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I. Introdução

1.3. Metodologia de análise

1.3.3. Tradição, recepção, influência

Ao falarmos de uma “tradição”, estamos considerando não apenas as convenções intrínsecas à linguagem, ao plano da enunciação, à langue de modo estrito, mas também – e primordialmente – todo o conjunto de conhecimentos, de instituições e de códigos que regulam (e que são regulados pelas) práticas letradas de um determinado período. Tal concepção em muito se aproxima daquela de memória poética proposta por Conte, quando ele assinalava, já em Memoria dei poeti, o caráter dinâmico dos procedimentos alusivos, e o envolvimento do leitor e da cultura nesse processo.114 No início de Dell’imitazione, o filólogo italiano deixa essa relação entre memória poética e tradição ainda mais clara, ao afirmar que

la ‘memoria dei poeti’ (o l’intertestualità, come sarebbe stata di lì a poco chiamata con fortunato ed efficace neologismo) funzionava se si riconosceva il dinamismo di una rete verbale intessuta con i fili della tradizione poetica: la tradizione forniva i materiali pronti per il riuso, il testo li funzionalizzava a un nuovo senso, quello suo proprio. Ma il senso – questo era il limite del metodo – doveva necessariamente mantenersi legato alla concretezza di segni effetivamente rinvenibili nei modelli: indizi sicuri di imitazioni. (Conte, 2014, p. 9)

112 Também Vasconcellos (2001) não descarta o emprego do termo “intenção”, desde que usado com

cautela. Sobre o jogo alusivo em Virgílio, diz ele: “as ‘certezas’ da interpretação (...) nunca serão absolutas, ou seja, não se trata de saber o que Virgílio quis dizer no intertexto, mas que efeitos podemos identificar a partir de uma leitura que leve em conta o jogo alusivo, os contextos confrontados, a coerência de nossa análise com o conjunto da obra” (ibid., p. 32, último grifo nosso). Em nota, porém, Vasconcellos comenta: “Desde que não se caia no psicologismo falseador e se tenha consciência da imprecisão dos termos, não censuramos o uso de expressões do tipo ‘intenções do poeta’, de que nós mesmos lançaremos mão: trata-se de fórmula cômoda a que parece impossível renunciar” (ibid., n. 38).

113 Cf. Eco, 1992, p. 64: “Since the intention of the text is basically to produce a model reader able to

make conjectures about it, the initiative of the model reader consists in figuring out a model author that is not the empirical one and that, in the end, coincides with the intention of the text”. Sobre a questão da persona poética e da carreira boccaccianas, cf. Barchiesi & Hardie (in Hardie & Moore [ed.], 2010, pp. 59-88) e Juliani (2016).

De acordo com o estudioso, portanto, a “memória dos poetas” ou intertextualidade funcionava apenas quando se reconhecia o caráter dinâmico de suas práticas e as suas conexões com a tradição poética. Percebe-se assim que Conte, ao mesmo tempo em que associa, distingue esses dois conceitos: a tradição fornece os materiais; a memória poética atualiza os significados deles. Da nossa parte, tendemos a concordar com essa formulação de Conte, mas acrescentaríamos ainda que, enquanto a noção de “memória poética” parece estar fixada num único ponto (sincrônico), a de “tradição” parece interligar vários pontos (sincrônicos e diacrônicos), evocando um movimento contínuo e que sempre repercute em outras tradições, passadas, presentes e futuras.

Trabalhar com o conceito de tradição, porém, acarreta-nos algumas dificuldades, se não de nível prático, ao menos técnico. Isso porque, se por um lado a distinção entre “memória poética” e “tradição” parece clara, o mesmo não se pode dizer de “tradição” e “recepção”, porquanto estes conceitos, assim como os de “alusão” e “intertexto”, em princípio seriam complementares, mas muitas vezes entrariam em choque e seriam colocados em oposição por alguns teóricos, em especial engajados em abordagens recentes da recepção dos estudos clássicos .115

