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O projeto político da modernidade e o surgimento do Estado Moderno

A palavra “estado”, etimologicamente, provém da expressão latina status, tendo o sentido de “estado, posição e ordem”. Foi traduzida como state (inglês), état (francês), stato (italiano) e zustand (alemão). No seu sentido ontológico, o termo Estado tem o significado de “organismo próprio dotado de funções próprias, ou seja, o modo de ser da sociedade politicamente organizada, uma das formas de manifestação do poder”.

A denominação Estado nem sempre foi usada no sentido de sociedade política, mesmo porque essa designação só foi aceita nos séculos XVI e XVII. A título

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Sobre a obra de Habermas, ver: HABERMAS, Jürgen. Factividad y validez: sobre el Estado democrático de derecho em términos de teoría del derecho. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998; _________. “Sobre a coesão interna entre Estado de Direito e democracia”. In: A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002; _________. La crisi della razionalità nel capitalismo maturo. Bari: Laterza, 1975; _________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. 2 vols. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997; _________. Era das transições. Trad. e introdução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, 220 p.; _________. Between Facts and Norms. Cambridge: MIT Press, 1996; _________. The Theory of Communicative Action. Trad. Thomas McCarthy. Boston: Beacon, v. 2, 1984; _________. Princípios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. 3. ed. Lisboa: Guimarães, 1986, 292 p.

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ilustrativo, na Grécia utilizava-se a expressão “polis”, cidade, e os Romanos empregavam a palavra “civitas” ou “res publica”. Nas Idades Média e Moderna, eram usados os termos “principado”, “reino”, “república” para designar Estado. Os povos germânicos usavam os termos “reich” e “staat”.69

A popularização da palavra Estado, entendida como organização social estruturada a partir do exercício do poder, segundo a versão mais aceita, é atribuída a Maquiavel, introduzida logo nas primeiras linhas de sua obra “O Príncipe”, publicada em 1531.70 Contudo, o seu uso só se consagrou muito depois, porquanto ainda lhe faltava o conceito que a face jurídica lhe ministraria para associá-lo ao Estado como instituição nascente, “definido já em seus elementos constitutivos e positivado num sistema de organização permanente e duradoura”.71 Estava assim criada de forma definitiva a expressão Estado no seu uso atual e correntio.

A expressão “Estado moderno” é de complexa explicitação. Aparentemente, tem um sentido óbvio, mas também equívoco. Para a melhor compreensão de seu significado, é fundamental partir de alguns consensos, dentro de uma visão histórica, em vista da amplitude e da complexidade do tema.

O Estado possivelmente é uma das mais complexas organizações criadas pelo homem, denotando um nível civilizatório superior. Em busca de uma explicação para sua origem, a humanidade tem empreendido grande parte de seu pensamento. Através da teologia, da filosofia, da história, da ciência política, da ciência jurídica e da sociologia política, o homem tem se dedicado ao estudo do fenômeno. Todavia, tal estudo não possibilita muitos consensos, havendo divergência, inclusive, quanto ao momento de sua gênese, mesmo porque o nascimento do Estado decorre de um processo e não de um ato apreendido no tempo.72

Modernamente, o Estado é definido como um grupo social que vive em

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BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 6. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2004, p. 49-50.

70

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Martins Fontes, 2001. Colhe-se de O Príncipe: “Todos os Estados, todos os domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são Estados, e são repúblicas ou principados”.

71

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 5. ed. São Paulo: Malheiros, p. 30-31.

72

BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: Novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 20.

determinado território, sob a égide de um sistema de leis e governado por representantes políticos.73 Trata-se, portanto, de uma ordem política soberana, ou, dito de outra forma, de uma nação politicamente organizada. A essa acepção costuma-se acrescer a alusão ao território.74 A dificuldade reside em estabelecer as suas origens conectando-se essa noção até tais origens. Alguns pensadores, como Heller75, remetem ao Estado moderno a gênese do Estado, justamente quando ele se tornou objeto de estudo da chamada Teoria do Estado.76

Böckenfoerde salienta que o conceito de Estado não é universal, uma vez que apenas indica e descreve uma forma de ordenamento político europeu a partir do século XIII até o final do século XVIII ou início do século XIX, com fundamentos específicos da história européia, estendendo-se posteriormente a todo o mundo civilizado.77

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PINHEIRO FILHO, José Muiños; CHUT, Marcos André. “Estado”. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 286.

