• Nenhum resultado encontrado

II. Olympia e os gêneros poéticos

2.1. Olympia e o gênero bucólico

Antes de passarmos à analise das relações intertextuais verificadas no poema Olympia, achamos por bem considerar, ainda que brevemente, a questão do estatuto do gênero bucólico, quer na Antiguidade, quer sobretudo no período em que Boccaccio escrevia, uma vez que neste momento a produção pastoril ainda não estava tão bem consolidada quanto poderíamos supor.153 Pensando nisso, pretendemos observar, em linhas gerais, os desdobramentos e fases que a poesia bucólica teve no interior da própria obra boccacciana, a fim de divisarmos não uma linha evolutiva na história do gênero, mas sim um movimento fluido de inúmeras trocas e experimentações. Se é verdade que Dante fornecerá um modelo de composição bucólica a partir de sua correspondência com o poeta e gramático italiano Giovanni del Virgilio (XIIex-XIVin); e que Petrarca, com a sua coletânea de éclogas, apresentará outro, mais rigoroso e “clássico” na adoção dos parâmetros antigos; Boccaccio, em seu turno, participará daquelas duas experiências poéticas, que, apesar de divergentes, terão em comum uma base de tradição exegética virgiliana tardoantiga e medieval.154 Assim, o nosso autor vai-se exercitar tanto no gênero da écloga mais convencional, conforme atestam suas composições do Buccolicum carmen, quanto no “subgênero” da correspondência bucólica, conforme se vê em suas epístolas versificadas a Francesco (“Checco”) di Meletto Rossi (1320-63), escritas entre 1347 e 1348.

Ao considerarmos essa modalidade poética, contudo, devemos lembrar que, tanto quanto a poesia lírica, o conceito de poesia bucólica ou pastoril é bastante indefinido. Na verdade, a falta de um consenso no que diz respeito ao seu estatuto se revela já no emprego cambiável dessas nomenclaturas; ora, apesar de serem comumente empregados como sinônimos pelos críticos e estudiosos modernos, os termos “bucólico” e “pastoril” a princípio não seriam equivalentes.155 De fato, segundo Halperin (1983, p. 8), os dois vocábulos apontam para uma afinidade no plano semântico e etimológico – o adjetivo “bucólico” sendo derivado, provavelmente, do substantivo grego boukólos, significando “boiadeiro”, “guardador de bois”, “pastor”; e “pastoril”, por sua vez, do latim pastor, com a mesma acepção. No entanto, conforme adverte o estudioso (ibid.), quando aplicados à poesia, esses termos parecem cumprir funções distintas na Antiguidade – o primeiro sendo usado como

153 Lorenzini, 2011, p. 4. 154 Ibid., p. VIII.

termo técnico para se referir a um tipo específico de composição e podendo ser empregado como título; e o segundo como meramente descritivo, denotando uma relação do conteúdo com a pecuária. Assim, apenas posteriormente o vocábulo “pastoril” seria empregado num sentido mais estrito, classificatório, passando então a se confundir com “bucólico”.

Outro ponto fundamental é que, no que concerne à sua configuração típica, caracterizada, por um lado, pelo hexâmetro datílico e, por outro, pelos temas de que trata, quase sempre relacionados a um eu poético que assume a forma de um pastor, a poesia bucólica é “ora vista como um subgênero do epos ora como uma espécie de lírica” (Hasegawa, 2004, p. 12). Debates como esse colocam em xeque a própria concepção de gênero tal como herdada da tradição aristotélica – motivo pelo qual alguns estudiosos, na tentativa de contornar certas ambiguidades taxonômicas e de trazer para o foco os meios vinculados a uma determinada tradição poética, preferem muitas vezes recorrer à noção de modos, em detrimento daquela mais convencional de gêneros literários.156 Seguindo essa vertente, então, a pastoril seria um modo composicional, e não um gênero propriamente dito.

