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Capítulo 2: A épistémè Renascentista

2.5 Conclusão

Devido ao procedimento de tomar a épistémè em bloco, a visão de Foucault sobre o saber da Renascença não contempla variantes, uma implicação dessa visão monolítica que tenta caracterizar em um só “golpe” a ciência, a filosofia e a magia. Assim, ao descrevemos a

épistémè do século XVI tal como apresentada por Foucault, observamos a marginalidade da

magia e a completa omissão do bloco dos Studia Humanitatis. Diferentemente de Foucault, mostramos que os dois temas podem ser variantes da épistémè do Renascimento, protagonizadas por Agrippa e Leonardo Bruni, por exemplo, embora possam ser correlacionadas. As interpretações de autores como Brandão e Garin nos mostraram que o Renascimento não precisa ser visto de maneira compacta, numa visão limitada que retira desse fenômeno cultural toda sua variação e especificidades. Tais autores, como mostramos, buscam entender o Renascimento segundo inflexões, optando, inclusive, por não tomá-lo como um fenômeno fixo que teria colocado o medievo em suspensão, mas por vê-lo como um fenômeno histórico novo, onde várias experiências no âmbito das artes, da política e da ciência puderam se dar. De maneira semelhante, estendemos a visão crítica à luz dos autores aqui à visão de conjunto apresentada por Foucault em sua interpretação sobre a Renascença.

No entanto, embora a Renascença possa conter inflexões, como propomos, devemos reconhecer que Foucault foi assertivo quando observou um espaço comum do saber no qual se deram a filosofia, a ciência e a magia. Como observou Copenhaver, não se trata de conhecimentos adversos entre si, mas de níveis diferentes do saber, a exemplo do mago, que seria o filósofo que chegou a seu grau mais alto de conhecimento, compartilhando os dois, inclusive, um mesmo léxico – um vocabulário que compõe um saber erudito. E sobre este ponto, a erudição, como bem apontou Foucault, é de fato a grande marca tanto da magia natural, da tradição ocultista quanto do “humanismo”, a exemplo das disciplinas do Studia

Humanitatis, da filosofia e dos demais saberes da época. Ademais, certamente há de se pensar

nas razões pelas quais Foucault não mencionou os Studia Humanitatis. Como se viu, os

Studia Humanitatis falam do homem em sua dimensão moral, cívica e também metafísica, ou

mesmo teológica, da antropologia da queda. De fato, os Studia Humanitatis representam uma variante do Renascimento, mas por completa ignorada por Foucault. Na tentativa de entender

essa lacuna, poderíamos pensar que, investigando sobre a configuração do saber do Renascimento, Foucault não se interessa por essa esfera moral da qual se compõe o humanismo renascentista porque seu foco é antes de tudo epistemológico/arqueológico, ou seja, um interesse em nível diferente.

Outra razão, a mais forte talvez é que, suspendendo o humanismo tal como a Renascença o concebeu, Foucault conseguirá manter a tese antihumanista até o final de sua obra, na intenção de mostrar que apenas na épistémè moderna o homem foi um objeto do saber. O ônus desse procedimento é o recuo de mais ou menos três séculos da afirmação de um saber sobre o homem e, pior ainda, o surgimento do humanismo. Obviamente, pode-se objetar também que o homem já existia na filosofia grega antiga, a exemplo da antropologia socrática do “conhece-te a ti mesmo” que aponta para a experiência do homem consigo. Igualmente, não se trata deste homem para Foucault, que vai manter seu antihumanismo até o final do século XVIII, quando a antropologia se tornará, na linha arqueológica, a disposição da épistémè moderna a partir do questionamento kantiano sobre o homem, o que veremos no capítulo 4. É importante adiantar também, ao concluir este capítulo, que é de todo ausente a economia no corpo das matérias ensinadas nos Studia Humanitas, saber que se constituirá tardiamente ou marginalmente na história do pensamento e que Foucault vai justificá-lo com o argumento da disposição da épistémè. Por ora, basta dizer que a interpretação de Foucault sobre o nascimento tardio da economia será diferente das interpretações mais recorrentes na história do pensamento econômico. Veremos ao longo de nossa investigação que, embora não se tratasse da economia científica, o século XVI testemunhou as grandes navegações, a descoberta de novas terras, e ao regime colonial que será um negócio, num momento de transição da exclusividade dos negócios do rei e o livre-comércio, um advento do Estado Moderno. A partir do “mercantilismo”, a exclusividade do rei será questionada e assim a velha oikonomia, vigente desde a antiguidade grega até o medievo chegará a seu fim, dando azo a vários segmentos do pensamento e a práticas que ainda não se darão como economia política ou científica, mas talvez como uma proto-economia, como mostraremos no capítulo seguinte. Tal foi o caso de Schumpeter em sua obra seminal, History of economic analysis141, data de 1954, até hoje considerada a bíblia dos historiadores do pensamento econômico,

141

A quem recorremos mais tarde falar entender qual a “situação da economia” clássica, e a imprecição nas categorizações dos diversos tipos de pensamento ou fenômenos que se deram na época, tendo em vista também revisar o que época Foucault chama de pensadores “utilitaristas”, uma terminologia problemática, que pretendemos elucidar. SCHUMPETER, Joseph. A. History of economic analysis. London: Rouledge Collection, 2006.

porém ignorada por Foucault e onde vamos encontrar uma lista expressiva desses economistas primevos, gravitando entre a filosofia moral com seus ares metafísicos circunspectos (direito natural, etc.) e um conjunto de documentos heteróclitos cheios de pragmatismo e senso- comum, desde registros de operações financeiras, até relatórios e análises para os príncipes e os prepostos.

O próximo passo será então a reflexão sobre a épistémè clássica de Foucault, interpretação muito própria dos séculos XVII e XVIII, destacando dela o solo comum que se deu entre o saber da linguagem e dos negócios humanos. Trata-se de uma ruptura radical que afastou o saber do regime epistêmico da Renascença, deixando para trás as similutudes, e colocou a nova épistémè numa outra rota do conhecimento, a igual distância dos Studia