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A tradição da filosofia política concebe o Estado como a junção de elementos materiais e formais: povo, território e governo. Entretanto, a ciência política, como observam Pinheiro Filho e Chut, vem progressivamente ignorando essa idéia de Estado da filosofia política, a partir da obra de A. F. Bentley – The Process of Government (1908), privilegiando a análise do Estado como sistema político e jurídico, sob o viés das relações de poder da sociedade. A ciência política ressalte-se, “já não mais identifica o governo como elemento político do Estado, mas como algo dissociado do ente estatal, diante da autonomia ou existência independente do mesmo. Em verdade, o governo transformou-se na matéria-prima da ciência política, que o considera uma entidade na qual o poder é exercido como um processo político que se justifica fenomenicamente ligado a uma atividade não vinculada ao ente estatal. O espírito americano ou o seu pragmatismo é um fator determinante da mentalidade que dissolve o conceito tradicional do Estado e, também, do direito, no sentido de dirigir os seus estudos para as transformações e exercício do poder ou, como prefere Passerin d’Entrèves, o exercício da força” (PINHEIRO FILHO, José Muiños; CHUT, Marcos André. “Estado”. Op. cit., p. 286). O fenômeno da globalização, por outro lado, como asseveram os autores, “tem sido determinante nos tempos atuais para redimensionar a noção de soberania nacional”, complementando “esse esforço teórico em abandonar o conceito clássico de Estado. Em suma, mais do que se preocupar com a função intervencionista do Estado ou o retorno ao liberalismo, a ciência política hodierna ocupa-se com as relações de poder” (p. 286). Ver: BENTLEY, Arthur Fischer (1870-1957). The Process of Government, 1908; D’ENTRÈVES, Alexandro Passerin. La Dottrina dello Stato. Torino: G. Giappichelli-Editore, 1967.

75

Ver: HELLER, Hermann. Teoria del Estado. Trad. esp. Luis Tobío. México: Fondo de Cultura Econômica, 1955.

76

SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação dos poderes. São Paulo: Saraiva 1987, p.3.

77

Ver: BÖCKENFOERDE, Ernst-Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Trad. Rafael de Agapito Serrano. Madrid: Trotta, 2000. Mundo civilizado, aqui, pode ser entendido no conceito de civilização, assim definida: “A civilização é o estágio da cultura social e da civilidade de um agrupamento humano caracterizado pelo progresso social, científico, político, econômico e artístico. Quanto maior a civilidade e mais evoluída uma nação, maior é o seu grau de civilização. O

Para Schmitt, Estado não é conceito geral válido para todos os tempos, mas conceito histórico concreto que surgiu quando nasceu a idéia e prática de soberania.78

No plano filosófico, Kant79 caracteriza o Estado como a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do direito. Hegel80 o define como totalidade ética. Kelsen81 como ordem normativa da conduta humana.

O conceito de Estado varia segundo o ângulo em que é considerado. Assim, do ponto de vista sociológico, pode ser entendido, na acepção de Jellinek82, como uma corporação territorial dotada de um poder de mando originário. Sob o aspecto político, na visão de Malberg83, como uma comunidade de homens, fixada sobre um território, com potestade superior de ação de mando e coerção. Sob o prisma constitucional, para Biscaretti di Ruffia84, é pessoa jurídica territorial soberana.

Para Baracho, o Estado apresenta-se como uma forma histórica de organização jurídica de poder, peculiar às sociedades civilizadas, sucedendo a outras formas de organização política. E como ordenamento democrático está fundado no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, na inviolabilidade dos direitos e no livre desenvolvimento da personalidade humana.85

Num Estado particularizado, enquanto organização política de uma sociedade específica, para Rodrigues deve-se ainda levar em conta suas peculiaridades temporal, espacial, cultural, econômica e histórica, dentre outras.86

vocábulo deriva do latim civita que designava cidade e civile (civil) o seu habitante.”. Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Civilização Acesso em 04.09.2008.

78

SCHMITT, Teoria de la Constitución. Madrid: Alianza, 1992, p. 52.