Não entraremos, aqui, em discussões terminológicas, mas concordamos com Frye (1957, apud Halperin, 1983, p. 34) quando este diz que o propósito da crítica no tratamento dos gêneros não é tanto o de classificar, mas sim o de clarificar tradições e afinidades entre poemas, até porque “a base da crítica genérica é, em todo caso, retórica, no sentido de que o gênero é determinado pelas condições estabelecidas entre o poeta e seu público” (tradução nossa).157 Trate-se de um modo ou de um gênero, portanto, para o presente estudo o que importa é reconhecer que a poesia bucólica, tanto quanto a épica ou a tragédia por exemplo, é também dotada de especificidades e convenções próprias, passíveis de codificação e identificação.158

Nesse sentido, por poesia bucólica ou pastoril entendemos a poesia que tem pastores como personagens; que é frequentemente autorreferencial (na mesma medida em que a poesia lírica o é);159 e que pode assumir a forma narrativa ou dramática, mas com

156 Halperin, 1983, p. 34.

157 “The basis of generic criticism is in any case rhetorical, in the sense that the genre is determined

by the conditions established between the poet and his public” (Frye, 1957, pp. 246-47, apud Halperin, 1983, p. 34).

158 Sobre as diversas concepções de “gênero” empregadas modernamente para tratar do fenômeno

antigo, cf. Depew & Obbink, 2000.

159 Assim como na lírica, a presença de um eu poético que se coloca em primeira pessoa e que

expressa suas opiniões e sentimentos acerca de um determinado assunto deve ser apreciada como um aspecto estrutural da poesia bucólica, i.e. uma convenção, e não necessariamente uma manifestação da subjetividade do autor empírico. Tal procedimento contribui para aquilo que Achcar, com referência à poesia lírica, apontou como fides (Achcar, 1994, p. 44).

predominância da última.160 O metro convencionalmente utilizado é, como dissemos, o hexâmetro datílico; e, no plano do conteúdo, são recorrentes os temas do amor erótico, encômios e lamentos fúnebres, que não raro aparecem sob a configuração de amebeus (disputa entre dois pastores-cantores em versos alternados). E assim como se diz ocorrer com muitos gêneros, também a poesia bucólica traça um percurso que, de certo modo, remontaria a Homero.161

Isso porque já na Ilíada e na Odisseia encontramos cenas posteriormente reconhecidas como pastoris (por exemplo em Il. XVIII, 520-9, trecho em que se descrevem pastores conduzindo seus rebanhos ao som da siringe; e em Od., V, 55-75, no qual é descrita a aprazível gruta da ninfa Calipso).162 Séculos mais tarde, esse mesmo material será recolhido por poetas alexandrinos, posteriormente referidos como Bucolici, dentre os quais se destacam Mosco (II a.C.), Bíon (c. IIex / Iin a.C.) e Teócrito (c. 310-250 a.C.).163 Sobretudo neste último, vemos combinações profícuas de imagens e cenas do campo, que são exploradas em detalhes e ocupam papel central nos seus Idílios (em grego eidúllia, forma plural e no diminutivo de eidós, “tipo”, “forma”, com a acepção de “pequenos poemas”). Daí advém a longa fama de Teócrito como primeiro poeta pastoril.164 Não obstante, costuma-se apontar que o corpus teocriteano abarcaria, sem distinção, uma variedade de outros temas além do campestre, como aqueles de teor urbano, mitológico ou panegírico – na verdade, tal característica atenderia ao preceito da poikilía dos alexandrinos.165 De qualquer modo, essa diversidade temática tornaria difícil o reconhecimento do siracusano como fundador da poesia bucólica. Mais usualmente a