Em capítulo introdutório ao seu pequeno manual sobre recepção, Lorna Hardwick (2003, p. 2), por exemplo, pretende traçar uma linha divisória clara entre “estudos de recepção” (reception studies) e de “tradição clássica” (classical tradition). Esta segunda abordagem, de acordo com a estudiosa, implicaria a ideia de uma cultura morta – exatamente o oposto do que acreditamos –, e estaria associada a conceitos ultrapassados como os de “legado” (legacy) e “influência” (influence); além de carregar a suposição, ora tácita ora explícita (“sometimes tacit sometimes explicit”, ibid., p. 3), de que as obras clássicas veiculariam um “significado” unívoco, não problemático, que poderia ser apreendido e reaplicado em diferentes contextos.116 Hardwick, por fim, afirma que os estudos de “tradição

115 “In the same way as reception puts more emphasis on the receiving culture than the older label of

‘the classical tradition’, so intertextuality shifts the emphasis more to the later text” (Kallendorf, 2015, p. 3).

116 “One strand in classical scholarship has been what was called ‘the classical tradition’. This studied

the transmission and dissemination of classical culture through the ages, usually with the emphasis on the influence of classical writers, artists and thinkers on subsequent intellectual movements and individual works. In this context, the language which was used to describe this influence tended to include terms like ‘legacy’. This rather implied that ancient culture was dead but might be retrieved and reapplied provided that one had the necessary learning. More recent research has tended to move away from the study of a linear progression of ‘influence’. (...) One good reason for the replacement of the methods of ‘the classical tradition’ as the sole means of studying classical texts through time is that such an approach was based on a rather narrow range of perspectives. Furthermore, it could carry an assumption, sometimes tacit sometimes explicit, that these works yielded a ‘meaning’ which was unproblematic, there to be grasped and to be applied in all kinds of situation far removed from the ancient one. Thus the assocations of value carried with it were narrow and sometimes undervalued diversity, both within ancient culture and subsequently” (Hardwick, 2003, pp. 2-3).

clássica” não dão conta da diversidade da cultura antiga, tampouco do processo ativo de apropriação e refiguração das obras em momentos posteriores.

Curiosamente, o estudioso Simon Goldhill (2002, p. 297), ao contrário de Hardwick, acha que recepção (e não “tradição”) é “um termo demasiado obtuso, demasiado passivo”, e que não lhe parece o mais adequado quando o que está em jogo é “a dinâmica de resistência e apropriação, reconhecimento e autoengrandecimento” (traduções nossas). Então, eis que vem Martindale (2006) e diz que talvez Goldhill esteja certo na sua análise, mas que é bom lembrar que a palavra “recepção” foi escolhida, no lugar de “tradição” ou “herança”, justamente “para enfatizar o papel ativo dos receptores” (traduções nossas)117 – de modo semelhante ao que fizeram os estudiosos que substituíram o termo “alusão” por “intertexto”.

Vale ressaltar que, posteriormente, a própria Hardwick (2008), sem de todo se contrariar, mas usando um tom mais ameno, aceitará como possível a ideia de que tradição não é algo fixo. Reconhecendo a emergência de revisões significativas no modo como os termos “tradição” e “recepção” são definidos e avaliados nos estudos clássicos, Hardwick, referindo-se a si mesma, diz que havia uma tendência no passado de se relacionar o conceito de “tradição clássica” com a transmissão passiva de uma cultura, enfatizando-se as ideias de “influência” ou “legado”.118 Uma nova abertura à possibilidade de um diálogo entre o antigo e o moderno, contudo, trouxe o foco dos estudiosos para a interface entre tradição e recepção: se aceitamos que a “tradição não é algo meramente herdado, mas é constantemente feita e refeita, então recepção e tradição podem ser vistas como partes relacionadas de um mesmo processo” (Hardwick, 2008, p. 5).119

Seguindo por essa via, fazemos nossas as palavras de F. Budelmann e J. Haubold (2008), quando estes defendem, no capítulo “Reception and Tradition” – que integra o Companion sobre recepção do qual Hardwick é uma das editoras, o mesmo que citamos logo

117 “It is worth asking if the concept of ‘reception’ today serves any useful purpose, now that the

word’s power to provoke has largely subsided. Simon Goldhill thinks it ‘too blunt, too passive a term for the dynamics of resistance and appropriation, recognition and self-aggrandisement’ that he sees in the cultural processes he explores. Perhaps so, but it is worth remembering that reception was chosen, in place of words like ‘tradition’ or ‘heritage’, precisely to stress the active role played by receivers” (Martindale, in Martindale & Thomas [ed.], 2006, p. 11).

