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Visões conceituais: do Estado de direito ao Estado democrático de direito

Estado de Direito é expressão de difícil conceituação não só por sua acepção específica, de variegada compreensão, mas sobretudo pela carga retórico- ideológica que usualmente é emprestada ao termo.

definido, à primeira análise, como estado que garante, segundo a definição de H.L.Wilensky, “tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade mas como direito político”. Segundo a autora, “o que distingue o estado assistencial de outros tipos de estado não é tanto a intervenção direta das estruturas públicas na melhoria do nível de vida da população como o fato de tal ação ser reivindicada pelos cidadãos como um direito”. Pondera Regonini, com apoio em Offe e Habermas, que “o estado assistencial traz como resultado a ‘estatização da sociedade’. Trabalho, rendimento, chances de vida não são mais determinados pelo mercado, mas por mecanismos políticos que objetivam a prevenção dos conflitos, a estabilidade do sistema, o fortalecimento da legitimação do estado. A vontade política não se forma já pelo jogo das agregações na sociedade civil, mas se solidifica por meio de mecanismos institucionais que operam como filtro na seleção das solicitações funcionais ao sistema. Partidos, sindicatos e Parlamento atuam como organismos dispensadores de serviços, trocando-os pelo apoio politicamente disponível. Os resultados desse processo são diversos, dependendo do fato de se prever ou não a total extinção da autonomia da sociedade em face de um ‘despotismo administrativo’, que levaria à total dependência dos indivíduos e dos pequenos grupos dos mecanismos públicos. As possibilidades de saída estão, portanto, confiadas à capacidade de resistência de alguns fragmentos da sociedade civil; círculos de vida privada, setores da economia concorrencial, grupos portadores de interesses não filtrados pelas instituições” (REGONINI, Glória. “Estado do bem-estar”. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. Op. cit. p. 416-419, vol. I; WILENSKY, H.L. The Welfare State and equality. University of California, Press Berkeley, 1975; HABERMAS, J. La crisi della razionalità nel capitalismo maturo, Bari: Laterza, 1975; OFFE, C. Lo Stato nel capitalismo maturo. Milano: Etas Libri, 1977).

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BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ibidem. 59.

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Estado de direito, para Nelson Saldanha, costuma designar um tipo de Estado cujas bases foram postas pelo constitucionalismo liberal. Segundo alguns autores de formação juspositivista278 kelseniana, chega a ser tautológica a expressão. Isso porque, para Kelsen279, na sua óptica monista280, o Estado deve ser visto como um ente formalmente jurídico, integrado por normas e níveis de competência, de tal sorte que direito e Estado constituem dois lados do mesmo objeto.281

A expressão Estado de direito, usada desde a primeira metade do século XIX, por Bluntschli,282 tem uma carga valorativa, traduzindo um compromisso ao evidenciar um Estado que tem no direito, no seu ordenamento jurídico e especialmente

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A ideologia do positivismo jurídico, como anota Antônio Carlos Wolkmer, que “prosperou a partir da metade do século XIX e acabou se impondo como principal doutrina jurídica contemporânea, estendendo-se em diversas áreas do Direito”. E igualmente “constitui-se na mais vigorosa reação às correntes definidas como jusnaturalistas, que buscavam definir a origem, a essência e o fim do Direito na natureza, ou mesmo, na razão humana. A ideologia positivista procurou banir todas as considerações de teor metafísico-racionalista do Direito, reduzindo tudo à análise de categorias empíricas na funcionalidade de estruturas legais em vigor” (WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 158). A ideologia positivista, para Wolkmer, “se contrapõe à concepção metajurídica jusfilosófica, na medida em que rejeita toda e qualquer dimensão a priori. Descarta, assim, princípios e juízos valorativos em função de uma suposta neutralidade axiomática, de um rigoroso experimentalismo e, ao mesmo tempo, de um tecnicismo formalista. O Direito é explicado pela sua própria materialidade coercitiva e concreta. Toda a sua validade e imputação fundamentam-se na própria existência de uma organização normativa e hierarquizada. A concepção jurídico-normativa tipificada pelo caráter abstrato, genérico e institucionalizado tende a harmonizar os diversos interesses conflitantes no bojo da organização sociopolítica, bem como disciplinar e manter as diversas funções do aparelho estatal. Este caráter ideológico, passível de ser detectado na doutrina positivista, não é de forma alguma ‘reconhecido’, mas ‘ocultado’ pelo dogmatismo jurídico oficializado” (Wolkmer, p. 158).

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KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 352-353. Kelsen, de fato, assinala que se se reconhece o Estado como ordenamento jurídico, todo Estado é um Estado de direito, e este termo torna-se pleonástico. E conclui que todo Estado deve ser um Estado de direito, no sentido de que todo Estado é um ordenamento jurídico.