160 Nouimus autem tres characteres hos esse dicendi: unum, in quo tantum poeta loquitur, ut est in

tribus libris georgicum; alium dramaticum, in quo nusquam poeta loquitur, ut est in comoediis et tragoediis; tertium, mixtum, ut est in Aeneide: nam et poeta illic et introductae personae loquuntur. Hos autem omnes characteres in bucolico esse conuenit carmine, sicut liber etiam iste demonstrat (Sérvio, Comm. In Verg. Buc. III, 1. “Sabemos, porém, que existem estes três modos do discurso: um [sc. o narrativo], em que somente o poeta fala, como é nos três primeiros livros das Geórgicas; outro, o dramático, em que o poeta em nenhuma parte fala, como é nas comédias e tragédias; um terceiro, o misto, como é na Eneida, pois lá tanto o poeta como as personagens introduzidas falam, assim como este livro [sc. das Bucólicas] também demonstra”, tradução de Alexandre Hasegawa, 2004, pp. 35-6). Vale ressaltar que esse tipo de divisão dos gêneros poéticos já se esboça em Platão (cf. Rep. III, 392c-8b).

161 Heyworth, in Harrison (ed.), 2005, p. 148. 162 Cf. Hasegawa, 2004, pp. 1-2 e 4-6; e Croft, 1973. 163 Heyworth, 2005, p. 148.

164 Sobre a tópica do primus inventor na literatura antiga, cf. Citroni, 2006, pp. 204-234.

165 A noção de poikilía, embora fundamental para a compreensão da poética antiga, pode adquirir

significados sutilmente diversos. Os gregos usavam esse termo para se referir, especificamente, ao efeito produzido pela junção de diferentes cores e e materiais em um único objeto, mas também para expressar ideias mais genéricas como as de variedade, versatilidade, mescla, complexidade. O LSJ (Liddell-Scott-Jones online Greek-English Lexicon) oferece as seguintes definições de poikilía: “marking with various colors, embroidering; being marked with various colors, striped, spotted; varied aspect, diversity; variety, intricacy, ornamentation”. Essa noção primordial é aplicada em vários contextos: no campo das artes e dos ofícios, bem como na música, na poesia, na retórica, na medicina e na política (Grand-Clément, in Destrée & Murray, 2015, p. 406).

crítica reserva esse posto disputadíssimo a Virgílio, que com as suas Bucólicas teria efetuado a consolidação de um dos gêneros a receber maior fortuna no ocidente.166

Produto originalmente grego ou romano, o fato é que a cana rústica só passaria a ser adotada como instrumento poético a partir do período helenístico, e só chamaria a atenção dos gramáticos e comentadores após a ampla circulação das éclogas virgilianas. O comentador Sérvio (IVex-Vin d.C.), por exemplo, faz uma comparação entre o estilo das Bucólicas e os estilos da Eneida e das Geórgicas, identificando diferentes qualidades nas três obras do mantuano:

Qualitas autem haec est, scilicet humilis character. Tres enim sunt characteres, humilis, medius, grandiloquus: quos omnes in hoc inuenimus poeta. Nam in Aeneide grandiloquum habet, in Georgicis medium, in Bucolicis humilem pro qualitate negotiorum et personarum: nam personae hic rusticae sunt, simplicitate gaudentes, a quibus nihil altum debet requiri.

(Sérvio, In Vergilii Bucolicon Librum pr. 1, 16-21)

A qualidade, porém, é esta, a saber: o estilo humilde. Pois três são os estilos: o humilde, o médio e o grandiloquente, os quais encontramos todos neste poeta. Com efeito, na Eneida há o grandiloquente; nas Geórgicas, o médio; nas Bucólicas, o humilde, pela qualidade dos assuntos e das personagens: com efeito, as personagens aqui são rústicas, alegrando-se com a simplicidade, pelas quais nada de elevado deve ser buscado. (Tradução de Alexandre Hasegawa, 2004, pp. 22-3)

