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Os experts e os livros didáticos de matemática – este é o tema do dossiê publicado em 2018 no segundo volume da Revista de História da Educação Matemática. Nesta edição da revista, figuram os relatos de professores-autores de livros didáticos de matemática, que descrevem episódios de suas próprias trajetórias profissionais. Nos textos produzidos para a edição especial da revista, os autores dão-nos a conhecer elementos que dizem respeito aos bastidores da produção editorial, ao papel de protagonista ocupado pelo estado de São Paulo no campo da produção do livro escolar na segunda metade do século XX, aos cargos institucionais ocupados e às tensões políticas vividas, ao papel das formações realizadas em outros países e dos congressos internacionais na elaboração de suas obras, entre outras questões.

Revirando a memória e os arquivos pessoais, os professores-autores que produziram os relatos para o dossiê registram a dificuldade de contar a própria história. Esquecem-se, por vezes, de datas, nomes, lugares, confundem fatos. O olhar distanciado dos acontecimentos os leva a atribuir um significado à própria história. Ao estabelecerem uma lógica e organizarem em sequência ordenada os fatos que conseguem lembrar e, ao mesmo tempo, reservar ao esquecimento aqueles menos significativos, os sujeitos produzem a respeito de si uma biografia ilusória, mas que não diminui a sua importância como relato histórico.

Em texto intitulado L’illusion biographique, datado de 1986, Pierre Bourdieu discute o efeito sobre a produção historiográfica dessa característica dos relatos biográficos e autobiográficos de atribuírem aos eventos que compõem a própria história a ideia de certa ordem cronológica, que, também, é uma ordem lógica, que busca tornar inteligível para outros, mas, também, significar para si os acontecimentos que marcaram a própria existência. Os escritos de Bourdieu vêm sendo reiteradamente tomados pelos historiadores como alerta para os riscos que comportam o uso e os abusos da história oral como método de pesquisa.

Contudo, a referência aos relatos de professores-autores citados nestas considerações finais tem outro objetivo, que não o de discutir os limites da produção historiográfica. Eles nos servem de chave para compreensão da pertinência das conclusões e das possíveis contribuições que a pesquisa pode oferecer às investigações no campo da História da Educação Matemática. De maneira específica, os resultados produzidos oferecem pistas que procuram analisar a relação entre a trajetória profissional dos professores-autores de livros didáticos e a produção de saberes necessários à atuação do professor de matemática. Para além disso, ao problematizar as transformações didático-pedagógicas de obras de longa

circulação, a pesquisa põe em questão a consequências da participação de atores sociais diversos (reformas educacionais, demanda escolar, mercado editorial, etc.) no processo de especialização e institucionalização de saberes profissionais necessários à docência.

Como analisamos no decorrer dos quatros capítulos que compõem o presente trabalho, demarcou a trajetória de atuação do professor e autor de livros escolares Olavo Freire da Silva uma série de fatos históricos, que, analisados à luz dos estudos teóricos referenciais para a pesquisa, concorreram para que a obra Primeiras Noções de Geometria Prática viesse a se constituir como que um repertório de prescrições didático-pedagógicas necessárias à atuação profissional do professor de geometria. Como demonstramos, os acrescimentos de exercícios e problemas, a inclusão de novos temas de estudos e o “desaparecimento” de outros, a indicação de métodos e uso de novos instrumentos para o ensino, são indiciários de um movimento de mudança nos saberes profissionais dos professores que ensinam geometria.

No entanto, tal trajetória de mudanças não deve ser compreendida como movimento linear que conduziria ao aperfeiçoamento progressivo do saber profissional do professor. Antes, este movimento de mudanças, do qual participa a obra de Freire mais também outras obras indicadas para o ensino de geometria para escola elementar, faz parte de um complexo processo histórico de consolidação das especificidades dos saberes que caracterizam a atuação do professor, em especifico do professor de matemática.

Importa nesse sentido considerar que a cada tempo, legislações, movimentos pedagógicos, obras referenciais estrangeiras e nacionais, instituições de ensino e formação, surgimento de novas disciplinas, são elementos que participam cada um a sua maneira da configuração do repertório de saberes necessários ao exercício profissional do professor. Assim, as prescrições para o ensino de geometria que em um dado momento orientam as práticas profissionais dos professores, não seriam nem menos nem mais avançadas que os saberes de outros tempos, mas em certa medida, expressão das contingências próprias de uma época. De maneira específica a obra de Freire, pelos elementos que cercam sua produção, relacionados com a estruturação do sistema educacional nacional e a discussão sobre a importância da geometria como saber necessário a escola elementar, ou ainda pelos postos ocupados pelo autor em instituições referenciais em ensino e formação no país – que lhe valeram condição de expert em questões de ensino –, fizeram com que a obra de Freire em particular, se instituísse como um modelo de como se deveria ensinar geometria para escola elementar. Essa obra vai ganhar longevidade no mercado editorial não tanto pela novidade que possa ter representado suas prescrições didático-pedagógicas, embora não se posse

desconsiderar este elemento como fator do seu sucesso, mas, sobretudo pela a capacidade do editor, por meio de estratégias diversas fazê-la circular entre vários estados nacionais.

