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O Estado apresenta-se como uma forma histórica de organização jurídica de poder, peculiar às sociedades civilizadas, sucedendo a outras formas de organização política. E como ordenamento democrático está fundado no reconhecimento da

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Idem, ibidem, p. 105-106.

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dignidade da pessoa humana, na inviolabilidade dos direitos e no livre desenvolvimento da personalidade humana.

O projeto sociocultural da modernidade está relacionado com as transformações verificadas no pensamento humano desde o fim da Idade Média. Consolidou-se depois das revoluções burguesas, quando esse novo paradigma se interligou ao sistema capitalista de produção. Pretendeu-se organizar a vida em sociedade, pela vez primeira na História, segundo um plano racional ideal.

A modernidade tem sido definida pelo triunfo da razão sobre as tradições, da ação científica e tecnológica sobre os sistemas de controle social, do universalismo sobre o particularismo, e da produção sobre a reprodução. Também é demarcada pelas categorias do conflito, destruição e crítica ao irracional, ao tradicional e ao costumeiro. Em nome do progresso, a modernidade representou a luta contra os entraves políticos e culturais, as mudanças relativas à desmistificação das leis da natureza, vistas a partir de então numa perspectiva de controle do mundo natural e não de ajuste a ele.

A modernidade significou a busca constante de mudança e de progresso e a reinvenção de uma nova representação da ordem social. O processo de racionalização tornou-se a sua principal característica, impulsionando a modernização da sociedade e da cultura, e teve sua expressão na distinção entre as esferas sociais e axiológicas, desgarrando-se da religião.

No pertinente à sua organização, a evolução do Estado moderno consistiu, fundamentalmente, na transferência dos meios reais de autoridade e de administração do domínio privado para a propriedade pública e do poder de mando, até então exercido como um direito individual, expropriado, primeiro, em benefício do príncipe absoluto, e posteriormente do Estado.

O Estado moderno, nesse contexto, ostenta duas características básicas: aparato administrativo – com a instituição da burocracia, visando a prestação de serviços públicos para organizar as finanças, e com a divisão racional do trabalho; e monopólio legítimo da força – a sobrevivência do Estado exige um sistema coercitivo

bem estruturado para submeter o exército e a burocracia, ou seja, pela supremacia dos meios de coerção física assentados legitimamente no reino da lei.

O Estado constitucional, representativo ou de direito eclode impulsionado pelas correntes filosóficas do contratualismo, do individualismo e do iluminismo e por importantes movimentos econômicos, sociais e políticos. São marcos históricos importantes dessa passagem para o Estado Constitucional a Revolução Francesa (1789-1799), a Inglaterra (onde se iniciara a Revolução industrial um século antes) e os Estados Unidos (com a primeira Constituição escrita em sentido moderno). No Estado Constitucional, as Constituições escritas institucionalizam juridicamente o poder político; a soberania nacional é una e indivisível; e o povo é formado por um conjunto de cidadãos iguais em direitos e deveres.

Em vez da tradição, o contrato social; em vez da soberania do príncipe, a soberania nacional e a lei como expressão da vontade geral; em vez do exercício do poder por um só ou seus delegados, o exercício por muitos, eleitos pela coletividade; em vez da razão do Estado, o Estado como executor de normas jurídicas; em vez de súbditos, cidadãos, e atribuição a todos os homens, apenas por serem homens, de direitos consagrados nas leis. E instrumentos técnico-jurídicos principais tornam-se, doravante, a Constituição, o princípio da legalidade, as declarações de direitos, a separação dos poderes, a representação política.

A transformação do Estado absoluto em Estado de direito dá-se simultaneamente com a transformação do súdito em cidadão. Nessa medida, sujeito de direitos não mais havidos como “naturais”, mas constitucionais frente ao Estado. E o denominado contrato social não se reveste mais de mera teoria filosófico-política porquanto se conforma em pacto constitucional com um conjunto de normas positivas obrigando o Estado e o cidadão, ambos sujeitos de soberania reciprocamente limitada.

É importante sublinhar a fundamentalidade da questão do asseguramento das garantias, ao lado da separação dos poderes. No período iluminista, amadureceu a concepção legalista do direito, com a prevalência do direito escrito, havido como uma conquista na superação dos ordenamentos costumeiros. A lei escrita garantia a estabilidade das normas e seu conhecimento. Daí definir-se o princípio da legalidade

como a primeira garantia do direito público moderno ou contemporâneo. E, por essa razão, a Declaração dos Direitos vinculava à própria noção de Constituição a divisão dos poderes e o asseguramento das garantias.

A divisão funcional de Poderes ou a “separação” é relativa, tal como sugerido no século XVII com o mecanismo dos checks and controls. Os poderes, mais do que separados, são distintos. Tal expressão empresta melhor flexibilidade às suas linhas fronteiriças. No Estado Moderno constata-se que cada Poder, embora exercendo a sua função própria, não o faz com exclusividade. Assim, a diferenciação do Poder Público em Legislativo, Executivo e Judiciário não esgota as funções de legislar, julgar e executar.