118 “Thus there are significant revisions taking place in how the relationships between the classical

tradition and classical reception are conceptualized and evaluated. The term ‘the classical tradition’ has in the past been used to focus on the transmission and dissemination of classical culture through the ages, usually with the emphasis on ‘influence’ or ‘legacy’ (Hardwick 2003: ch. 1). This was sometimes combined with the assumption that classical works yielded a ‘meaning’ which could be grasped and passed on, as could the aesthetics and (sometimes) moral and political values of antiquity” (Hardwick, in Hardwick & Stray [ed.], 2008, pp. 4-5).

119 Nota-se uma relação manifesta entre essa “nova” concepção de tradição e aquela defendida, já em

1919, por T. S. Eliot, no famoso ensaio “Tradition and the individual talent”: “Tradition is a matter of much wider significance. It cannot be inherited, and if you want it you must obtain it by great labour” (Eliot, [1919] 1932, p. 4).

acima –, que, no que se refere ao engajamento com a Antiguidade, o termo “tradição” continua sendo útil e evocativo, ainda que alguns estudiosos, receosos por causa das conotações conservadoras e elitistas que esse conceito nem sempre é capaz de suprimir, acabem evitando – por vezes rejeitando categoricamente – o uso dele, substituindo-o pelo termo “recepção”, que eles supõem ser menos problemático.120

É importante enfatizar, porém, o que em princípio nos parece óbvio: “tradição” e “recepção” estão longe de serem sinônimos; são, aliás, dois conceitos bastante distintos, que indicam, portanto, fenômenos bastante distintos – tanto é que podemos tranquilamente falar, sem risco de redundância, em recepção de uma tradição em outra (por exemplo, a da clássica na romântica, a da romântica na modernista, etc.). É com esse mesmo olhar que Budelmann & Haubold (ibid., p. 16) propõem, num estudo de caso sobre a tradição anacreôntica num poema do inglês Abraham Cowley (1618-1667), o conceito complementar de “atos de recepção” (acts of reception), precisamente com o fim de ressaltar os links intermediários que unem duas tradições distintas.

No nosso caso, poderíamos dizer que entre Boccaccio e os antigos existe todo um oceano de autores medievais, cristãos, vernaculares, e que certamente repercutem na obra do certaldense e fazem parte de sua bagagem cultural ou “memória poética”. E aqui, então, poderíamos também falar sem medo de influência, “a palavra proibida” – não de uma ou outra influência direta, mas sim da influência indelével do passado, que se dá sempre de modo cumulativo, camada sobre camada. O problema, acreditamos, é quando a influência passa a ser tratada pelos críticos como um passatempo de “ligue os pontos”; como algo que é transportado de uma época a outra, ou, pior, de uma “mente” a outra, como por telepatia; e não como algo que, de fato, flui. Ora, muitas vezes as condições de transmissão, produção e recepção dos textos, que tornam essa influência mais palpável, acabam sendo negligenciadas. Por isso concordamos com Budelmann & Haubold, quando eles dizem que:

Influence-spotting has sometimes acquired a bad name and can in fact be misleading. The complete set of literary influences (let alone cultural influences more broadly) that bear upon a poem is ultimately untraceable. Even though we cannot delineate all or even most of them in an archaeology of influence, the influence of the past as such is undeniable. (...) Renaissance or modern engagements with antiquity are shaped by many centuries of cumulative earlier engagements, starting in antiquity itself.” (Ibid., pp. 16-7)

120 “[Classical tradition] remains a useful and indeed evocative term referring to the engagement with

classical antiquity in later periods (...). At the same time, some scholars, anxious because of the connotations of conservatism and elitism that the classical tradition cannot always shed, avoid it altogether at the expense of the term ‘reception’. Especially in Britain, reception is sometimes thought to be the less problematic concept of the two” (Budelmann & Haubold, in Hardwick & Stray [ed.], 2008, p. 14).