Com efeito, a publicação da obra Primeiras Noções de Geometria Prática, de Olavo Freire, fez parte do contexto de valorização do livro escolar como ferramenta de trabalho necessária à atuação do professor. Inseriu-se, portanto, no processo de gradativo reconhecimento das especificidades que caracterizavam a profissão de ensino, que ganhou corpo na segunda metade do século XIX. Nomeadamente, demarcou esse momento histórico a realização de grandes encontros pedagógicos internacionais. No Brasil, a paradigmática realização da primeira Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, em 1883, evidencia como o processo de estruturação do sistema de instrução pública nacional se estabeleceu no diálogo com a circulação internacional dos discursos em educação. Sob a égide da modernização educacional do país, fundaram-se instituições de ensino e formação que atuaram como vitrines das modernidades pedagógicas. É notável a esse tempo o papel de protagonismo assumido pelos experts em assuntos educacionais. Estes sujeitos atuaram como consumidores culturais e produziram, a partir do contanto com o estrangeiro, novas singularidades. Pela rede de sociabilidade a que pertenciam e pelo reconhecimento dos saberes especializados que detinham, produziram novos saberes que receberam a chancela de órgãos oficiais e atuaram também como agentes públicos a serviço do Estado. Nesta condição, compunham comissões, emitiam pareceres, participavam de eventos e congressos internacionais.

Olavo Freire foi um desses personagens; uma espécie de expert em ensino. Atuou em instituições de ensino e formação de professores do estado do Rio de Janeiro, que eram referências nacionais. Suas obras receberam, em vários estados nacionais, a chancela oficial de obras referenciais para o ensino escolar.

Para elaboração do conjunto de saberes que compunham o repertório de prescrições didático-pedagógicas para o ensino de geometria em seu livro, Freire atuou como um consumidor cultural. Produziu sua própria sistematização a partir do emprego e reemprego dos discursos sobre o ensino e a educação do seu tempo. Com inventividade, elaborou maneiras próprias de consumo e organizou formas de apropriação. As transformações que podem ser identificadas a partir da análise das sucessivas reedições de sua obra, fazem parte do processo histórico de constituição de saberes profissionais específicos para o ensino de geometria. Por fim, sua obra, ela mesma, se submetera a usos e apropriações diversos, comprovados pelas numerosas reedições e pelos registros de que, de fato, frequentou os bancos escolares.

Tendo em vista os resultados dos inúmeros trabalhos já produzidos sobre o livro Primeiras Noções de Geometria Prática de Olavo Freire, o presente trabalho de tese, em nosso entendimento, contribui com novos elementos de análise. Entre os quais, destacam-se os aspectos relacionados à rede sociabilidade do autor, o papel do mercado editorial e as possíveis referências internacionais adotadas. Tais elementos, que foram problematizados nas análises produzidas neste trabalho de tese e que ainda não haviam sido efetivamente considerados em outros trabalhos, permitem-nos melhor situar a produção da obra no contexto do seu tempo.

Uma questão em específico, que tem sido recorrentemente tomada nos trabalhos produzidos sobre a obra, parece-nos particularmente importante. Diz respeito às analises que buscam enquadrar Freire no contexto do movimento educacional intuicionista que predominou como modelo pedagógico entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ao que nos parece, conforme aponta os resultados do presente trabalho de tese, não estavam no horizonte da produção de Freire as postulações teórico- pedagógicas formuladas por Pestalozzi de promoção da primazia da intuição sensível como fundamento do ensino. Nesse sentido, não nos parece plausível ler em Freire a sistematização de uma proposta de ensino intuitivo de geometria orientada segundo os pressupostos pestalozzianos de observação, individuação e linguagem, cuja sistematização em procedimentos de ensino deveria conduzir o aluno a comparar, separar, classifica, nomear e definir.

Alguns elementos didático-pedagógicos presentes na obra de Freire remetem ao pensamento pedagógico intuicionista em voga à época, entre os quais a ausência de definições formais, a recorrência a imagens ilustrativas referenciadas no cotidiano do aluno, aplicações práticas de temas de geometria. Tais elementos, no entanto parece mais se caracterizar como consequência do discurso educacional compartilhado à época que questionavam a eficácia dos métodos de ensino então adotados, do que autor como resultado de uma elaboração intencional sistemática.

Mesmo a orientação didática do ensino de uma geometria intuitiva proposta por Jules Dalséme, autor francês que parece ter inspirado a produção de Freire, a intuição pretendida não se apresenta como um método sistemático de ensino a ser seguido. Antes, a noção de geometria intuitiva pode ser entendida como sinônimo de geometria prática, empírica. A abstração, nível máximo da aprendizagem seria para o Dalséme o resultado da soma do conjunto das aplicações concretas da geometria a situações da vida prática.

