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Surgida como afluente de nossa pesquisa de Iniciação Científica, esta dissertação foi desembocar nas paragens bucólicas da Olympia de Giovanni Boccaccio. Conduziu-nos até esse porto Virgílio, nosso guia que permitiu ver além da superfície das palavras da écloga boccacciana, trazendo luz ao intrincado jogo intertextual que nela se estabelece com a Eneida. No curso de nossas investigações, pudemos fazer algumas breves paradas, visitando também os pastores das Bucólicas, os amantes desditosos e os fantasmas da elegia, que foram nos indicando o caminho até o Elísio.

No primeiro capítulo de nosso estudo, narramos as nossas dificuldades em acessar as edições mais confiáveis e recentes do Buccolicum carmen, e os obstáculos que enfrentaríamos ao atravessar um terreno até então pouco desbravado na crítica boccacciana – no decorrer de nossa viagem, porém, vimos que não estávamos completamente sós, e que, apesar de poucos, tínhamos à nossa disposição alguns firmes pontos de apoio. Passamos os olhos pela produção latina de Boccaccio, concentrando-nos depois naquela coletânea de éclogas, fazendo um resumo de cada uma enquanto procurávamos divisar blocos temáticos e um fio condutor na obra.

Então, suspendemos temporariamente o fluxo natural da nossa argumentação para tecermos comentários a respeito da metodologia que iríamos seguir – ou, melhor, da metodologia que dialogava mais com os nossos propósitos. Apresentamos um panorama do debate sobre intertextualidade e arte alusiva que nas últimas décadas tem dominado o campo dos Estudos Clássicos, ousando questionar e flexibilizar certos posicionamentos teóricos mais rígidos, os quais, a nosso ver, podem mais complicar do que facilitar a comunicação sobre os textos poéticos, que, ao menos em princípio, deveriam protagonizar as análises. Assim, optamos por manejar os conceitos de intertexto e alusão de modo intercambiável, sem nos restringirmos a minúcias epistemológicas. Também nos colocamos a favor do uso moderado de termos frequentemente tidos como problemáticos por um grupo de classicistas, tais como “recepção”, “tradição”, “influência” e “intencionalidade”. Vimos que todos estes podem ser manejados num sentido ativo e sem perder de foco os artefatos textuais. Defendemos que a “intencionalidade” pode ser encarada como um efeito, decorrente de um padrão verificado e assinalado nos textos, e que pode estar associada a uma certa “tradição” e “memória poética”. Ressaltamos que “recepção” não equivale a “tradição”, sendo possível falarmos da recepção de uma tradição, por exemplo; e que a própria alusão não deixa de ser um ato de recepção.

Por fim, dissemos que toda leitura é “influenciada” por outras leituras, e que os gêneros poéticos são formas cristalizadas de tradições.

Com base nessas reflexões, pudemos adentrar a selva de Olympia. Após explicarmos quais teriam sido os critérios para a sua datação, abordamos a questão do autobiografismo que permeia a écloga, uma vez que o próprio Boccaccio, na epístola a Martino da Signa, estabelece uma conexão unívoca entre si e o personagem Sílvio, entre sua falecida filha Violante e Olímpia. Em nossa exposição, porém, tentamos relativizar esse tipo de interpretação, destacando os efeitos de subjetividade e as inúmeras camadas alusivas verificadas na écloga boccacciana. Para além do autobiográfico, encontramos paralelos significativos entre as falas lamentosas de Sílvio e outros discursos reportados em textos que trabalham com a tópica da morte prematura.

