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2. CAPITULO 2 OLAVO FREIRE DA SILVA: PISTAS, RASTROS E SINAIS DA

2.4 Olavo Freire, um expert em ensino a serviço do Estado

Olavo Freire reuniu, em sua trajetória de formação e atuação profissional, elementos que o caracterizam de forma indelével. Estudou em uma escola reservada à elite econômica do Rio de Janeiro, exerceu função pública no magistério em escolas primárias e na escola normal da Corte e atuou no Pedagogium. Esses elementos põem em evidência a rede de sociabilidade da qual fez parte; a sua história está intercruzada com a de personalidades e acontecimentos que marcaram o seu tempo.

Freire fez parte de um grupo socioprofissional que reunia professores e autores de livros escolares e que teve início na segunda metade do século XIX, na Corte e na província fluminense. Em comum, os membros desse grupo trabalhavam em instituições modelares de

46 O jornal Diário de Notícias, na edição de janeiro de 1895, publicou a seguinte manchete “está no prelo e será

brevemente publicado o Catalogo de Pedagogia e Methodologia organizado pelo Sr. Olavo Freire, um dos bons discípulos do Dr. Menezes Vieira. Ouvimos fazer as mais lisonjeiras referências sobre o autor do trabalho.” Não conseguimos localizar essa obra, provavelmente não tenha saído do prelo, conforme indica o texto jornalístico.

ensino e formação no Rio de Janeiro e publicaram obras que se tornaram referência para o ensino em outros estados do país. Entre essas instituições de prestígio, havia o Imperial Colégio Pedro II e a Escola Normal da Corte e, com a instauração da República, também o Pedagogium. Tais instituições cumpriram o papel de ser porta-vozes oficiais das políticas governamentais para o ensino e a formação e se estabeleceram como modelos a serem seguidos pelo restante do país.

O papel desses professores/autores de livros escolares vem sendo analisado no sentido de melhor caracterizar historicamente suas trajetórias profissionais. Para Gasparello et al. (2012), a atuação desses personagens evidencia processos de constituição de uma identidade profissional ligada à docência na medida em que seus livros e aulas participaram da “construção das pedagogias e currículos das disciplinas escolares em formação” (GASPARELLO et al., 2012, p. 45).

As investigações sobre esses personagens se utilizam de um alargamento do conceito de “intelectual”, de maneira a aplicá-lo à caracterização do professor como “intelectual da cidade”. Tal perspectiva de análises procura

Investigar a formação, o ingresso e a trajetória desses professores no magistério público, bem como suas contribuições na construção da cultura escolar, sua participação nos grupos de sociabilidade intelectual e sua produção escrita no campo dos saberes e das práticas pedagógicas (SCHUELER, 2008, p.2).

Sujeitos ativos, esses professores produziram obras, livros, compêndios, artigos para revistas especializadas, participaram de exposições e conferências pedagógicas. Eram “produtores de bens simbólicos, mediadores culturais e atores do político, relativamente engajados na vida da cidade e/ou nos locais de produção e divulgação de conhecimento e promoção de debates” (SCHUELER, 2008, p. 3).

Outra possibilidade teórica não excludente, mas completar a essa de caracterização histórica da atuação profissional do professor, pode ser tomada pelos resultados dos trabalhos de Hofstetter (2010) e Hofstetter et al. (2013), já discutidos no Capítulo 1 deste trabalho. Em seus estudos, os autores problematizam o processo histórico de constituição e institucionalização das expertises – conjunto de conhecimentos, atitudes e experiências atribuído a um ou vários especialistas (experts), capazes de examinar uma situação, avaliar um fenômeno, constatar fatos para tomada de decisões sobre questões relacionadas ao sistema escolar.

Pela rede de sociabilidade a que pertencia e pelo desempenho de funções institucionais em órgãos do Estado, Olavo Freire se destacou como especialista em assuntos educacionais. Nessa condição, foi convocado a emitir julgamentos e a produzir diagnósticos sobre temas relacionados ao ensino. Por outro lado, ao sistematizar, em livros escolares, saberes, técnicas e regras que pressupõem uma ordem considerada a melhor para aprender e para ensinar, segundo um método ou modelo pedagógico específico, produziu um saber sobre ensino, uma expertise, que guiou a prática profissional de professores primários em vários estados nacionais.

Nestes termos, podemos considerar Freire como um expert cuja expertise pode ser lida nos saberes que estão sistematizados em suas obras. Esses saberes foram sancionados pela condição institucional que ocupou e pelo reconhecimento de que suas produções responderam a uma demanda de ordem prática educacional do Estado. De maneira específica, o conjunto das prescrições para o ensino de geometria posto na obra Primeiras Noções de Geometria Prática respondeu à questão de como se deveria ensinar geometria na escola de ensino primário à época. Assim, relativamente à primeira abordagem teórica aqui apresentada, poderíamos acrescentar que expert seria uma forma possível de considerar o “professor intelectual”.

É pela condição de expert no exercício de um mandato institucional que Olavo Freire, além de produzir livros escolares para o curso primário, também emitiu pareceres e produziu avaliações sobre temas relacionados ao ensino. Este é o caso dos pareceres emitidos por Freire sobre o livro de aritmética do amazonense Antônio Monteiro de Souza em 1899 ou ainda a revisão e adaptação aos programas do Estado da obra Desenho Geométrico e Elementar de Mello e Cunha em 1903.

As análises desenvolvidas nos dois primeiros capítulos desta tese tiveram por objetivo situar a produção da obra de Olavo Freire no cenário de circulação de ideias, trocas intelectuais e cooperação entre e além-nações, que ocorreram na segunda metade do século XIX. Esse cenário se constituiu pano de fundo para uma progressiva valorização das especificidades da atuação do professor primário e, consequentemente, para definição de um conjunto de ferramentas necessárias ao exercício profissional. Entre essas ferramentas, os livros escolares ganharam posição de destaque, e sua produção foi incentivada pelo Estado.

Não diferentemente, procuramos mostrar como as orientações para o ensino de geometria também se estabeleceram no diálogo com as propostas de ensino dessa matéria em outros países. A obra de Freire, por sua vez, sistematizou um conjunto de prescrições didáticas para o ensino de geometria nos primeiros anos escolares e que se apresentou como

um repertório necessário ao exercício profissional do professor do curso primário, que também se estabeleceu no consórcio com o ensino dessa matéria em outros países, sobretudo a França.

Como demostraremos no Capítulo 3 deste trabalho, a proposição didática de Olavo Freire para o ensino de uma geometria prática pareceu se inspirar em obras francesas em circulação no período, que propunham o ensino de uma géométrie naturelle ou uma geometria intuitiva, entre elas as publicações de Jules Dalséme.

3. CAPÍTULO 3 – QUE GEOMETRIA ENSINAR? ORIENTAÇÕES DIDATICO-