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Condições precárias na feira e possibilidades de violação e/ou promoção da dignidade humana

Dignidade humana e suas raízes

FIGURA 4 – FOTOGRAFIA DAS BARRACAS, BANCADAS FIXAS E MÓVEIS

10. RELAÇÕES DE DIGNIDADE NO MERCADO DA FEIRA LIVRE DE CAMPINA GRANDE

10.2 COMO OS STAKEHOLDERS LIDAM COM AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DA FEIRA CENTRAL

10.2.5. Condições precárias na feira e possibilidades de violação e/ou promoção da dignidade humana

As precárias condições de trabalho podem ser compreendidas, segundo as próprias palavras de uma feirante:

As condições de trabalho na feira são sub-humanas. É acordar cedo, alimentar-se mal, correr muito, fazer todo tipo de trabalho e conviver com as diversas relações pessoais: a gente convive desde o pedinte... convive com a violência, convive com o feirante que tá aqui também, convive com os freguês (sic) né, que chama cliente que vem comprar, a gente convive com tudo (Feirante, 2015 – informação verbal)

Porém, nem todos os feirantes aceitam viver em condições sub-humanas de higiene e de limpeza. É o caso da feirante que não só decidiu preparar suas refeições como também as dos colegas feirantes, aproveitando, assim, a oportunidade para abrir o seu próprio negócio:

A falta de higiene nessa feira era tão grande que eu tinha nojo de comer aqui...Então comecei a cozinhar minha própria comida. Ai o pessoal vizinho [outros feirantes] diziam (sic): o que é que a senhora tá fazendo ai? Tá tão cheiroso... não daria para a senhora fazer pra gente também. Foi assim, que comecei a fazer comida na feira para os outros feirantes (Feirante, 2015 – informação verbal).

O relato desta experiência possibilitou a percepção de que, mesmo submetida a condições violadoras, a dignidade humana, enquanto valor intrínseco, é preservada, tratando-

se de valor inalienável (KANT, 2005). Valor que ninguém pode comprar, tirar e tampouco destruir ou contestar (TADD; VANLAERE; GASTMANS, 2010).

Porém, nem todos os seres humanos conseguem dar a volta por cima, conforme mencionado anteriormente. Em vez disto, as condições precárias da feira central podem provocar nos feirantes o sentimento da vergonha “Tem gente que tem vergonha de dizer que tá na feira” (Feirante, 2015 – informação verbal). Ao passo que despertar em outras pessoas curiosidade para saber o porquê de se estar na feira, do jeito que está: “Menina o que é que tu estás fazendo aqui?”. A vergonha decorrente das condições de trabalho é uma forma de violar a dignidade, inibindo a autoestima e a autoconfiança. (TADD; VANLAERE; GASTMANS, 2010; NORDENFELT, 2003, 2004).

As condições degradantes na feira também são realçadas mediante a falta da fiscalização dos órgãos públicos do governo: STTP (Superintendência de Trânsito e Transporte Público), SUDEMA (Superintendência de Administração do Meio Ambiente); GEVISA (Gerência de Vigilância Sanitária), Normas e Regulamentos, MP (Ministério Público) e Segurança Municipal.

Caminhar ao longo das ruas da feira central, quer se esteja na posição de cliente ou feirante ou fornecedor ou representantes do governo, inalando odores fortes em decorrência da escassa limpeza e higiene, aliado à falta de sinalização no trânsito e de supervisão sonora dos órgãos competentes, entre outros aspectos, favorece a instalação do stress nos indivíduos, que é apontado por Ghai (2003) como sendo um fator desfavorável à construção do trabalho decente.

A falta da Vigilância Sanitária na feira não inspecionando a produção e a comercialização dos alimentos em termos de higiene possibilita o surgimento de doenças, que poderão vir a se constituir como problemas de saúde pública, afetando não só as condições do trabalho decente dos feirantes (AGASSI, 1986) como também a dignidade humana dos demais stakeholders que circulam na feira central, seja dentro do perímetro urbano da feira ou fora deste.

Já a ausência das Normas e Regulamentos fortalece a desigualdade nos meios de comercialização entre os feirantes, no que se refere ao tamanho de suas barracas. Ou seja, enquanto umas barracas possuem até um metro, o que é permitido por este órgão fiscalizador; outras barracas têm mais de três metros.

As condições degradantes da feira ultrapassam as questões de higiene, sinalização e sonorização, abrangendo, também, comportamentos sociais desviantes e, por conseguinte, reforçando sua característica de ser um ambiente de mercado eminentemente violador da dignidade humana, conforme aponta o entrevistado:

A dignidade na feira de Campina Grande está extremamente castigada: elevado índice de prostituição; prostitutas sem assistência médica e social; falta de projetos educacionais para as crianças da feira e falta de projetos para os próprios animais, que são soltos na feira, como os gatos e cachorros (Estudioso da área de Comunicação Social, 2015 – informação verbal)

A ausência do Ministério Público na feira abre margens para a violação da dignidade humana, não apenas no que se refere ao aumento dos casos de prostituição. Passa abranger também problemas sociais de exploração da mão-de-obra infantil, o fortalecimento do uso de drogas ilícitas e de álcool na feira, inserção e fortalecimento do tráfico, entre outros.