79

Ver: KANT, Immanuel. Metaphysik der Sitten, 1797.

80

Ver: HEGEL. Grundlinien der Philophie des Rechsts. 3. ed. Stuttgart, 1952.

81

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: UnB, 1990, p. 191.

82

JELLINEK, Georg. Teoria general del estado. Buenos Aires: Albatrós, 1954, p. 135; _________. Allgemeine Staatslehre. Berlin: 1914.

83

Ver: CARRÉ DE MALBERG, R. Teoria general del Estado. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1948, t. I.

84

Ver: RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Diritto Costituzionale. Nápoles, 1965.

85

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da cidadania: plenitude da cidadania e garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 61.

86

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. “Acesso à Justiça no Estado Contemporâneo: Concepção e principais entraves”. In: SALES, Lília Maia de Morais e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto

Nesse horizonte, considerando seus elementos essenciais, Rodrigues sustenta que:

a) o poder se cumpre por meio e de acordo com o direito (ordem jurídica); b) detém o poder máximo dentro de suas fronteiras (soberania);

c) tem por objetivo final a satisfação dos interesses e necessidades da comunidade que o instituiu (bem comum);

d) o poder é exercido sobre determinado grupo de indivíduos (povo); e (e) o exercício do poder tem limites espaciais (território).87

No que se refere a dois de seus elementos, é necessário adicionar algumas outras observações: (a) Quando se afirma que o Estado é uma ordem jurídica, não se está definindo, ainda, de que espécie ela é (democrática autoritária ou totalitária, legítima ou não legítima); e (b) o conteúdo da expressão bem comum é variável no tempo e no espaço, permitindo o seu emprego, de forma genérica, nos mais diversos Estados. Essas ressalvas são importantes, tendo em vista que, é com relação a esses componentes, principalmente, que se pode diferenciar o Estado contemporâneo, em sentido amplo, dos demais que o precederam.

O Estado surge num momento histórico bem preciso, no século XVI. Na Antigüidade Clássica, as cidades gregas e o Império Romano já apresentavam sinais precursores dessa realidade. Todavia, apenas no início dos tempos modernos as entidades públicas passaram a reunir todas as características próprias do Estado – povo, território e um poder soberano.88

O termo moderno, de outro lado, enseja uma série de indagações. Tornou-se usual considerar, a partir do Humanismo e do Renascimento, moderna a história que se inicia com o fim do período medieval ou do feudalismo. Tem-se por moderno o pensamento e as novas estruturas que irromperam na história européia a partir de um novo estágio histórico, decorrentes de profundas e revolucionárias alterações verificadas nos séculos XVI e XVII. Apesar de eventuais divergências sobre o tema, a historiografia política, por isso, inclina-se por denominar de moderno o

(Org.). Constituição, Democracia, Poder Judiciário e Desenvolvimento: Estudos em Homenagem a José de Albuquerque Rocha. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p.238-239.

87

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. “Acesso à Justiça no Estado Contemporâneo: Concepção e principais entraves”. Op. cit., p. 239.

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Estado que, nos séculos XV, XVI e XVII, se organizou na Europa, sucedendo ao modelo político-jurídico medieval. O Direito Público, por outro lado, reconhece no Estado moderno um tipo de Estado moldado dentro de um processo de centralização e concentração verificados no aludido período histórico, que compreendeu fases distintas e características – a absolutista, a liberal e a social.89

O projeto sociocultural da modernidade está relacionado com as transformações verificadas no pensamento humano desde o fim da Idade Média. Consolidou-se depois das revoluções burguesas, quando esse novo paradigma se interligou ao sistema capitalista de produção. Pretendeu-se organizar a vida em sociedade, pela vez primeira na História, segundo um plano racional ideal.90

A modernidade, para Touraine, tem sido definida pelo triunfo da razão sobre as tradições, da ação científica e tecnológica sobre os sistemas de controle social, do universalismo sobre o particularismo, e da produção sobre a reprodução. Também é demarcada pelas categorias do conflito, destruição e crítica ao irracional, ao tradicional e ao costumeiro. Em nome do progresso, a modernidade representou a luta contra os entraves políticos e culturais, as mudanças relativas à desmistificação das leis da natureza, vistas a partir de então numa perspectiva de controle do mundo natural e não de ajuste a ele.91

A modernidade92 significou a busca constante de mudança e de

89

SALDANHA, Nelson. Ibidem, p. 4 e 5.