Por meio dessas explanações, Sérvio – de modo semelhante ao que fizeram os outros comentadores, Probo (c. 20/30-105 d.C.) e Donato (IV d.C.), em quem Filargírio (V d.C.) também irá se apoiar – acaba definindo fronteiras claras entre os três poemas virgilianos, considerando o estilo das Éclogas como “humilde”. Consequentemente, fica estabelecido como ponto de referência para o exercício em cada um desses estilos ou genera dicendi o poeta Virgílio, que durante séculos será uma fonte inesgotável para a coleta de convenções, tópicas e temas poéticos.167

Fazendo um paralelo, é possível dizer que aquilo que Virgílio representou para a definição da poesia bucólica na Antiguidade, a tríade Dante, Petrarca e Boccaccio representou para a renovação e codificação do mesmo gênero no Renascimento. Com efeito, embora as éclogas virgilianas – e, em menor escala, as de Calpúrnio (I d.C.) e Nemesiano (III d.C.) – continuassem a ser lidas então, crê-se que a prática do gênero bucólico teria caducado no Medievo, restando apenas a sua estrutura retórica de canto dialogado, que frequentemente

166 Cf. Heyworth, 2005, p. 148; e Martindale, 1997, pp. 107-9.

servia como suporte para a exposição do chamado conflictus, isto é, de uma controvérsia poética envolvendo temas os mais variados.168 Tendo sobrevivido por muito tempo assim, somente parte de seu esqueleto, no auge do século XIV um novo sopro vital iria colocar a poesia bucólica em pé, reanimando os seus antigos órgãos. E assim começaria uma nova fase na história do gênero, extremamente fértil, que daria frutos no latim – é o caso do Buccolicum de Boccaccio – e no vernáculo – da famosa Arcadia (1504) do italiano Iacopo Sannazaro, e do Shepheardes Calender (1579) do inglês Edmund Spenser.169

Sob essa perspectiva, a correspondência poética entre Dante e Giovanni del Virgilio deve ser considerada um evento literário de não pouca importância.170 Entre os anos 1319 e 1320, Giovanni del Virgilio, professor de retórica da Universidade de Bolonha, enviava uma epístola métrica a Dante, solicitando ao autor da Commedia que se empenhasse em compor um poema digno de um vate, um carmen vatisonum (del Virgilio a Dante, Ecl. I, 24) – entenda-se um poema latino de estilo elevado e argumento épico.171 Em resposta, Dante envia ao amigo não uma epístola convencional, tampouco um poema épico, mas sim uma écloga latina, dialogada, na qual reivindica para si a honra de ser um poeta vulgar. Não obstante, ele finaliza com a promessa de dar “dez vasos” de leite (decem vascula – Dante, Ecl. II, 64) a Giovanni del Virgilio – ali nomeado Mopso –, que poderiam ser entendidos, metaforicamente, como dez cantos, dez éclogas ou ainda dez livros de éclogas segundo o modelo virgiliano.172 Consequentemente, valendo-se de convenções da poesia bucólica como expediente retórico para a troca de missivas, Dante abria o caminho para uma retomada do gênero pastoril, porém não de modo programático, e mantendo algo característico daquele conflictus medieval.

Logo se iniciaria uma verdadeira tendência: estimulado pela correspondência com Dante, em 1327 Giovanni del Virgilio envia uma longa epístola bucólica a Albertino Mussato (1261-1329), na qual recorda o episódio da coroação poética deste. E, embora não tenhamos

168 Lorenzini, 2011, p. 4. Sobre a relação entre o conflictus medieval e a poesia bucólica, cf. Stotz, in

Pedroni & Stauble (cura), 1999, pp. 165-87.

169 Cf. Lorenzini, op. cit.

170 “La corrispondenza poetica tra Dante e Giovanni del Virgilio rappresenta, in questa prospettiva, un

evento letterario di straordinaria importanza, determinando ‘a drammatically novel situation’ come l’ha giustamente definita Giuseppe Velli, cogliendo il carattere profondamente pionieristico e innovativo di questo episodio culturale” (Lorenzini, ibid., pp. 4-5). Cf. Velli, in Dutschke et al. (cura), 1992, pp. 68-78. A autenticidade da correspondência poética entre Dante e del Virgilio é ponto debatidíssimo, em que não poderemos nos aprofundar – chega-se a cogitar, inclusive, uma falsificação de Boccaccio. Cf. Rossi, 1963a, pp. 133-278; 1963b, pp. 130-72; 1968, pp. 61-125.