A falta de segurança por não haver policiamento suficiente na feira levou os feirantes a se organizarem e contratarem vigilância privada para cuidar de sua segurança. Ou seja, eles procuram criar condições de trabalho dignas no tocante à segurança no trabalho, elemento fortemente indicador de trabalho decente (GHAI, 2003).

Não havendo o exercício da governança na feira, mediante a presença de seus órgãos fiscalizadores, o governo abre margens tanto para que a má-fé e o oportunismo se fortaleçam nas relações interpessoais e grupais quanto, indiretamente, permita o fortalecimento da existência da dignidade relacional dos feirantes em direção aos outros feirantes, bem como deles em relação aos clientes e fornecedores e/ou produtores.

Independente das condições de trabalho desfavoráveis, os feirantes conseguem estabelecer entre si e também com os seus clientes e fornecedores relacionamentos fundados nos laços de amizade, solidariedade, respeito, reciprocidades, que favorecem a ajuda mútua e contribuírem para o fortalecimento das relações de confiança e, por conseguinte, para construção da dignidade relacional (JACOBSON, 2007, 2009) no mercado da feira de Campina Grande.

A violação da dignidade humana também é encontrada dentro da própria administração da feira na relação estabelecida entre o governo e seus representantes. Ou seja, o governo não respeita os direitos dos trabalhadores que compõem a administração geral na feira, retirando deles direitos trabalhistas e, gerando neles, sentimentos de descrédito e também questionamentos sobre o que é dignidade humana e onde a dignidade do trabalhador

se encontra na feira, tendo em vista que seus direitos não estão sendo atendidos e nem respeitados. Em vez disto, estão sendo violados.

Dentre os direitos trabalhistas retirados, destacam-se:

a) pessoas idosas que continuam trabalhando na administração sem usufruir do direito da aposentadoria: ”... tem uma senhora, funcionaria pública efetiva, com 75 anos de idade trabalhando sem estar aposentada” (Administração, 2015 – informação verbal);

b) funcionários públicos alcoólatras, que continuam trabalhando em vez de serem tratados: “já que, a Organização Mundial de Saúde diz que todo dependente químico é um doente. Existe uma portaria, existe uma lei, existe um decreto que é pra cuidar daquele doente [usuário do álcool). Mas, em vez disso, ele é punido: colocam sempre falta, falta, falta e no final do mês a remuneração dele cai porque são descontadas aquelas faltas. Esta violação aos direitos não só afeta o trabalhador doente, mas também toda a sua família” (Administrador, 2015 – informação verbal); e

c) corte do pagamento de horas extras trabalhadas, sem aviso prévio: “porque ele [o funcionário] fez sua compra no mercadinho, na farmácia no cartão contando com aquele dinheiro, e quando chega pra receber o seu salario sabe que foi cortado injustamente de uma forma ilegal” (Administração, 2015 – informação verbal);

d) e, na relação da administração com os feirantes, evidencia-se também a violação da dignidade humana, mediante os trabalhos dos garis, por exemplo: “ Os garis estão limpando o mercado, tá deixando tudo limpinho. Chega o comerciante e de propósito joga o lixo [onde o gari estava limpando]. Ele diz: mas senhor, limpei aqui agorinha... e o comerciante fala: você está aqui pra isso mesmo, sou eu quem estou lhe pagando” (Administração, 2015 – informação verbal)

Nesse sentido, questiona-se: o que fazer para que os feirantes construam e mantenham relações de dignidade entre si e entre os demais atores sociais da feira, mesmo estando imersos em uma estrutura econômica e social desfavorável à construção da dignidade da integração?

Possivelmente, a resposta para esta questão corresponde à construção da confiança, que é concebida como um caminho, uma escolha (LUHMANN, 2005), uma possibilidade que a maioria dos feirantes usa para atenuar a má-fé, controlando a vulnerabilidade inerente às próprias condições de trabalho.

Cada vez que o governo não age ou não governa a feira, coloca, a princípio, os feirantes, clientes e fornecedores, bem como as pessoas de modo geral em situações de desvantagem social e/ou situação de risco. Porém, ao se organizarem frente à resolução dos problemas, ganhando autonomia para gerenciarem o seu negócio de maneira independente, fica entendido que os feirantes caminham para resgatar a dignidade da integridade.

O governo pode até deteriorar as condições de trabalho na feira, possibilitando o surgimento da violação da dignidade humana, mas cabe aos feirantes acatarem ou não a violação recebida.

Neste sentido, os feirantes lutam constantemente para não ceder às possibilidades de violação de sua dignidade, na direção de resgatar sua integridade enquanto trabalhadores dignos de condições adequadas de trabalho. Além disto, buscam controlar suas próprias naturezas instintivas: “Eu não quero ser como eles [referindo-se aos bandidos].Eu sei matar... mas, não quero e nem vou fazer isso...” (Feirante, 2015 – informação verbal); fazem escolhas morais, assumindo o controle de suas vidas como uma forma de lidar com a vulnerabilidade e sair das situações violadoras de sua dignidade.

Em outras palavras, a dignidade é vivenciada no mercado da feira central pelo encontro da dignidade do self com a dignidade relacional, podendo ser promovida e/ou violada, mediante as relações simétricas ou assimétricas estabelecidas entre as pessoas, aqui entendidas como stakeholders (JACOBSON, 2007, 2009).