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A teoria monista, cujo maior representante é Kelsen, com sua Teoria Pura do Direito, embasada no extremismo lógico e formalista da dogmática normativista, consoante Wolkmer, “tende a eliminar o dualismo jurídico-estatal, na perspectiva de que o Estado é identificado com a ordem jurídica, ou seja, o Estado encarna o próprio Direito em determinado nível de ordenação, constituindo um todo único” (WOLKMER, Op. cit., p. 76). Em contrapartida, a concepção dualista, além de preconizar que Estado e Direito são realidades diversas, tende a fixar a extensão de cada uma delas. Dentro da doutrina tradicional, para Wolkmer, “surge a prioridade lógica do Estado sobre o Direito: desse modo, o Estado é o criador do Direito, pois este está subordinado àquele e, assim, mesmo que as normas não sejam estabelecidas pelo Estado, teriam sua sanção a posteriori. Já segundo os adeptos da supremacia estatal, o Estado viria a ser a fonte mais importante do Direito. Quando da infração ou do descumprimento da regra jurídica, o Estado entraria em ação, dando aplicação e eficácia ao elemento normativo, garantindo e assegurando a coesão do imaginário sócio-político” (Idem, ibidem, p. 75).

281

SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação dos poderes. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 44-45.

282

Ver: BLUNTSCHLI, J.C. Deutsches Staats. Woerterbuch. Stutgart und Leipzig, 1862, v. VII; Théorie Générale de l’État. Paris, 1891.

na Constituição seu fundamento e ao mesmo tempo sua limitação. O termo passou a traduzir o equivalente a Estado constitucional, embora Estado de direito tenha maior amplitude, pelo prestígio da idéia de ordenamento jurídico, apreendida para além do seu sentido meramente formal.283

Na origem, o Estado de direito era um conceito tipicamente liberal, como ressalta Afonso da Silva284. Daí a doutrina referir-se a Estado liberal de direito, que tinha as seguintes características, ainda hoje configuradoras de estágio civilizatório:

(a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; (c) enunciado e garantia dos direitos individuais.

A par disso, o estudo do denominado Estado Contemporâneo enseja novas perspectivas ao tema, que deve ser observado certamente a partir do chamado Estado Constitucional, onde se desdobram duas de suas qualidades ou categorias, o próprio Estado de Direito e o denominado Estado Democrático de Direito. Num vislumbre histórico, poderíamos ainda falar do Estado Moderno e também do Estado Contemporâneo, retratando sua gênese e a crise dos tempos atuais.

De outro lado, a democracia, como expressão de valores de convivência humana,285 para Afonso da Silva é expressão mais abrangente do que Estado de direito. Sucede que a superação do liberalismo colocou em sintonia o Estado de direito e a sociedade democrática, produzindo-se o conceito de Estado social de direito, nem sempre de conteúdo democrático. Agora a Constituição Federal, em seu artigo 1º, define o Estado democrático de direito como um conceito-chave na definição do regime. Nessa mesma esteira, a Constituição Portuguesa nomina de Estado de direito democrático (art. 2°), e a Espanhola (art. 10) de Estado social e democrático de

283SALDANHA, Nelson

. Op. Cit., p. 45.

284

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit., p. 112-113.

285

direito.286

Na década de 1920, Carl Schmitt aludiu existirem várias noções de Estado de Direito. Observou, contudo, que a doutrina tem preferido fixar-se no modelo liberal-burguês,287 querendo, com isso, justificar um conceito executivista e ditatorial do Estado de Direito.288

Construído a partir do liberalismo, o Estado de Direito emergiu para fazer face ao Estado absolutista, configurado por um menor número de direitos, concentração do poder e abusos da classe política e economicamente dominante, caracterizado, regido e limitado pelo ordenamento jurídico. Nesse tocante, aliás, a própria Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão ressalta que, para que uma sociedade possa ter uma Constituição legítima capaz de resguardar a liberdade, são necessários instrumentos como a previsão de poderes independentes e separados para o cumprimento de determinadas funções e de mecanismos e institutos fundamentais para a garantia dos direitos.289

Na leitura de Ferrajoli, Estado de direito é um daqueles conceitos amplos e genéricos que têm múltiplas e variadas ascendências na história do pensamento político:

A idéia que remonta a Platão e Aristóteles, do ‘governo das leis’ contraposto ao ‘governo dos homens’, a doutrina medieval da fundação jurídica da soberania, o pensamento político liberal sobre os limites da atividade do

286

SILVA, José Afonso da. Ibidem, p. 112.

287

SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madrid: Alianza, 1992. Para Carl Schmitt, a expressão Estado de direito pode ter tantos significados distintos como a própria palavra “Direito” e designar tantas organizações, quanto as que se aplica à palavra “Estado”. Ver também do autor: Legalidad y legitimidad. Trad. José Diaz García. Madrid: Aguilar, 1971, passim.