No segundo capítulo, demos início às nossas investigações sobre os gêneros poéticos e virgilianismos em Olympia. Na primeira seção, vimos como se deu a renovação da tradição do gênero bucólico no Renascimento italiano, possivelmente a partir da correspondência poética entre Dante e Giovanni del Virgilio, que consistiu na troca de éclogas-epístolas em latim. Influenciado por Dante, Boccaccio então iniciaria, entre os anos 1347 e 1348, uma correspondência com Checco di Meletto Rossi, seguindo aquele mesmo modelo, em que se fazia amplo uso da alegoria. Posteriormente, no Buccolicum, Boccaccio continuaria essa prática, mas de modo comedido – conforme ele mesmo alegaria na epístola a Martino da Signa –, imitando as Bucólicas de Virgílio. Relaciona-se a esse tipo de produção alegórica as concepções de fabula e cortex, “fábula” e “córtice”, que seriam dispositivos poéticos de mascaramento da verdade. Na Olympia, notamos que, além de “Sílvio” referir-se a Boccaccio e “Olímpia” a Violante, outras figuras conhecidas seriam mencionadas no poema disfarçadas com outros nomes – a Virgem Maria seria a “Partênope” (vv. 67, 93, 238, 249, 267); Jesus Cristo, “Codro” (91 ss.); Deus, “Arcésilas” (201); Virgílio, “Mincíade” (160, 167). Então, vimos alguns dos principais intertextos entre a décima quarta écloga boccacciana e as Bucólicas, como o emprego de certas tópicas e a recorrência de elementos tipicamente pastoris.

Na seção seguinte, enfocamos os aspectos elegíacos presentes em Olympia. Antes de analisarmos a relação desta écloga com outras composições elegíacas, porém, referimo-nos a discussões recentes sobre as supostas origens da elegia, particularmente sobre sua associação com as tradições dos cantos de lamento fúnebre, na Grécia. Segundo essa primeira acepção, na esteira de Lambert, percebemos que os discursos pungentes do velho Sílvio sem dúvida expresariam um estado elegíaco. A elegia amorosa romana de certo modo também

estaria relacionada àquela ideia original de lamento, se pensarmos a poesia de amor como essencialmente uma poesia da ausência, da privação do ser amado ou da satisfação total do desejo – vimos alguns reflexos disso na Elegia di Madonna Fiammetta de Boccaccio, bem como na famosa décima bucólica de Virgílio. Observamos, então, paralelismos entre algumas formas de dramatização do discurso do amante que sofre com o distanciamento da amada e do sujeito que sofre com a morte de um ente querido. Tais associações ficaram especialmente evidentes na leitura da Elegia de Constância de Boccaccio e de outras duas elegias do poeta romano Propércio (IV.7; IV.11), que apresentam importantes semelhanças temáticas e estruturais com Olympia. Ao abordarmos essas composições, pudemos já introduzir também alguns pontos referentes ao mundo dos mortos, tal como relatado no livro VI da Eneida.

Na terceira seção do mesmo capítulo, antecedendo nossa análise principal, exploramos um pouco o estatuto do gênero épico e suas possíveis definições na Antiguidade romana e no Renascimento. Num primeiro momento, dedicamo-nos sobretudo a uma investigação do épico à luz de teorias clássicas sobre o estilo, que consideravam aquele tipo de composição “elevado”, “grandiloquente”, diferentemente da poesia bucólica, que era tida como “humilde”, “simples”. Não obstante, procuramos distinguir a concepção de gênero elevado (no que se refere às suas convenções intrínsecas e à adequação dos conteúdos ao nível de linguagem, por exemplo) da noção de “gênero superior” (no sentido de uma escala hierárquica, em que o épico estaria no topo de cadeia alimentar dos gêneros). Dissertamos brevemente sobre a metáfora da rota Virgilii (“roda virgiliana”), cunhada por João de Garlândia para indicar o domínio simultâneo de Virgílio sobre os três estilos – humilde, medíocre e grave –, e não uma ascensão gradual de carreira – que teria início com as Bucólicas, passaria pelas Geórgicas e, no auge de sua maturidade poética, culminaria com a Eneida.

Um pouco mais adiante, tratamos da questão da hibridização de gêneros e estilos. Tendo em vista que esta é uma característica também das Bucólicas de Virgílio, a incorporação de material épico na écloga Olympia poderia atestar justamente a conformidade de Boccaccio em relação ao seu principal modelo de gênero bucólico. A nosso ver, essa incorporação ocorre de modo pacífico e orgânico no poema, pois o que estaria de fato em jogo seria a supremacia do paraíso cristão sobre o “pagão” (e não do épico sobre o bucólico, ou vice-versa).