171 Cecchini, 1979, p. 647; Lorenzini, ibid., p. 5. 172 Cecchini, ibid., p. 669, n. ad loc.; Lorenzini, ibid.

registros de uma resposta, podemos deduzir dos versos do magister bolonhês que ele previa uma réplica de Mussato:173

Da(m)pnis. “At prius hinc illum potes excitare sonoris

iam calamis et forte gravi subducere sompno quo silet invitus. Si cui cantare haberet, respondebit ovans. Tangatur carmine vates nec tempus perdendo dato solatia nobis.”

(del Virgilio, Ecl. Muss. 200-4, ed. Lorenzini, 2011)

“Mas então, que primeiro você possa estimulá-lo com sons, e logo após, com cálamos, afastá-lo prontamente do pesado sono, que o silencia sem querer. Se ele tivesse que cantar para alguém, responderia de bom grado. Que o vate seja tocado pelo canto e, sem perder tempo, dê-nos consolações.”

Alguns anos depois, entre 1347 e 1348, quando hóspede do senhor de Forlì Francesco degli Ordelaffi, Giovanni Boccaccio, também seguindo o modelo pastoril dantesco, dá início à sua correspondência poética com o secretário Checco di Meletto Rossi. Entretanto, diferentemente do que ocorrera com seu predecessor, Boccaccio se utiliza da estrutura epistolar como pretexto para compor versos bucólicos, e não o contrário:

È significativo che, volendo fare poesia bucolica, Boccaccio senta ancora la necessità di adottare una struttura epistolare: evidentemente essa forniva la necessaria premessa per potere comporre versi pastorali, denunciando in questo modo, da una parte, la influenza dantesca, dall’altra, una non ancora matura padronanza e conoscenza della tradizione bucolica classica (la fictio bucolica del dialogo tra i pastori è infatti esterna a ogni singola egloga). (Lorenzini, 2011, p. 8)

Visto que são documentos preciosíssimos, de valor inestimável quando se fala na história do gênero bucólico, é de se lamentar que tais composições tenham recebido tão pouca atenção da crítica e que, mesmo quando republicadas tardiamente, em 1928,174 escolhas editoriais acabaram por sacrificar a origem epistolar dessas primeiras éclogas boccaccianas. Essa falta foi apontada e ao mesmo tempo suprida recentemente pela já citada estudiosa Lorenzini (2011), em sua edição comentada da correspondência bucólica entre Giovanni Boccaccio e Checco di Melletto Rossi, bem como da écloga de Giovanni del Virgilio a Albertino Mussato. Contribui para esse descaso, ainda, a censura que o próprio Boccaccio teria imputado às suas duas epístolas bucólicas – uma das quais seria, inclusive,

173 Lorenzini, ibid., pp. 7-8.

cuidadosamente revisada e adaptada por ele, dando origem ao poema Faunus, presente no Buccolicum carmen.175

Embora trate de temas diversos, parece ser um traço comum nesse tipo de correspondência o reiterado uso da alegoria, que seria, com efeito, uma herança da cultura letrada tardoantiga e medieval, em grande parte devida aos comentários de Sérvio à obra de Virgílio.176 Frequentemente se observa nessas epístolas o uso de “máscaras” poéticas, que ocultariam a face de personalidades reais ou mesmo mitológicas. Conforme vimos na seção 1.2, esse mesmo recurso seria empregado de modo ostensivo por Boccaccio no seu Buccolicum. A observação atenta dos textos e de seus respectivos contextos, somada aos relatos dos próprios poetas acerca desse processo criativo, revela a necessidade de um elevado esforço de engenho tanto para a codificação (por parte do poeta) quanto para a decodificação (por parte do leitor) da fictio bucólica. De fato, da mesma forma que é possível ler um texto poético como a Eneida sem necessariamente reconhecer as suas inúmeras alusões à Ilíada e à Odisseia, pode-se também ler as éclogas desses autores trecentistas sem precisar “desvendar” as alegorias nelas presentes; porém em ambos os casos a experiência poética será outra, e também a fruição dos efeitos de sentido por parte do leitor se dará de outro modo.

