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IV Concurso da responsabilidade civil médica contratual com a responsabilidade civil médica extracontratual

AGENTES MÉDICOS ∗*

B. IV Concurso da responsabilidade civil médica contratual com a responsabilidade civil médica extracontratual

Põe-se o problema de saber «se no comum dos casos de responsabilidade civil médica o doente terá ao seu dispor para além da tutela contratual, a tutela delitual, no pressuposto que o facto ilícito representa simultaneamente uma violação do contrato e um ilícito extracontratual»216217218.

214 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA in “Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico” cit., p. 105.

215 «Neste caso – ainda segundo CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, ibidem, pp. 105-106 –, o anestesista e outros colaboradores do cirurgião deverão ser considerados como auxiliares no cumprimento, cuja escolha é permitida por força dos artigos 1165.º (mandato) e 264.º, n.º 4 (procuração)». Trata-se, todavia, de opinião não consensual na doutrina – como vimos. O que já não suscita controvérsia é que, numa tal hipótese, «só o cirurgião terá um direito contratual à remuneração pelo conjunto dos servços prestados e só a ele se aplicarão as regras da responsabilidade contratual» (CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA in “Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico” cit., p. 106). 216 JOÃO ÁLVARO DIAS (in ob. e loc. ultim. cit.).

217 «É que (...) apesar de, no comum dos casos, os danos médicos resultarem do defeituoso cumprimento de um conjunto complexivo de obrigações assumidas, tais danos sempre seriam susceptíveis de ser reparados, na ausência de contrato, em sede extracontratual, por resultarem da violação culposa de direitos absolutos como são os de personalidade» (ibidem).

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«Em todos estes casos existe um único dano, produzido por único facto»219. «Só que este, além de constituir violação de uma obrigação contratual, é também lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física»220. «A questão que se coloca é, naturalmente, a de saber se ao lesado (credor) será possível invocar simultaneamente as normas correspondentes a uma ou outra espécies de responsabilidade, consoante lhe sejam mais favoráveis»221.

Segundo RUI DE ALARCÃO222, deverá considerar-se, mesmo de jure constituto, «que a solução que se deve ter como consagrada é a da admissibilidade do cúmulo», isto por ser esta, a de concurso de normas, a solução natural, que como tal se deve aceitar na falta de disposição legal em contrário, desde que, no caso concreto, não conduza a soluções materialmente injustas.

Também CARLOS MOTA PINTO223 se pronunciou favoravelmente à tese do cúmulo, nos seguintes termos: «Representando a violação do dever contratual de protecção, simultaneamente, um facto ilícito extracontratual, o prejudicado poderá escolher, em princípio, a tutela contratual ou extracontratual, no caso de esta lhe ser mais favorável a determinados pontos (p. ex., pluralidade de autores do dano)».

Por isso, «o facto de, fundadamente, se considerar que a relação que une médico e doente é, por via de regra, uma relação contratual e que é ao abrigo das respectivas normas que as pretensões ressarcitórias do doente hão-de encontrar, em princípio, adequada tutela, não pode significar de modo nenhum que, a pretexto dum contrato de prestação de serviços sui

generis, adquiram foros de impunidade comportamentos ou actuações médicas (v.g.,

negligentes ou dolosos) que, na ausência dele, cairiam sob a alçada de responsabilidade delitual»224. «Em tais circunstâncias, o contrato acabaria por funcionar como um instrumento de subversão e não de protecção dos direitos do doente»225.

Como tal solução não foi, manifestamente, desejada pelo legislador, temos que, «na falta de disposição legal em contrário deve considerar-se em princípio como solução natural a que permite ao lesado optar entre as duas espécies de responsabilidade, em virtude de o facto constitutivo da responsabilidade do lesante representar simultaneamente uma violação do contrato e um facto ilícito extracontratual»226227.

«Do que se trata não é de um concurso de acções gozando de uma total autonomia, mas de “uma única acção, a que corresponde no plano material um único direito, que tem como 218 «É o caso do cirurgião que deixa um objecto estranho no corpo do paciente» (FIGUEIREDO DIAS-SINDE MONTEIRO, “Responsabilidade Médica em Portugal”, in BMJ n.º 332, p. 40).

219 JOÃO ÁLVARO DIAS (in ob. cit., p. 229). 220 Ibidem.

221 Ibidem.

222 In “Direito das Obrigações”, ed. policopiada, Coimbra, 1983, pp. 211-212. 223 In “Cessão da posição contratual”, Coimbra, 1982, p. 411.

224 JOÃO ÁLVARO DIAS (in ob. cit., p. 231). 225 JOÃO ÁLVARO DIAS, ibidem.

226 JOÃO ÁLVARO DIAS (in ob. cit., p. 232).

227 Também para FIGUEIREDO DIAS e SINDE MONTEIRO (in “Responsabilidade Médica em Portugal”, cit., p. 40), «na inexistência de uma norma que especificamente venha dizer o contrário, se deve aceitar, como a “solução natural”, a da concorrência (rectius, cúmulo) de responsabilidades».

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objectivo unitário o ressarcimento do dano, mas que pode, isso sim, ser fundamentada em diversas normas”»228. «Tratando-se de uma única acção, nada obstará [a] que o autor possa invocar sucessivamente, a fim de justificar juridicamente a sua pretensão, normas atinentes à responsabilidade contratual e à responsabilidade extracontratual»229.

Também para ANTÓNIO PINTO MONTEIRO230, «na falta de uma disposição legal em contrário, deve considerar-se, em princípio, como solução natural a que permite ao lesado a opção entre as duas espécies de responsabilidade, em virtude de o facto constitutivo da responsabilidade do lesante representar simultaneamente a violação de um contrato e um facto ilícito

extracontratual».