90

APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. Poder Judiciário: Do Moderno ao Contemporâneo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 47.

91

TOURAINE, Alain. “Uma visão crítica da Modernidade”. In: A Modernidade: Cadernos de Sociologia. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS, vol. 5, n. 05, 1993, p. 32.

92

Sobre a modernidade, numa perspectiva contemporânea, Edgard Morin e Anne Brigitte Kern ponderam que o desenvolvimento da tríade ciência/técnica/indústria perde seu caráter providencial. “A idéia de modernidade permanece ainda conquistadora e cheia de promessas onde quer que se sonhe com bem-estar e meios técnicos libertadores. Mas ela começa a ser posta em questão no mundo do bem-estar adquirido. A modernidade era e continua sendo um complexo civilizacional animado por um dinamismo otimista. Ora, a problematização da tríade que anima esse dinamismo problematiza ela própria. A modernidade comportava em seu seio a emancipação individual, a secularização geral dos valores, a diferenciação do verdadeiro, do belo, do bem. Mas doravante o individualismo significa não mais apenas autonomia e emancipação, significa também atomização e anonimato. A secularização significa não mais apenas libertação em relação aos dogmas religiosos, mas também perda dos fundamentos, angústia, dúvida, nostalgia das grandes certezas. A diferenciação dos valores resulta não mais apenas na autonomia moral, na exaltação estética, na livre busca da verdade, mas também na desmoralização, no esteticismo frívolo, no niilismo. A virtude até então rejuvenescedora da idéia do

progresso e a reinvenção de uma nova representação da ordem social. O processo de racionalização tornou-se a sua principal característica, impulsionando a modernização da sociedade e da cultura, e teve sua expressão na distinção entre as esferas sociais e axiológicas, desgarrando-se da religião.

O Estado moderno surge no final da Idade Média e no início da Renascença – primeira revolução iluminista, precursora da revolução da razão, verificada no século XVIII. Traços inconfundíveis de seu surgimento se verificam com a eclosão do princípio da soberania. De fato, foi justamente a soberania que inaugurou o Estado moderno, fundado numa doutrina de poder inabalável e inexpugnável, “teorizado e concretizado na qualidade superlativa de autoridade central, unitária, monopolizadora de coerção”.93

O Renascimento pode ser caracterizado por uma série de transformações que abalaram a Europa Ocidental, determinantes para o surgimento do Estado Moderno e que são descritas por François Châtelet:

a) as realidades históricas e econômicas (extensão e aplicação prática das descobertas feitas durante a Idade Média. Desenvolvimento da civilização urbana, comercial e manufatureira);

b) imagem do mundo (descoberta do Novo Mundo; revolução astronômica de Copérnico e Kepler e física de Galileu;

c) a representação da natureza (o universal medieval dos signos é substituído por uma realidade espacial a conquistar e explorar); e

d) a cultura (a redescoberta da Antiguidade greco-romana pelos humanistas suscita um maior interesse pelo homem enquanto dado natural e pelas especulações ético-políticas);

e) o pensamento religioso (a radicalização da contestação do poder e da hierarquia de Roma esboçada no século XIV por J. Hus, na Boêmia, e Wycliff, na Inglaterra, pelos movimentos que reivindicam o cristianismo primitivo e se apóiam em especificidades ‘nacionais’.94

A importância de Maquiavel, segundo Châtelet, não se limita evidentemente à circunstância de ter empregado pela vez primeira a palavra Estado,

novo (novo = melhor = necessário = progresso) se esgota, ainda em uso somente para os descartáveis, as telas de televisão, os performances automobilísticos. Não haverá mais ‘novo romance’, ‘nova cozinha’, ‘nova filosofia’.” (MORIN, Edgard; KERN, Anne Brigitte. Terra-pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995, p. 81).

93

BONAVIDES, Paulo. Ibidem, p. 29.

