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I. Introdução

1.3. Metodologia de análise

1.3.2. Intencionalidade

Dialoga com esse ponto um tanto polêmico e controverso na teoria intertextual a leitura que Conte faz mais recentemente, em Dell’imitazione: furto e originalità (2014), a respeito do problema crucial da intencionalidade da imitação.106 Nesse pequeno livro, publicado quatro décadas após o Memoria dei poeti, Conte (2014, p. 8) começa dizendo que antes ele supunha que a originalidade devia se afirmar apesar da imitação; hoje, ele declara que a imitação é, muitas vezes, a própria via da originalidade. Então, o estudioso italiano aponta que, para indicar procedimentos imitativos e intertextuais, o filólogo frequentemente se vê obrigado a apresentar evidências “fatuais” e dados explícitos no texto, o que, segundo ele, parece ser uma limitação do método. Na rica enciclopédia da memória, prossegue Conte (ibid., p. 10), obviamente existem muitas coisas além de um único texto, mas não seria lícito crer que tudo aquilo que é potencialmente memorizável fosse objeto de imitação. Assim, Conte conclui que só aquilo que é realmente motivado pode ser considerado pertinente para o trabalho do filólogo.107 Mais adiante, já na segunda parte do livro, após passar por uma

106 “Mi riferisco all’arte allusiva, e anche al cruciale problema dell’intenzionalità dell’imitazione. Non

è che io sia pentito, solo che i secondi pensieri, quelli di oggi, mi paiono più ragionevoli dei primi” (Conte, 2014, p. 8).

107 “Il metodo intertestuale sembrava per così ‘povero’, in quanto si esercitava soltanto su dati

revisão breve porém atenta dos desdobramentos do estruturalismo nos estudos linguísticos, literários e filológicos, o estudioso propõe um retorno à questão embaraçosa da intencionalidade na arte alusiva.

Segundo Conte (ibid., pp. 81-2), o “anti-intencionalismo” dos estruturalistas tinha seu fundamento na crença da autossuficiência da linguagem: o significado de um texto seria determinado não pelas intenções, mas pelo próprio sistema linguístico. Porém, se por um lado o estruturalismo e seus instrumentos davam conta do texto literário enquanto objeto autônomo e produto de um processo artístico, por outro, o caráter estético desse mesmo texto, que teria sua realização confiada à inteligência cooperante do leitor, acabou sendo mortificado. Em outras palavras, negligenciou-se o fato de que o texto literário seria projetado também como um mecanismo para comunicar, e não apenas para existir autonomamente. A consequência desse estruturalismo mais ortodoxo, pondera Conte (ibid., p. 82), foi descuidar do subjetivismo do leitor, enquanto se tentava fugir do subjetivismo do Autor.108 Assim aquele, responsável pela interpretação, poderia dar ao texto a intencionalidade que bem entendesse. A intencionalidade, portanto, coloca-se como um problema tanto para quem toma partido do subjetivismo crítico, como para quem é contra. E para Conte, que diz ter sempre acreditado no caráter intencional da arte alusiva, a intencionalidade não parece ser um critério decisivo para distinguir a alusão de outras formas de intertextualidade:

quello dell’intertestualità è un problema sia per chi è schierato dalla parte del soggestivismo critico sia per chi è contro. Io che pure ho sempre creduto nel carattere intenzionale dell’arte allusiva, e che pure ribaldisco il mio rammarico per non averne adeguatamente enfatizzato lo status speciale (avrei facilmente potuto), non sono però così certo che l’intenzionalità sia il criterio decisivo per giudicare l’allusione come un caso diverso dalle altre forme di intertestualità. (Ibid., p. 83)109

è intelligenza anche accettare i limiti di un metodo. Nella ricca enciclopedia della memoria, ovviamente, ci sono molte più cose che in un singolo testo, ma non è lecito credere che tutto ciò che è potenzialmente memorizzabile diventi ipso facto oggetto di imitazione. Solo ciò che è realmente motivato il filologo può considerarlo pertinente” (ibid., p. 10).

108 “[Lo strutturalismo,] se era disturbato dal soggettivismo dell’Autore, detentore di intenzioni

inafferrabili e fallaci, era altrettanto disturbato dal soggettivismo del Lettore, libero detentore di interpretazioni troppo spesso inverificabili” (ibid., p. 82).