É conclusivo que a teoria clássica da separação dos poderes – definindo exclusividade na função de cada qual – não se ajusta às modernas exigências do Estado Social e constitucional. Inúmeros interesses, bens e valores, dantes não reconhecidos, passaram a ter vital importância para a sociedade. Por isso, o Estado não se adstringe mais à defesa dos interesses da maioria, já que passa a assegurar igualmente instrumentos de efetivação e de proteção dos direitos das minorias. Reconhece-se a possibilidade de ingerência dos outros poderes em funções que originariamente não lhes permitiam garantir a realização dos valores e direitos que o povo, democrática e legitimamente, elegeu como fundamentais para a sociedade.

O princípio da divisão dos poderes, de fato, não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria e novas formas de relacionamento entre os órgãos, tanto que se prefere, nos dias atuais, falar em colaboração de poderes, característica do parlamentarismo (submissão do governo à confiança do Parlamento), desenvolvendo-se no presidencialismo as técnicas da independência orgânica e harmonia dos poderes.

Além da teoria clássica, proposta por Montesquieu, a doutrina contemporânea tem reconhecido também como essencial a função de controle. Assim, além do poder de julgar, de legislar e de administrar, haveria igualmente o poder de controlar, que é fundamental para a teoria do poder. Nesse caso, sobreleva, inclusive, o controle de constitucionalidade exercido pelos tribunais.

Com o Estado Constitucional, cumpre-se o ideário iluminista, cujo coroamento foi a luta do indivíduo contra a tirania do Estado, com a preservação dos direitos fundamentais, representativos da tradicional tutela das liberdades burguesas – a liberdade pessoal, política e econômica. Este Estado, todavia, surge como Estado Liberal, empenhado em limitar o poder político internamente, pela sua divisão, e externamente, reduzindo ao mínimo suas funções perante a sociedade.

O liberalismo teve uma larga trajetória histórica, inspirando o constitucionalismo europeu e americano. Foi a ideologia que atrelou o jusnaturalismo revolucionário dos séculos XVII e XVIII, o puritanismo da Revolução Inglesa (com o triunfo do parlamento), a Independência Americana e a Revolução Francesa. O liberalismo está historicamente vinculado ao direito de propriedade e ao lucro. Por outro lado, a cidadania, na primeira fase do Estado Liberal, enunciada na teoria dos direitos individuais, estava fundada no voto censitário, entronizando a propriedade privada como alicerce teórico da liberdade. Na sua segunda fase, o Estado Liberal procurou sua legitimação através das lutas políticas e sociais, com a ampliação do conceito de cidadania mediante a expansão dos direitos políticos a outros segmentos sociais e o resgate da idéia da igualdade jurídica como o marco dos direitos fundamentais.

O Estado Liberal, interferindo minimamente na vida social, nos seus primórdios, trouxe benefícios inegáveis no seu desenvolvimento. Houve progresso econômico acentuado, propiciando as condições necessárias para a eclosão da revolução industrial. No mais, o indivíduo, como cidadão, restou valorizado com o sistema de garantias, e o poder político converteu-se em poder legal.

Esse Estado Liberal correspondeu ao primeiro e clássico Estado de Direito da primeira época do Constitucionalismo. O novo Estado Constitucional que o sucede é marcado por preocupações distintas, agora menos com a liberdade do que com a justiça, porquanto esta já tinha sido adquirida e positivada nos ordenamentos constitucionais, enquanto que a justiça, como valor social superior, ainda estava longe de lograr o mesmo grau de inserção, positividade e concreção.

O binômio justiça/liberdade torna-se, de imediato, o pedestal do Estado Constitucional dos direitos fundamentais. Haverá na seqüência histórica, pelo prisma da Lei Maior, um Estado constitucional dos direitos fundamentais, que representa a segunda versão do Estado de Direito, em busca de consolidação, e sujeito a avanços e recuos de natureza institucional. A forma mais inovadora debaixo da qual ele aparece é a de Estado Social.

O compromisso com a função social é a nota diferencial entre o Estado Moderno e o Contemporâneo, ensejando a integração do Estado político com a sociedade civil. Altera-se com isso a forma jurídica do Estado, os processos de legitimação e a estrutura da administração.

O individualismo e o abstencionismo ou neutralismo do Estado liberal tiveram o condão de gerar imensas injustiças, e os movimentos sociais do século XIX e século XX, especialmente, demonstraram cabalmente a insuficiência das liberdades burguesas, possibilitando um nível de consciência quanto à necessidade da justiça social. O Estado de Direito já não poderia justificar-se como liberal para enfrentar a maré social sem despojar-se de sua neutralidade, integrando em seu seio a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. Nessa contingência, o Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, em Estado Social de direito, comprometido em realizar a justiça social. O qualitativo “social” retrata a correção do individualismo clássico liberal, afirmando-se os denominados direitos sociais com a realização de objetivos de justiça social.