A proposição do ensino de geometria prática vai se constituir o centro da proposta didática de Freire, e como demostramos, também o entendimento do que viria a ser um “saber prático” esteve sujeito a apropriações e controvérsias. Em todo caso, o que parece estar em questão é a busca por caminhos para o ensino de geometria que levasse em consideração não somente a organização interna do próprio conteúdo a ser ensinado, mas também o aquele que aprende.

Com efeito, conforme aponta Rey (2006), elementos que caracterizam os saberes necessários à atuação do professor podem ser lidos, dentre outras possíveis formas de sistematização, nos termos que compõe um programa proposto de ensino. Estes, em certa medida orientam-se conforme um determinado currículo e nesse sentido são com que a expressão sistematizada “do quê”, e “do como” deve ser ensinado um dado saber.

Como movimento histórico, o currículo é resultado do processo de objetivação de práticas profissionais que põe em nível superação formas de ação vinculadas estritamente a subjetividade daquele que ensina. O currículo profissional encerra por sua vez um conjunto de princípios, uma sequência organizada de situações destinadas a fazer aprender. Esta sequência é planejada. Isso significa, que ela é concebida para uma progressão inspirada por um modelo didático, que leva em conta o quê segundo o autor deve ser a progressividade que é considerada mais favorável à aprendizagem (REY, 2006).

Pode-se assim, nos termos de Rey (2006), ler na proposta didática para o ensino de geometria que se encontra sistematizada no livro de Olavo Freire, um conjunto compartilhado de prescrições e procedimentos necessários ao ensino dessa matéria para os primeiros anos escolares. Tais orientações fizeram parte do repertório dos saberes profissionais necessários ao ensino de geometria em um dado tempo. Sistematizado em Freire, este saber profissional, se apresentou como um modo de ensino de geometria que pretendeu parametrizar a atuação profissional do professor dessa matéria.

Sumariamente, podemos sugerir, pelo menos, três aspectos resultantes das análises desenvolvidas no trabalho de tese, que se apresentam como relevantes às investigações em História da Educação Matemática. Primeiro, a realização de grandes eventos nacionais e internacionais em educação parece se configurar como momento seminal para a produção de inovações pedagógicas e novas produções editoriais. Esses encontros, conforme pudemos verificar, proporcionaram trocas culturais de toda ordem em educação. Os acontecimentos que cercavam a preparação, realização e desdobramentos dão-nos, em boa medida, a ideia dos discursos educacionais em circulação internacional em um dado tempo e como eles participaram da produção nacional de saberes no campo pedagógico.

Segundo, a atuação institucional dos professores experts, que, ao produzirem sistematizações à luz dos conhecimentos que acumularam em suas incursões pelo exterior, indica-nos como foram apropriadas para o contexto nacional as orientações didáticas para o ensino de matemática de outros países. Ademais, a condição privilegiada de agentes públicos desses personagens é indicadora de como os saberes para o ensino dessa matéria se institucionalizaram.

Terceiro, é preciso considerar os efeitos da atuação do mercado editorial sobre a produção e circulação dos livros escolares e, consequentemente, suas implicações na propagação de modelos pedagógicos e práticas de ensino. Como vetores de difusão de saberes didático-pedagógicos, livros escolares parecem preceder, quando não mesmo definir, o teor das normativas oficiais para o ensino de uma determinada matéria. Ao que parece, processos de sistematização e institucionalização de saberes necessários ao ensino mantêm entre si uma relação de simbiose: livros, pela atuação dos experts, sistematizam saberes, que acabam por influenciar outras obras e estabelecer parâmetros para normativas oficiais, que, por sua vez, definem condições e normas para chancelar os livros que consideram apropriados ao ensino. De toda forma, obras longevas parecem cada vez menos sujeitas às determinações das normativas oficiais; elas adquirem como que “vida própria”. Mesmo nos dias atuais, não é difícil identificar autores e obras de longa permanência nos bancos escolares, cujo estudo mais apurado das possíveis mudanças poderia revelar a trajetória percorrida pelos saberes profissionais necessários à atuação dos professores que ensinam matemática.

Por fim, cumpre, em relação às considerações sobre a natureza cientifica do discurso histórico que abriram esta sessão, um último destaque. Assim como os relatos orais, também a operação historiográfica, que transforma práticas em textos escritos, não está isenta das contradições que essa ação comporta. Ao tornar-se texto, a história submete-se a, além de imposições de ordem cronológica, a uma outra: a escrita, por sua natureza, tende a preencher ou fazer desaparecer as lacunas que são a razão de ser da própria pesquisa. Certeau (2011) usa o termo “servidão” da escrita para nomear as distorções que a produção textual provoca sobre os procedimentos de análise. Para ele, somente de fato uma distorção permite a transformação da experiência em texto. Nesse sentido o ponto final deste trabalho de pesquisa é, menos a última palavra sobre o tema, do que a abertura para novas investigações.