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PARTE III – RITUAL

Retrato 6 Mudança de pele (1) 62 

Diogo tem 19 anos à data da entrevista, é o elemento mais novo da banda, com a qual se estreou nas lides de concerto. O excerto de trabalho de campo que se segue, recolhido dois anos mais tarde, diz respeito a um novo período do seu percurso, em que essa primeira banda se dissolve para dar lugar a um projeto paralelo, com uma nova formação, um novo género musical, um novo estilo de apresentação de si e novos objetivos. De facto esta nova banda, passado mais um par de anos, viria a conseguir um contrato de edição e distribuição nacional de um disco de dez temas dentro de uma série de lançamentos de “novas bandas”.

É manifesto entre os dois momentos um trabalho de racionalização da prática musical e da objetivação do projeto aspiracional – e é também um trajeto de transição do papel de músico descontraído para o empenhado e da pulsão musical principiante para a projetada.

Diogo – Lá está, são as pessoas que tentam..., penso eu, sobretudo através de uma arte, acho que as pessoas que seguem uma arte são aquelas que normalmente..., que investem a 100% naquilo que querem seguir, percebes? Que não se importam se ganham 300 ou 3000 euros, que não têm preocupações que vão ter um futuro profissionalizado, percebes? Epá, não sei, acho que

63 é um bocado isto, é um bocado desta maneira que eu vejo as coisas, pá, eu simplesmente não me preocupo em acabar o curso, arranjar um emprego a ganhar 1500 euros e não sei quê, pá, não, não tem nada a ver com isso, enquanto eu..., eu quero é depender da música percebes?

P. –Queres?

Diogo – Quero depender da música, quero viver da música, quero encontrar a fonte de subsistência na música, percebes, pelo menos conseguir sobreviver, isso para mim é o que importa.

P. –Tens projetos para isso?

Diogo – Tenho, não tenho projetos, acho que tenho mais ambições, porque não existe nada no papel, não...

P. –Mas como é que imaginas?

Diogo – Eu imagino que com aquilo que eu estou a tirar [iniciar um curso de som e imagem na Etic – Escola Técnica de Imagem e Comunicação] e com aquilo que eu quero vir a tirar, eu imagino-me como produtor de som, essencialmente acho que vou tentar... vou tentar criar um próprio estilo, se tiver meios para isso, pá, e é arregaçar as mangas mesmo assim à fartazana, percebes? Quero..., pá, não sei, acho que é mesmo isso, lançar uma editora, ser... Sei lá. E depois enveredar por lados também mais peculiares, gostava de experimentar, sei lá, música para o audiovisual, audiovisual, já que tenho uma componente tipo de vídeo, percebes?

O passo das ambições dois anos mais tarde:

Seis meses depois dos Nepal darem o seu último concerto e encerrarem atividade, os seus antigos elementos, com exceção do vocalista, Valentim, apresentam pela primeira vez um novo projeto ao (seu) público. O fim da primeira banda – que os próprios descreveram simplesmente como “desentendimentos musicais” – foi uma consequência lógica da reorientação dos projetos individuais durante o último ano: ao passo que Valentim entrara para a faculdade e estabelecera a licenciatura (na área das ciências sociais) como prioridade pessoal, os restantes investiram em formações específicas na área da música ou aproximada (formação instrumental no Hot Clube e formação profissional em som e imagem na Etic) e redefiniram o seu projeto musical como aposta de profissionalização.

[Registo de campo 37]

P. – Entrada na faculdade?

Ágata – Exato. Só que as coisas não correram bem na faculdade. P. – Podes contar aquilo que ‘tavas a contar há bocado.

Ágata – Ah, o que aconteceu foi que por uma décima não entrei no curso que achava que queria, que era Jornalismo, então entrei em Filosofia, que era outra das minhas paixões, mas que depressa percebi que não era o que eu queria estudar nem fazer da minha vida. (…) Mas acho que ainda há uma grande componente filosófica nas minhas músicas, e acho que nunca vou perder, porque acho que é mesmo isso que eu quero transmitir. Mas quero transmiti-lo através da música, através da expressão, através da criatividade. Ehh, entretanto andei três semanas ou quatro lá no curso, um bocado triste da vida [risos], a pensar – «O q’é que eu ‘tou aqui a fazer? O que é que eu ‘tou aqui a fazer? O meu sonho é música, o meu sonho é música». Então o meu irmão sugeriu eu ir estudar voz para a Academia de Amadores de Música. Os meus pais disseram que sim, acharam bem.

64 P. – Pois, era isso que eu ia perguntar, qual é que foi a reação deles?

Ágata – Eles acharam bem, realmente acharam que Filosofia não… tipo, tu gostas, mas não é… não é mesmo aquilo. Então ‘tive só a estudar voz nesse ano e a fazer gravações em casa e a compor, e a ter uma atitude profissional. Já que eu queria tornar-me profissional, não é?, semiprofissionalizar-me, achei que devia ter uma atitude profissional para isso se poder concretizar.

P. – Mas isso partiu de ti ou foi também os teus pais a dizerem – «Se não estás numa coisa estás noutra e levas a sério»?

Ágata – Sim, eles por acaso foram bastante pacientes comigo, porque… eles sabiam que obrigando-me a ir tirar qualquer coisa só por tirar, só me ia fazer ficar pior e mais… mais perdida, e mais… mais triste e menos inspirada. Então confiaram em mim e disseram-me – «Se é isso que tu queres, vai! Confia em ti, trabalha as coisas. Tipo, aprende, evolui, forma-te» – e ajudaram-me bastante. Entretanto eu saí da banda celta onde estávamos, o meu irmão [músico] depois arranjou outro projeto (…). E eu, quando deixei a banda, comecei mesmo a dedicar-me ao meu projeto a solo [de facto o início de uma carreira musical]: a compor, a produzir, a misturar, a experimentar tocar com várias pessoas, vários instrumentos.

Ágata, Sexo feminino, 22 anos, Licenciatura incompleta, Música

Pulsão musical persistente

É a modalidade de convicção daqueles que se mantêm duradouramente nos circuitos subterrâneos, correspondente a disposições comuns aos papéis de músico empenhado e de dinamizador. O projeto de profissionalização, ou (já) não é considerado como relevante, ou então é objeto de ironia (Strachan 2003). O seu envolvimento assenta em dois vetores principais: a vontade de fazer música e manter uma ligação central aos “mundos da música”; a elaboração de estratégias e estratagemas práticos e contingentes que possam concretizar aquela vontade. As motivações centrais – manter-se ligado à música e a um círculo de sociabilidade – são negociadas e moldadas através da própria experiência (Culton e Holtzman 2010; Gosling 2004; Moore 2007; O'Connor 2008). As disposições musicais traduzem-se em objetivos práticos mais delimitados e imediatos, como por exemplo: editar um disco e assegurar uma distribuição o mais alargada possível (em circuitos subterrâneos, raramente comerciais); cultivar os contatos necessários para angariar concertos regulares, sem recurso a intermediários; associar a prática musical a outras atividades que permitam mantê-la (por exemplo, atividades ligadas ao domínio da animação e intervenção sociocultural); aproveitar oportunidades fortuitas ou construídas ao longo da experiência underground para montar um negócio ligado à música. Em qualquer dos casos, a pulsão musical persistente, vivida como singularidade, apoia-se ao mesmo tempo no trabalho coletivo – trabalho social – das redes de cooperação subterrânea (Mall 2003).

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