94

CHÂTELET, Francois; DUHAMEL, Olivier; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias políticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 37.

mas, sobretudo, por tê-la teorizado, dando-lhe a significação de poder central soberano legiferante. E assim, “capaz de decidir, sem compartilhar este poder com ninguém, sobre as questões tanto exteriores quanto internas de uma coletividade, ou seja, de poder que realiza a laicização da plenituto potestatis”.95 Maquiavel, na opinião dos estudiosos, foi o fundador da ciência política, por ter teorizado sobre a formação dos Estados.

A formulação jurídica da soberania deu-se na obra de Jean Bodin, publicista francês, autor dos “Seis Livros da República”.96 Anote-se que ele não empregou a expressão Estado, e sim República, ao intitular sua obra.97 Para Bonavides, Bodin procurou refutar Maquiavel, lançando os fundamentos teóricos do Estado absoluto calcado na premissa da irresponsabilidade política. Bodin via o Estado como um governo embasado nas leis da natureza, e o soberano estaria subordinado somente a essas leis, com o poder de alvitrar o que deva ser lei superior. Nesse tocante, não estaria submisso nem às leis de seu antecessor nem às próprias leis, mesmo porque não se submetia a qualquer julgamento, sob pena de destruição da soberania – base da estrutura do Estado. A soberania, na sua percepção, seria o poder absoluto e perpétuo de uma república.98

O Estado, para Bodin, era constituído essencialmente de poder, sendo secundários seus demais elementos – povo e território. O termo “soberania”, para ele, tem uma acepção rigorosa, entendida como potência soberana do Estado. É absoluta – por comandar e não receber qualquer comando, não depender de nada nem de ninguém – nem de Deus, nem da Natureza, nem do Povo. É por isso auto-suficiente. É indivisível, por essência una, se conformada integralmente em cada delegação. É perpétua, insuscetível de sofrer as vicissitudes do tempo, por isso transcendente. Em

95

CHÂTELET, François. Op. cit., p. 37.

96

BODIN, Jean. Six Livres de la Republique. Paris: 1576. A obra foi traduzida para o espanhol por Pedro Bravo, com o título Los Seis Libros de la Republica. Madrid: Aguilar, 1973.

97

BONAVIDES, Paulo. Ibidem, p. 31.

98

BODIN, Jean. Los Seis Libros de La Republica. Trad. Pedro Bravo. Madrid: Aguilar, 1973, p. 53. Diga-se que, para Bodin, “toda república, toda corporação, todo o colégio e toda a família se governa por mando e obediência, uma vez que a liberdade natural que corresponde a cada um para viver ao seu arbítrio é posta sob o poder de outro” (Op. cit. p., 22).

suma, é, tal como Deus é.99

Depois da organização política medieval ressurge a noção de Estado, em sua plena acepção. O poder é concentrado no Rei, e toda a autoridade pública emanada dele atinge a todos os indivíduos – súditos do mesmo monarca. Adquire o território limites precisos e o governo faz chegar sua lei a todas as parcelas. Mais do que em qualquer época, essa concentração de poder é acompanhada de uma crescente institucionalização, decorrente da própria expansão da comunidade política e do aparelho de poder, bem das transformações intelectuais verificadas. E com o constitucionalismo100 emergente todo o Estado ficará envolvido por regras e processos jurídicos estritos.101

O Estado moderno europeu, para Jorge Miranda, tinha características muito peculiares:

- Estado nacional: O Estado tende a corresponder a uma nação ou comunidade histórica de cultura; o factor de unificação política deixa, assim, de ser a religião, a raça, a ocupação bélica ou a vizinhança para passar a ser uma afinidade de índole nova;

99

BODIN, Jean. passim; CHÂTELET, François. Op. cit., p.47e 48.

100

Constitucionalismo, no sentido empregado nesse contexto, deve ser interpretado como o movimento de caráter político e jurídico, de cunho liberal, em voga entre o final do século XVIII e o término da Primeira Guerra Mundial, cujo objetivo foi o estabelecimento de Estados de direito baseados em regimes constitucionais, isto é, fundados numa Constituição democrática, que delimita claramente a atuação do Poder Público, mediante a separação dos poderes, e assegura ampla proteção aos direitos dos cidadãos, impondo o exercício, no plano político, do chamado "governo das leis e não dos