109 Cf. também Hinds, 1998, p. 48: “The intertextualist critic reacts to the impasse on the poet’s

intention by de-emphasizing the irretrievable moment of authorial production in favour of a more democratic stress upon moments of readerly consumption – on the grounds that, in practice, meaning is always constructed at the point of reception. However, such an approach can shade into extremity. Just as there is a philological fundamentalism which occludes broader discursive dynamics in its privileging of tight authorial control, so there is an opposite kind of fundamentalism – an intertextualist fundamentalism – which privileges readerly reception so single-mindedly as to wish the alluding author out of existence altogether. The useful heuristic metaphor of the ‘death of the author’ has become too easy, and is too often justified through routine appeals to the liberation of the text from the supratextual speculations of (long-defunct) biographical intentionalists. It is (or should be)

Não obstante o reconhecimento do fantasma da intencionalidade, que inevitavelmente se coloca entre o leitor/crítico e o texto, o filólogo italiano admite em seguida que existe, de fato, um risco em procurar no texto a consciência de um autor, a sua intenção reflexiva ou premeditada. Contrariamente, a descoberta dos modelos, tanto “voluntários” quanto “involuntários”, pode dizer algo de verificável sobre a criatividade dos poetas: “se não sobre a consciência deles, ao menos sobre seus gostos, sobre suas leituras assimiladas, sobre a oficina memorial do seus textos” (ibid., p. 89, tradução nossa).

Da nossa parte, acreditamos que a intencionalidade pode vir a ser considerada e analisada pelo crítico como parte estruturante da alusão, desde que o contexto direcione a leitura para isso. Afinal, como bem lembra Conte (ibid., 105), “a alusão quer que o furto seja assinalado, que deixe traços reconhecíveis. (...) Este é o ponto crucial da questão: os sinais. Estes servem de aviso ao leitor e ao filólogo, já que na ausência deles a intertextualidade não funciona” (tradução e grifos nossos).110

Acreditamos, portanto, que o funcionamento da alusão deve ser entendido não só de acordo com a materialidade linguística dos poemas envolvidos, com dados explícitos e “fatuais”, imediatamente reconhecíveis; mas também levando-se em consideração, sempre que pertinente, as condições históricas, políticas, religiosas, culturais; enfim, o contexto maior de produção, de circulação e de interpretação dos poemas, além, é claro, do conjunto de outras obras do autor ou dos autores relacionados. Dispondo de tal base, por certo o crítico terá mais pistas que o ajudem a reconstruir, no texto de chegada, uma “intencionalidade” do sujeito literário. Até porque, nos casos em que isso é possível, a (re)construção do autor, de sua intencionalidade, seria apenas consequência de um padrão que é desenhado num texto voltado para um leitor implícito, “ideal”, o qual é encorajado a fazer tal (re)construção.111

Falar de intencionalidade, em última instância, não deixa de ser também falar de efeito – uma alusão que, por sua própria natureza, provoca no leitor um questionamento acerca de seu papel não só no texto em que aparece, mas no universo fabricado pelo autor em seu conjunto de escritos, pode sim ser considerada uma alusão intencional, isto é, uma alusão que aparenta ter a função de mostrar ou simular uma intencionalidade que perpassa a

much harder to justify the occlusion of the poet as a player in matters involving the close textual explication of particular phrases, lines or paraghraphs”.

110 Cf. Vasconcellos, 2001, p. 66: “Amiúde, a interpretação a ser dada a uma alusão é mais incerta;

insistimos: a nosso ver, o estudioso deve apontar a referência e seus efeitos possíveis; sua argumentação revelará a verossimilhança de sua análise; entretanto, é evidente que jamais se poderá ter certeza absoluta da real intenção do poeta, pela natureza mesma do intertexto, um espaço de leitura entre os textos, com sentidos não explicitados”. Cf. também discussão sobre o papel dos “marcadores alusivos” em Prata (2002, pp. 36-42).

111 “The author thus (re)constructed is one who writes towards an implied reader who will attempt

concretude daquele texto específico.112 Às vezes, por exemplo – e isso fica particularmente visível nos escritos de certos poetas renascentistas, como o próprio Boccaccio –, ali onde há uma alusão, há também um projeto de carreira poética, ou seja, uma intenção do autor esboçar um ethos para si, intenção essa que não pode ser simplesmente ignorada pelo especialista.113 E considerar a tradição ou o costume literário em que tal poeta está inserido, ou na qual ele pretende se inserir, acaba sendo um fator relevante, dentro de uma série de outros fatores, que sinaliza o “comportamento” do intertexto; inversamente, a arte alusiva pode fornecer o meio do crítico, e mesmo do poeta, adentrar numa tradição.