Nos primórdios do século XX verificou-se a ampliação da esfera de aplicabilidade dos direitos à igualdade e à propriedade, a partir de reformas ou de rupturas do sistema capitalista, transcorrendo a passagem do Estado de direito – fundado na idéia de limitação ao poder – para o Estado social, caracterizado pela participação. Nesse particular, os textos constitucionais dos Estados capitalistas, procurando superar as tensões internas, conformaram novo tipo de constitucionalismo, recepcionando concepções socialistas, redefinindo e ampliando o catálogo dos direitos fundamentais.

As principais características do Estado Contemporâneo diferenciadoras em relação ao Estado Moderno podem assim ser enumeradas: manutenção dos Direitos Individuais consagrados historicamente; inserção dos Direitos Sociais e/ou Coletivos como Direitos Fundamentais no catálogo dos Direitos Fundamentais; e intervenção do Estado nos domínios econômico e social para assegurar a efetiva realização desses direitos.

A passagem do Estado Moderno para o Contemporâneo determinou uma ruptura com o paradigma do Poder Político, tão importante quanto a havida na formação do Estado Moderno, com o abandono do pluralismo imperante nas sociedades políticas da Idade Média. E essa substancial mudança histórica deveu-se à percepção da sociedade civil no interior do próprio Estado.

Do ponto de vista de sua organização e finalidade, continua vigente, no presente momento histórico, a noção de Estado Contemporâneo, muito embora haja profundas diferenças em razão da ordem política que eclodiu nos albores do século XX. O Estado Contemporâneo hodierno também é usualmente denominado de Estado do Bem-Estar, Welfare State, Estado Social ou Estado-Providência.

A expressão Estado de direito tem uma carga valorativa, traduzindo um compromisso ao evidenciar um Estado que tem no direito, no seu ordenamento jurídico e especialmente na Constituição seu fundamento e ao mesmo tempo sua limitação. O termo passou a traduzir o equivalente a Estado constitucional, embora Estado de direito tenha maior amplitude, pelo prestígio da idéia de ordenamento jurídico, apreendida para além do seu sentido meramente formal.

Entre os princípios do Estado de Direito contam-se não só aqueles princípios formais para a ação estatal, como também os “materiais” (de conteúdo). Tais componentes de conteúdo residem particularmente nas garantias dos direitos fundamentais. Essas garantias de liberdade e igualdade, ademais, são materialmente enriquecidas pela idéia do Estado social e pela missão precípua de realizar a justiça social, de criar condições reais de desenvolvimento da personalidade e de concretização da igualdade de oportunidades para todos. Componentes materiais do Estado de direito se inserem, também, no princípio da proporcionalidade e na

proibição do excesso, tendendo ambos a otimizar o uso da liberdade e a satisfação dos interesses numa comunidade.

A configuração do Estado democrático de direito, de outro lado, não se limita apenas a fundir formalmente os conceitos de Estado democrático e Estado de direito. É um novo conceito que supera os seus elementos constitutivos, na medida em que incorpora um componente revolucionário, transformador do status quo. Daí a importância do artigo 1° da Constituição Federal, quando proclama que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de direito. Aqui, o “democrático” qualifica o Estado, irradiando “os valores da democracia sobre todos os elementos constitutivos do Estado e, pois, também sobre a ordem jurídica”.

No limiar deste novo século e milênio, o panorama político institucional é de novo de grandes transformações e instabilidade. Desapareceram ou entraram em colapso, na sua maior parte, os regimes totalitários e autoritários, mas, em contrapartida, irrompeu um regime de outro tipo, diverso do modelo de Estado europeu – o Estado de fundamentalismo islâmico, no qual se fundem lei religiosa e civil, poder espiritual e temporal. De outro lado, no Estado social de direito, a grave crise do chamado Estado-Providência derivada tanto de causas ideológicas quanto financeiras, administrativas e comerciais. Além de todas essas vicissitudes, somam-se a degradação da natureza e do meio ambiente, as desigualdades econômicas entre países industrializados e não-industrializados, a exclusão social mesmo nos países ricos, a manipulação das comunicações, a cultura consumista de massas, a erosão de valores éticos familiares e políticos.

Esse clima de incertezas, de turbulências sociais, políticas e econômicas que se verificam no Estado contemporâneo projeta, de outro lado, uma realidade, em nível mundial, que parece contrastar com o atual estágio civilizatório de parcela significativa da humanidade. De fato, parece que a humanidade vive simultaneamente a Idade Média, o Renascimento, o Estado moderno e todas as contradições do Estado Contemporâneo. A miséria, esse grande apartheid social, ainda separa países, continentes e segrega, mesmo no interior de países desenvolvidos, parcelas sociais, colocando a nu as contradições da modernidade.