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Condicionantes no processo coletivo: peculiaridades da ação popular

3 CAPÍTULO A AÇÃO POPULAR E O SISTEMA DE TUTELA DOS DIREITOS

3.5 Condicionantes no processo coletivo: peculiaridades da ação popular

O esforço em se construir um sistema próprio para a tutela coletiva e torná-lo operacional bem demonstra que o processo desenvolvido sob o signo da coletividade é dotado de características especiais, que escapam aos cânones mais tradicionais da ciência processual.

Não se trata de abandonar totalmente a dogmática processual que em meados do século XIX ganhou autonomia científica e, desde então, vem se desenvolvendo. Em verdade, requer o estudo da tutela coletiva uma adaptação, ou ainda renovação, de alguns dos institutos nucleares dessa ciência processual, em especial daquilo que se convencionou chamar de condições da ação.

Essa abordagem mostra-se essencial para a ação popular, na medida em que tal espécie de demanda se singulariza, entre outros elementos, pela legitimidade que confere ao cidadão, para pleitear direitos e interesses cuja titularidade não lhe pertence, pelo menos não de forma exclusiva.

No rito específico, ao Ministério Público ainda é conferida a possibilidade de promover o seguimento da ação, caso o autor popular desista (art. 9º, Lei nº 4.717/65).

Também merece destaque o aspecto procedimental previsto no § 3º, art. 6º, da Lei nº 4.717/65, que permite à pessoa jurídica (de direito público ou privado), cujo ato seja objeto de impugnação, “migrar de polo” e passar a atuar ao lado do autor, se houver interesse público no caso que justifique a medida.

Todas essas previsões legais indicam que, tanto a legitimidade ad causam, como o interesse de agir, assumem formas diversas na ação popular, em alguns de seus pontos elementares. De fato, esse desvio na conformação tradicional de tais categorias jurídicas pode ser observado para as ações coletivas de um modo geral, uma vez que as

130 próprias situações jurídicas substanciais tipicamente demandadas por essas vias escapam à conformação clássica de direito subjetivo, em que se sobressai a vertente individual.

Ao tratar de diferenciar as diversas situações jurídicas substanciais, Pontes de Miranda acaba por enquadrar as ações populares como ações (materiais) sem direitos subjetivos. Em suas palavras: “as ações populares, ainda quando não concebidas como remédio jurídico processual, podem ser explicadas, em alguns casos, como ações a que não correspondem direitos subjetivos, salvo no que implicam, quanto ao remédio

jurídico processual, a existência de pretensão ou de direito público subjetivo”. 311

Ainda que não se adote singular posicionamento, é evidente que a ação popular consubstancia um tipo de demanda em que a titularidade do interesse protegido dificilmente pode ser atribuída a um sujeito individualizado, ou a um grupo de sujeitos totalmente identificável, sendo tormentoso tentar extrair das situações jurídicas ativas que se configuram como ações populares (materiais), uma conformação que se amolde ao esquema tipicamente individualista de direito subjetivo. As manifestações processuais da ação popular, à evidência, devem tentar corresponder à natureza difusa da sua vertente substancial, sem titularidade determinada.

Atento a essa conjuntura, José Afonso da Silva questiona em que consiste o interesse de agir para a ação popular, a qual aparenta contrariar postulado básico

firmado pela doutrina, de que esse interesse deveria ser pessoal e direto. 312

Como o autor popular não seria “titular de um direito subjetivo nem de interesse especificamente seu, violado ou ameaçado”, defende que na ação popular o interesse de agir não é absolutamente pessoal, nem direto. O interesse de agir concretizar-se-ia na possibilidade, em tese, de haver prejuízo, caso falte a tutela jurisdicional. Na ação pessoal esse prejuízo seria a um interesse subjetivo do autor, ao passo que na ação popular seria a um dos bens mencionados no art. 5º, LXXIII, CR/88,

que ao autor popular, como cidadão, interessaria defender. 313

Elton Venturi, por sua vez, defende que, na análise do interesse processual nas ações de tutela de direitos difusos e coletivos, importaria menos à aferição da necessidade de se recorrer ao Judiciário a referibilidade entre o titular da pretensão e o tipo de tutela pleiteada do que a relevância social do interesse. Já haveria uma

311

MIRANDA, Francisco Pontes de. Tratado das ações: tomo I. São Paulo: RT, 1970. p. 94.