Adotando esse raciocínio, é óbvio que Boccaccio leu Virgílio influenciado por Dante, Petrarca e por todos os comentadores com os quais possivelmente (ou certamente) teve contato. Por meio de processos e implicações diversas, também nós, hoje, lemos Boccaccio influenciados pelas inúmeras contribuições da psicanálise, da historiografia moderna, do feminismo – por mais que nos esforcemos em manter um olhar “objetivo” sobre o texto, ponderando sobre todo o domínio cultural em que ela foi produzida, ainda assim poderíamos detectar, de modo um tanto anacrônico e não isento de contestações, elementos misóginos ou, diríamos, “machistas” numa obra de retratação como o Corbaccio, por exemplo. Bradshaw (1987) resume bem essa ideia ao falar do Hamlet de Shakespeare:

Even if we were so perverse as to want to read Hamlet as though Goethe and Mackenzie, Turgenev and Freud has never existed we still could not do so, any more than we can see what our grandparents saw in photographs of our parents as children – the intervening writers have shaped the sensibilities we bring to Hamlet. Trying (...) to cut out the intervening commentary by seeing the play in strictly ‘Elizabethan terms’ is unhistorical as well as aesthetically impossible. (Bradshaw, 1987, p. 96)

Indo mais ou menos nessa mesma direção, Conte (2014, p. 76), que diz evitar o conceito de “influência” por seu caráter extrínseco, insuficiente para definir as relações sistemáticas que reúnem textos diversos numa mesma tradição, constata que o processo de imitação é um convite à releitura dos modelos. Assim, na visão do estudioso, as obras literárias não seriam apenas memórias, porquanto elas também “influenciam” os seus predecessores, na medida em que modificam e reorientam a importância destes no corpus da tradição.121

É precisamente por isso, então, que todo sentido seria “constituído ou atualizado no ponto de recepção” – para utilizarmos a frase quase icônica de Martindale (1993, p. 3), tão

121 “Si deve tener in debito conto che la pratica dell’imitazione classica è anche un invito alla lettura

doppia dei testi, vale a dire è un invito a decifrare il loro rapporto con i modelli: i modi di lettura di ogni epoca sono anche impliciti nei loro modi di scrittura. In questo senso le opere letterarie non sono mai semplici memorie, esse riescrivono i loro ricordi, paradossalmente potremmo dire – se dobbiamo conservare questo termine – che ‘influenziano’ i loro predecessori, in quanto li modificano e ne rideterminano la rilevanza entro il corpus della tradizione” (Conte, 2014, p. 76). “The existing monuments form an ideal order among themselves, which is modified by the introduction of the new (the really new) work of art among them. The existing order is complete before the new work arrives; for order to persist after the supervention of novelty, the whole existing order must be, if ever so slightly, altered; and so the relations, proportions, values of each work of art toward the whole are readjusted; and this is conformity between the old and the new” (Eliot, 1932, p. 5)

recorrente entre os estudiosos de recepção.122 Porque, no fim, toda leitura é mediada e situada historicamente; e da mesma forma que todo texto comporta outros textos, e que todo discurso remete a outros discursos, toda leitura comporta – é “influenciada”, por que não? – por outras leituras, incluindo aquela que o próprio autor faz de seus modelos.123 Em última instância, tal ideia estaria relacionada também ao efeito retroativo da intertextualidade: o “texto de chegada”, por assim dizer, quase forçosamente influi na leitura do “texto de partida”.124

Trabalhar com recepção, porém, implica fazer algumas escolhas. Atravessar todo aquele oceano que liga Boccaccio a Virgílio, ou Boccaccio à Antiguidade de um modo mais amplo, só é possível se fizermos algumas paradas e recortes estratégicos. E é precisamente nesse ponto que chamamos a alusão (ou o intertexto, como se preferir) de volta à cena. Afinal, estudar a recepção de uma tradição num determinado autor ou obra parece ser uma tarefa ambiciosa ou mesmo dispersiva, dada a sua complexidade e extensão, além de exigir do crítico o domínio das duas culturas em apreço. Por outro lado, partir da análise de ecos intertextuais verificados entre dois textos para, então, considerar o contexto maior em que tal processo ocorre – ou, usando os termos de Conte, partir da análise da memória poética a fim de se chegar à tradição que lhe forneceu os materiais de uso, ou vice-versa – parece ser um objetivo mais modesto e viável. Pois, na realidade, a alusão não deixa de ser também um produto da recepção.