288

SALDANHA, Nelson. Ibidem, p. 46. Observa criticamente Paul Hirst: “Se Carl Schmitt tivesse abandonado tranquilamente a Alemanha em janeiro de 1933, seria lembrado internacionalmente como o mais importante teórico jurídico e político daquele país no século XX. Schmitt não pegou o trem, nem se juntou àquela legião de conservadores alemães que se renderam ao nazismo silenciosamente, apenas para reemergir como figuras de proa na República Federal. Destacado crítico conservador dos nazistas, defensor do governo presidencial por decreto de emergência para excluí-los do poder político, Schmitt aderiu a eles em 1933, numa reviravolta espantosa e desavergonhada. Continuou nazista, cada vez mais desconsiderado e desonrado pelo partido, até 1945. Nas duas décadas que se seguiram, Schmitt foi completamente obliterado do mundo intelectual anglo-saxão e figura extremamente controvertida na RFA” (HIRST, Paul. A democracia representativa e seus limites. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 144).

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 61. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3. Ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 196.

estado e sobre o Estado mínimo, a doutrina jusnaturalista do respeito às liberdades fundamentais por parte do direito positivo, o constitucionalismo inglês e norte americano, a tese da separação dos poderes, a teoria jurídica do Estado elaborada pela ciência juspublicista alemã do século passado e pelo normativismo kelseniano. Segundo uma distinção sugerida por Norberto Bobbio, isto pode querer dizer duas coisas: governo sub lege ou submetido às leis, ou governo per leges ou mediante leis gerais e abstratas.290

Ferrajoli emprega o termo Estado de direito no sentido substancial, forte, estrito, como sinônimo de garantismo, designando não somente um Estado legal ou regulado pelas leis, mas um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições e caracterizado:

a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo o poder público – legislativo judiciário e administrativo – está subordinado às leis gerais e abstratas que lhes disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle de legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes (...); b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e das obrigações de satisfação dos direitos sociais, bem como dos correlativos poderes dos cidadãos de ativarem a tutela judiciária. [...] a primeira destas duas condições representa a fonte de legitimação formal de qualquer poder; a segunda, a sua fonte de legitimação substancial. Graças a estas duas fontes, não existem, no Estado de direito, poderes desregulados e atos de poder sem controle: todos os poderes são assim limitados por deveres jurídicos, relativos não somente à forma mas também aos conteúdos de seu exercício, cuja violação é causa de invalidez judicial dos atos e, ao menos em teoria, de responsabilidade de seus autores. 291

Nesse diapasão, a distinção entre legitimidade formal (condições formais) e legitimidade substancial (condições substanciais), impostas ao exercício válido do poder, é imprescindível, nos ordenamentos jurídicos, para estabelecer a natureza da relação entre democracia política e Estado de direito. A partir dessas condições compõe-se o objeto de dois tipos diversos de regras – as do primeiro tipo

290

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 687. Para Ferrajoli, poder sub lege pode ser interpretado em dois sentidos diversos – um débil, lato ou formal, “no qual qualquer poder deve ser conferido pela lei e exercitado nas formas e procedimentos por ela estabelecidos; e num sentido forte ou estrito, ou substancial, no qual qualquer poder pode ser limitado pela lei que lhe condiciona não somente as formas, mas também os conteúdos”. Assinala, por outro lado, que o primeiro destes significados corresponderia ao uso alemão de Reechtsstaat, enquanto o segundo corresponderia ao uso inglês de rule of law e ao italiano de stato di diritto. Além do que, no primeiro sentido estariam todos os ordenamentos, mesmo os autoritários, ou até totalitários, “os quais, em todo caso, lex facit regem e o poder tem uma fonte e uma forma legal”. No segundo, são, ao invés, somente os Estados constitucionais, especialmente aqueles Estados de Constituição rígida (Op. cit., p. 687).

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(como se deve decidir) concernem à forma de governo; as do segundo (que se deve ou não decidir), à estrutura dos poderes. Das primeiras depende o caráter politicamente democrático do sistema político; das últimas, o caráter de direito do sistema jurídico.292

O Estado liberal recebeu sua forma jurídica a partir de dois movimentos históricos paralelos – o das Constituições e o das codificações, inspirados no pendor de então à regra escrita, considerada superior às normas costumeiras, sob a justificativa de que as leis deveriam ser integradas segundo uma ordem lógica num todo.