Na verdade – como bem sintetiza LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA231 – «facultar ao lesado a escolha entre os regimes que melhor o protejam no caso concreto é a solução que melhor se coaduna com o princípio do favorecimento da vítima». Efectivamente, «Admitir que, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços sui generis, fossem impunes condutas que – na ausência do contrato – integrariam responsabilidade aquiliana, constituiria o paradigma da não protecção do doente. Pelo contrato, as partes não pretendem renunciar à protecção geral que a lei lhes confere: o que pretendem é criar uma protecção acrescida.»

Na jurisprudência, prevalece também a tese segundo a qual, assistindo ao lesado uma dupla tutela (tutela contratual e tutela delitual), ele pode optar por uma ou por outra:

– «Embora com limitações (desde logo as que resultarem de eventuais acordos das partes, dentro do princípio da liberdade contratual), tem-se entendido que o lesado poderá optar pela tutela contratual ou extracontratual, consoante a que julgue mais favorável em concreto.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/6/2001 [Processo n.º 01A1008; Relator: PINTO MONTEIRO]), cujo texto integral está acessível on-line in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf; – «Não sendo pacífica a questão de saber qual das responsabilidades prevalece nem a de saber se o lesado pode recorrer a qualquer uma delas, uma doutrina e jurisprudência maioritária têm entendido que, gozando o lesado da tutela extracontratual, poderá o mesmo optar pelo regime que lhe for mais favorável.» (Acórdão do STJ de 22-02-2005 [Revista n.º 4055/04 - 1.ª Secção; Relator – PINTO MONTEIRO]), – cujo sumário consta da resenha jurisprudencial organizada pelo Gabinete dos Juízes Assessores – Assessoria Cível do STJ, em Fevereiro de 2012, sob o título “A responsabilidade civil por acto médico na jurisprudência das Secções

Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça”;

– «O acto médico pode constituir simultaneamente uma violação do contrato e um facto ilícito, sendo de aceitar como solução natural, inexistindo uma norma que especificamente 228 JOÃO ÁLVARO DIAS in ob. cit., p. 233.

229 A. e ob. cit., pp. 233 in fine e 234.

230 In “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil”, Coimbra, 2003, pp. 430 e 431.

231 In “O ÓNUS DA PROVA NA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA. QUESTÕES PROCESSUAIS ATINENTES À TRAMITAÇÃO

DESTE TIPO DE ACÇÕES (COMPETÊNCIA, INSTRUÇÃO DO PROCESSO, PROVA PERICIAL).”, acessível on-line in:

http://www.cej.mj.pt/cej/forma-ingresso/fich.pdf/arquivo- documentos/form.cont.responsabilidade.civil.por.acto.medico.pdf

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diga o contrário, a concorrência ou o cúmulo de responsabilidades.» (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/9/2007 [Processo: 1360/2007-7; Relator: ROSA RIBEIRO COELHO]), cujo texto integral está acessível on-line in: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf;

– «I. A responsabilidade médica (ou por acto médico) assume, em princípio, natureza contratual. II. Pode, todavia, tal responsabilidade configurar-se como extracontratual ou delitual por violação de direitos absolutos (v.g os direitos de personalidade), caso em que assistirá ao lesado uma dupla tutela (tutela contratual e tutela delitual), podendo optar por uma ou por outra.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/10/2010 [Processo n.º 1364/05.5TBBCL.G1; Relator: FERREIRA DE ALMEIDA]), cujo texto integral está acessível on-line in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf;

– «Pode-se cumular a responsabilidade contratual e extracontratual conferindo-se ao lesado a possibilidade de invocar as normas mais favoráveis de um sistema ou de outro.» (Acórdão da Relação do Porto de 11/09/2012 [Processo n.º 2488/03.9TVPRT.P2; CECÍLIA AGANTE]), cujo texto integral está acessível on-line in: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf.

– «Ocorrendo, durante uma cirurgia ortopédica com anestesia por epidural, uma lesão medular de que resultou paralisia em membro inferior e outras sequelas, ocorre uma situação de cumprimento defeituoso das obrigações contratuais, e, simultaneamente, a violação de um direito absoluto, a integridade física da autora. Verifica-se concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, aplicando-se o regime daquela por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2016 (Proc. n.º 136/12.5TVLSB.L1.S1; Relator – MARIA DA GRAÇA TRIGO) – cujo texto integral está acessível on-line in: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf)

Em regra, a responsabilidade que mais convém ao lesado é a contratual, face às regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (artigos 344.º, 487.º, n.º 1 e 799.º, n.º 1, todos do CC), pelo que será essa a prevalecer em virtude duma relação de consumpção de normas: cfr., explicitamente neste sentido, o cit. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/10/2010. Processualmente, caso o autor invoque apenas normas atinentes a um tipo de responsabilidade, o Tribunal não está impedido de qualificar de modo diverso a causa de pedir invocada, desde que, para tanto, se funde exclusivamente nos factos alegados pela parte – princípio iura novit curia (consagrado no Artigo 5.º, n.º 3, do actual Código de Processo Civil – disposição equivalente ao Artigo 664.º do Código de Processo Civil de 1961). Deste modo, ainda que o paciente/autor funde a responsabilidade do médico/réu exclusivamente na responsabilidade contratual, nada impede que o Tribunal venha a julgar a acção procedente e a condenar o médico/réu na responsabilidade extra-contratual e vice-versa. «Ao contrário do que acontece com a causa de pedir, o juiz permanece livre na indagação, interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º-3 [do actual CPC]»232.

232 JOSÉ LEBRE DE FREITAS in “Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3.ª ed., Setembro de 2013, p. 44.

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B.V. Natureza jurídica do contrato que se estabelece entre o paciente e os médicos ou os

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