Na subseção seguinte, procuramos apresentar um quadro da recepção que a Eneida obteve no período renascentista. Vimos que, de um modo geral, a segunda metade da épica virgiliana (livro VII-XII) era pouco lida; e que, da primeira metade, os livros II, IV e VI

eram os que despertavam maior interesse do público. Predominavam três tipos de interpretação: a pedagógica, a moral e a alegórica, sendo esta a mais refinada de todas. O método alegórico, na verdade, teria sido aplicado por eruditos já na Antiguidade tardia, e seria convenientemente usado por uma parcela de autoridades cristãs, que tentava conciliar sua doutrina religiosa com a leitura das grandes obras dos “pagãos”. Nesse contexto, Virgílio podia ser apresentado como um protótipo de poeta cristão, pois aparentemente seus poemas dialogavam com a nova filosofia e teologia. Certamente Boccaccio estava a par dessa tradição de cunho alegórico e moralizante.

No que se refere ao livro VI da Eneida especificamente, lançamos hipóteses sobre por que a passagem de Eneias aos inferi seria alvo de tamanho interesse entre os renascentistas. Naturalmente, havia uma inclinação dos leitores cristãos para esse tipo de assunto, que aborda questões sobre o futuro da alma no pós-morte, porém este não seria o único motivo. Vimos então que Coluccio Salutati – amigo de Boccaccio – sugeria que a narrativa da catábase frequentemente poderia ter mais de um significado para os poetas antigos, e que estes possivelmente teriam sido inspirados por Deus a anteciparem algumas verdades acerca do inferno. Pensando nisso e com base numa breve fala de Sílvio (Olymp. 167-8), cogitamos transpor a crença popular de que Virgílio teria sido um “profeta antes do advento de Cristo”, e de que ele teria voluntariamente omitido algumas “verdades”, para nossa interpretação da Olympia de Boccaccio.

Finalmente, no terceiro capítulo, apresentamos nossa análise principal, que teve como foco a intertextualidade entre os relatos do Elísio na Olympia e no livro VI da Eneida (637 ss.), embora tenhamos apontado também outros paralelos que julgamos relevantes. Iniciamos uma discussão sobre os prováveis débitos do Elísio virgiliano para com as descrições dos Campos Elísios de Homero (Od., IV, 561-8) e das Ilhas dos Bem-Aventurados de Hesíodo (OTD 166-73), com a diferença de que estes são localizados em pontos distantes da terra, ao passo que aquele é colocado no submundo, junto das moradas inferiores. Apesar disso, vimos que o Elísio virgiliano é descrito em grande parte como um lugar ameno, o que nos fez entrever também uma possível influência da poesia bucólica – retroativamente, verificamos que, da mesma forma que a montanha, elemento bucólico, ganha destaque no Elísio de Olímpia (Olymp. 170), ela também adquire uma função importante no Elísio de Anquises (En. VI, 658, 676, 678). Em seguida, vimos outras correspondências pontuais entre as descrições virgiliana e boccacciana, por exemplo a presença marcante da luz (Olymp. 21, 33-5 e 171; En. VI, 640-1), em oposição à sombra ou escuridão; os prados (Olymp. 200-1 e En. VI, 642), as estrelas e astros de um tipo incomum (Olymp. 188-9 e En. 6.641), as menções

ao deus Febo Apolo (Olymp. 171-2 e En. VI, 662), entre outras. Particularmente no poema boccacciano, notamos a importância do elemento olfativo, i.e. do perfume (Olymp. 35-6, 282) que, assim como a luz, corresponde a um elemento sutil e impalpável, que se relaciona à noção de éter (e.g. En. VI, 640). E vimos paralelos relevantes entre a descrição desses aromas em Olympia com outras passagens virgilianas que não do livro VI da Eneida – Geórg. I, 56-7 e En. I, 402-5, sobretudo. Além disso, observamos rapidamente algumas alusões de Olympia à Commedia de Dante e a tópicas características do gênero medieval do sonho-visão.