O termo Constituição tem origem remota em Roma, significando, por longo tempo, ordem política ou regime, até pelo menos o século XVIII. Apenas após a Revolução Francesa passou a ter o mesmo sentido atual, ou seja, de lei especial, superior às demais, destinada a organizar jurídica e politicamente a estrutura de um Estado.293 Por outro lado, com as codificações, o Estado liberal expressava o entendimento de uma sociedade secularizada, regulando o direito privado e também o criminal sobre bases novas, em novas formas como explicitação dos modelos sociais do ordenamento e do pensamento jurídico.294

Na visão de Canotilho, o Estado só se concebe hoje como Estado Constitucional. E para ser um Estado com as qualidades identificadas pelo constitucionalismo moderno, deve ser um Estado de direito democrático. Apresenta- se, portanto, com as duas qualidades – Estado de direito e Estado democrático, que podem estar dissociadas. Isso porque se pode falar em Estado de Direito, com omissão de sua dimensão democrática, e em Estado democrático, sem aludir-se à dimensão de Estado de Direito. Essa dissociação pode estar fulcrada na realidade, onde haja um Estado cujas formas de domínio político não estejam alicerçadas em termos de Estado de Direito, assim como este pode não ter qualquer legitimação em termos democráticos. O Estado constitucional democrático de direito procura essa conexão interna entre democracia e Estado de direito.295

292

Idem, ibidem, p. 688-689.

293

SALDANHA, Nelson. Ibidem, p. 40.

294

Idem, ibidem, p. 41.

295

Para Habermas, sob o signo de uma política completamente secularizada, o Estado de direito não pode existir nem se manter sem democracia radical.296 E embora possa haver razões empíricas numa perspectiva acadêmica, para um tratamento distinto de Estado de direito e de democracia, demarcado pela Ciência do Direito e pela Ciência Política, tal não implica que possa haver, do ponto de vista normativo, Estado de Direito sem democracia.297

No horizonte traçado por Canotilho, a concretização do Estado constitucional, frente ao pluralismo de estilos culturais, circunstâncias e condições históricas, impõe códigos de observação a partir de ordenamentos jurídicos concretos, nos quais a chamada “domesticação do domínio público” permite identificar conceitos como Rechtsstaat, Rule of Law, État légal, alicerces da juridicidade estatal.298

A fórmula britânica da Rule of Law, na visão de Canotilho, apesar de suas variações históricas, na seqüência da Magna Carta de 1215, traduz, primeiramente, a obrigatoriedade da observância de um processo justo legalmente regulado, no julgamento e punição dos cidadãos, para a privação de sua liberdade e propriedade. Em segundo lugar, significa a proeminência das leis e costumes em face da discricionariedade do poder real. Em terceiro lugar, a submissão dos atos do Executivo à soberania do Parlamento. Por último, a igualdade de acesso de todos os cidadãos perante os tribunais para defender seus direitos segundo os direitos comuns

Almedina, p. 92 e 93. Sobre a visão de Canotilho, é importante assinalar que o Estado português se define como Estado constitucional democrático de direito, diferentemente do Brasil, em que a República Federativa do Brasil, como se verá no último tópico deste capítulo, se define como Estado democrático de direito. Daí por que a identificação entre Estado constitucional e democrático é peculiar, conforme o conceito atribuído pelo autor ao “Estado constitucional”.

296

HABERMAS, Jürgen. Factividad y validez: sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998.

297

HABERMAS, Jürgen. “Sobre a coesão interna entre Estado de Direito e democracia”. In: A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 285. Nesse ponto, Habermas pontifica que a divisão é comum sob o prisma acadêmico, ao tratar-se Estado de Direito e democracia como disciplinas distintas – a Ciência do Direito tratando do Direito e a Ciência Política da democracia. Haveria razões para isso, porquanto, apesar de o domínio político ser exercido sob a forma de Direito, há razões jurídicas em que o exercício do poder político não se dá sob a forma do Estado de Direito. De igual sorte, há Estado de Direito em que o poder político não se exerce democraticamente. Sobre o tema, ver: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. “Coesão interna entre Estado de Direito e democracia na teoria discursiva do direito de Jürgen Habermas”. In: CATTONI, Marcelo (coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 172.

298

(Common Law) e perante qualquer entidade – indivíduo ou poderes públicos.299

Nos Estados Unidos da América, diversamente, segundo Canotilho, o denominado “império do direito” (The Reign of Law) teve contornos inovadores. O Estado Constitucional estabeleceu, de pronto, o direito do povo de fazer uma lei superior (always under law).300 Num segundo plano, é associada ao Estado Constitucional a juridicidade do poder à justificação do governo. Assim, as razões do governo traduzem razões públicas, tornando patente o consentimento do povo em ser governado em determinadas condições. Em suma, o governo é sempre subordinado às leis, estas entendidas como um esquema regulativo formado por um conjunto de princípios de justiça e de direito. O “governo justificado”, portanto, cumpre a obrigação “jurídico-constitucional de governar segundo as leis”. E é da ratio do sistema constitucional americano, por último, que os tribunais exerçam a justiça em nome do povo (people’s court). Tais tribunais são constituídos de juízes agentes do povo, que detêm a confiança (trust) deste de preservar os princípios de justiça e os