Pelas considerações que tece acerca do processo alegórico e também do gênero bucólico, vale a pena nos reportarmos, mais uma vez, à Epistola XXIII de Boccaccio.177 Vimos que nela o certaldense apresenta os personagens Sílvio e Olímpia como invólucros poéticos que ocultariam a face do próprio poeta e de sua filha morta, respectivamente. No que concerne ao modelo de imitação da prática alegórica na denominação destes e de outros personagens, no início do mesmo documento Boccaccio afirma que, mais do que ao grego Teócrito ou mesmo a seu “preceptor” Francesco Petrarca, preferiu seguir Virgílio:

[1] Theocritus syragusanus poeta, ut ab antiquis accepimus, primus fuit qui

greco carmine buccolicum excogitavit stilum, verum nil sensit preter quod cortex ipse verborum demonstrat. Post hunc latine scripsit Virgilius, sed sub cortice nonnullos abscondit sensus, esto non semper voluerit sub nominibus colloquentium aliquid sentiremus. Post hunc autem scripserunt et alii, sed ignobiles, de quibus nil curandum est, excepto inclito preceptore meo Francisco Petrarca, qui stilum preter solitum paululum sublimavit et secundum eglogarum suarum materias continue collocutorum nomina

175 Cf. Lorenzini, 2011, p. 10. O reconhecimento de Boccaccio (talvez imbuído de uma “modéstia

afetada”) da inferioridade de suas próprias éclogas escritas antes da finalização do Buccolicum carmen pode ser atestado num trecho da Gen. deo. XIV, X, citado na seção 1.2 de nossa “Introdução”.

176 Cf. Jones Jr., 1961, pp. 217-26.

177 As considerações que se seguem foram expostas, parcialmente, no nosso texto “O biográfico, o

fictício e o sagrado: personagens e alusões no poema Olympia de Giovanni Boccaccio”, que apresentamos no XX SETA – Seminário de Teses em Andamento, realizado entre os dias 3 e 5 de novembro de 2014 no IEL/Unicamp.

aliquid significantia posuit. [2] Ex his ego Virgilium secutus sum, quapropter non curavi in omnibus colloquentium nominibus sensum abscondere (Epistola XXIII, 1-2)

[1] O poeta siracusano Teócrito, conforme nos transmitem os antigos, foi o primeiro que na poesia grega concebeu o estilo bucólico, porém nada discerniu senão aquilo que o córtice de suas palavras demonstra. Depois dele escreveu em latim Virgílio, mas sob o córtice escondeu alguns sentidos, se bem que nem sempre ele quis que discerníssemos algo sob o nome dos interlocutores. Depois dele escreveram outros, mas ignóbeis, com os quais não nos devemos preocupar, à exceção de meu insigne preceptor Francesco Petrarca, que elevou o estilo um pouquinho além do habitual e, conforme a matéria de suas éclogas, continuamente acrescentou algum significado aos nomes de seus interlocutores. [2] Desses, eu segui Virgílio, porquanto ele não se preocupou em esconder um sentido nos nomes de todos os interlocutores.

No excerto acima, Boccaccio não apenas revela qual teria sido o modelo principal para a escolha dos títulos e dos nomes dos interlocutores de suas éclogas, mas ainda apresenta uma justificativa para tal escolha; esta se dá, como vemos, em relação às obras de outros