312

SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 151.

313

131 presunção da existência de interesse processual na propositura de demandas coletivas – como a ação popular – em razão da importância social dos interesses protegidos nessas

ações. 314

Ainda ressalta um detalhe técnico que sustenta tal presunção: para fins de proteção de direitos difusos e coletivos, a ação coletiva se apresentaria como a única que viabilizaria a adequada proteção destes. Como se mostraria absolutamente inadequado o manejo de ação individual para demandar direitos essencialmente metaindividuais, a propositura de demanda coletiva não seria meramente uma opção, mas sim a única opção, circunstância que acentuaria o interesse processual nessas

demandas. 315

A legitimidade para agir na ação popular também merece ser enquadrada sob o filtro da tutela coletiva.

Isso porque a legitimação para agir é resumida por Liebman como a pertinência subjetiva da ação, ou seja, “a identidade entre quem a propôs e aquele que, relativamente à lesão de um direito próprio (que afirma existente), poderá pretender para si o provimento de tutela jurisdicional pedido com referência àquele que foi chamado em juízo”. O legitimado ordinário é definido, portanto, como o titular do interesse alegadamente malferido, sendo a possibilidade de defesa de interesse alheio reputada como legitimação extraordinária, situação excepcional, que exigiria expressa

autorização em lei. 316 Essa lógica tradicional encontra-se claramente expressa no art. 6º,

do CPC/73, ao dispor que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”.

Por isso, a doutrina que cuida do processo coletivo, em relação à legitimação para agir, divide-se, grosso modo, entre os que enquadram essa fuga à titularidade individual da demanda como mais um caso de (i) legitimação extraordinária, eis que há autorização legal para essa forma diferenciada de atuação processual; além dos que defendem ser caso de (ii) legitimação autônoma para condução do processo, categoria voltada especificamente para o processo coletivo, por não ser possível se identificar efetivamente o titular dos direitos pleiteados nessa sede.

Representam bem a primeira corrente Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. Para esses autores, não há no processo coletivo coincidência entre o legitimado e o

314

VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 230-231.

315

VENTURI, Elton. Op. Cit. p. 230

316

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Vol. I. Trad.: Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 159-160.

132 titular da situação jurídica discutida e, quando não há esse vínculo, é caso de legitimação extraordinária. A legitimação ao processo coletivo seria, portanto, de caráter extraordinária, autorizando-se um ente a defender em juízo situação jurídica que

seja titular um grupo ou uma coletividade. 317

Já a legitimação autônoma para condução do processo, como dito, é uma classificação que tenta fugir dos parâmetros traçados para o processo individual. Explica Antônio Gidi que essa ideia, introduzida pela doutrina de Nelson Nery Jr., intenta desunir a legitimidade processual da titularidade do direito material objeto do processo (como nas ações individuais), pois o critério utilizado pelo direito para atribuir legitimidade para a propositura das ações coletivas seria a aptidão, ou idoneidade social para ser considerado como representante adequado para a defesa judicial dos direitos

superindividuais. 318

Ademais, seria possível ainda se vislumbrar uma espécie de “direito próprio” das entidades legitimadas a defender os direitos superindividuais em juízo, já que

ninguém mais poderia fazê-lo. 319

Ainda que conflitantes, tais posicionamentos demonstram que nas ações coletivas há um “descolamento” entre aquele autorizado a pleitear em juízo e o titular da pretensão invocada, que não precisam coincidir, até mesmo porque esse último geralmente possui natureza indeterminada. Ou seja, na ação popular, a despeito da classificação doutrinária escolhida, a legitimidade é dada a quem, a princípio, ostenta a qualidade de cidadão, independente de a situação jurídica ativa deduzida ter lhe sido atribuída pela ordem legal, de forma exclusiva ou não.