Conforme demonstrado por Stephen Hinds em Allusion and Intertext (1998), “intertextualidade” e “alusão” são termos que frequentemente se fundem com o conceito de “recepção”.125 Ao reconhecer o caráter autoreflexivo da alusão, compreendendo-a como uma espécie de “autocomentário” ou “autoanotação”, que traz o foco para si e assinala sua própria existência no texto, Hinds acaba concluindo que toda alusão é, na prática, (re)construída pelo leitor no ponto de recepção:

122 “All meaning is constituted or actualized at the point of reception” (Martindale, 1993, p. 3). A

respeito desse “mantra” de Martindale, cf. Batstone, “Provocation: The Point of Reception Theory” (in Martindale & Thomas [ed.], 2006, pp. 14-20).

123 Particularmente no caso dos clássicos, deve-se considerar ainda a questão do estabelecimento do

texto, haja vista que toda edição crítica envolve um trabalho de seleção de certas passagens, o que, por sua vez, também implica critérios sobre estilo, linguagem, etc. Antes de ser “recebido” pelo leitor, portanto, esse texto já teria sido “recebido” por um editor, que fez sobre ele inúmeras intervenções.

124 “Intertextual reading is the opposite of linear reading. For this reason, it always entails a

retroactive movement” (Lowell, 2001, p. 153). Cf. item “Retroactive Intertextuality” também em Lowell (ibid. pp. 159-63).

125 “‘Intertextuality’ and ‘allusion’ are terms that largely overlap with ‘reception’, and Hinds’ book is

quite frequently cited by students of Renaissance literature interested in the use of classical models” (Hardie, 2013, p. 197). Cf. também Kallendorf, in Martindale & Thomas (ed.), 2006, pp. 67-79.

allusive self-annotation, like any other aspect of poetic meaning, is always, in practice, something (re)constructed by the reader at the point of reception. This could lead to a more radical formulation, namely that all allusions, at the moment in which they are apprehended as such, incorporate an element of self-annotation, in that just to recognize an allusion, any allusion, is to hear in it the affirmation ‘Yes, I am an allusion’ – within, or besides, all the other things which it may be saying. (Hinds, 1998, p. 10)

Com base nessas considerações, em nosso estudo partiremos do princípio de que a arte alusiva – ou intertextualidade, ou memória poética – verificada na Olympia de Boccaccio relaciona-se com um laborioso processo de recepção, tanto no que diz respeito ao poeta, quanto no que diz respeito ao leitor e crítico: este, dispondo de seu repertório de leituras, de seu conhecimento de mundo e de seu contato com os escritos de um autor ou autores, busca reconstruir no texto a intencionalidade daquele que alude – não como um psicógrafo, mas como um detetive que segue as pistas ali encontradas. Ora, a recepção é sempre um ato duplo, porquanto envolve o processo do leitor lendo o texto de um autor que, por sua vez, leu e se apropriou de outro(s) texto(s).126

O poeta se apropria de certos modelos associados a uma tradição ou mais, e atualiza ou ressignifica os sentidos desses modelos de acordo com a tradição na qual está engajado. Mas tal apropriação não se dá como uma transmissão passiva, e tal tradição não é simplesmente um fardo que o poeta carrega, pois aquela não seria uma ordem absoluta e inescapável da qual ele se veria dependente e ansioso por escapar.127 A tradição seria, antes, um sistema articulado de costumes e saberes compartilhados e circunscritos num tempo, não determinantes, e que exigiriam um grande esforço por parte do artífice para serem assimilados e manejados com sucesso; bem como por parte do leitor ideal, que seria capaz de (re)construir esse processo.

Nesse sentido, os gêneros poéticos podem ser vistos também como formas de tradições, que, pautadas num conjunto flexível de regras e expectativas compartilhadas,