Na última parte de nossa análise, voltamos nossa atenção para os encontros de Anquises e Eneias e de Sílvio e Olímpia, que integram de modo significativo as narrativas do Elísio em apreço. Destacamos intertextos entre os discursos dos dois pais, e verificamos uma espécie de alusão “quiásmica”, em que a fala do morto Anquises, na Eneida, ecoa no discurso do vivo Sílvio, em Olympia (En. VI, 688-9 e Olymp. 42-4; En. VI, 691 e Olymp. 49; En. VI, 692-3 e Olymp. 58-9). Reparamos nas respectivas ocorrências das palavras imago/ymago, “imagem” (En. VI, 695 e 701; Olymp. 43), e somnum, “sonho” (En. VI, 702; Olymp. 42 e 49), associadas a uma ambiguidade, característica dos relatos de sonho e visão, entre real e ilusório. Comparamos, ainda, as funções e os efeitos poéticos da passagem em que Anquises mostra os futuros descendentes de Roma (En. VI, 756-887), de modo a inspirar coragem e sede de fama em Eneias, com aquela em que Olímpia apresenta seus irmãos celestiais a Sílvio (Olymp. 64-77), com o fim de consolar o pai por sua perda temporária e de lhe assegurar a bem-aventurança futura na companhia dos filhos; e concluímos que a descrição virgiliana visaria à “cidade terrena”, enquanto a boccacciana visaria à “cidade celeste”. E, para fechar o capítulo, levantamos a questão da transmigração da alma, que é citada na Eneida (En. VI, 724-51), rebatida com força por Boccaccio no segundo livro das Genealogie (7, 7), porém omitida em Olympia.

Considerando o amplo quadro de correspondências e contrastes entre o livro VI da Eneida e Olympia, parece claro que a alusão à épica virgiliana cumpre uma função narrativa importante no desenrolar da écloga boccacciana – pois é sobretudo a invocação do Mincíade, feita por Sílvio no verso 160, que irá desencadear todo ou quase todo o relato de Olímpia acerca do Elísio. Ademais, partindo-se do pressuposto de que o Mincíade não teria visto ou teria deliberadamente ocultado alguns detalhes acerca do Elísio (Olymp. 163-5), a exposição boccacciana anuncia a sua meta de expandir o relato poético de Virgílio, agregando, sub figmentis (“sob fingimentos”), elementos cristãos, ao mesmo tempo em que apresenta um canto mais belo e harmonioso do que aquele dos antigos latinos – os quais, comparados ao hino de Olímpia e seus irmãos, parecem, segundo Sílvio, destoantes (perdentes tempora

vocum – v. 113). Em suma, sugere-se na écloga boccacciana não que o relato “pagão” de Virgílio fosse “errado” ou “falho”, mas, antes, incompleto, insuficiente – afinal, Olímpia reconhece que “ele discerniu com a força de sua mente algumas coisas grandiosas, e em certa medida a aparência do local; mas ele cantava poucas delas, se você visse quantas e quais belezas abarca o Elísio, morada dos pios, agradabilíssima dos nossos deuses” (senserat ille quidem vi mentis grandia quedam, / ac in parte loci faciem: sed pauca canebat, / si videas quam multa tenet, quam pulchra piorum / Elysium sedesque deum gratissima nostrum – vv. 162-5). Não obstante, ainda que não se proponha a “corrigir” a descrição do Mincíade, Olímpia acaba fornecendo uma revisão sutil da estrutura moral do Elísio, apresentando-o não como um estágio intermediário, mas sim como o destino final e a última morada dos bem- aventurados, o lugar onde o rebanho de Arcésilas passará “infinitos anos em felicidade” (perpetuos... feliciter annos – v. 154).