentro de papéis sociais definidos.