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Ação popular: uma análise sob os novos prismas do direito público e do processo coletivo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

TAMYRES TAVARES DE LUCENA

AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO

PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO.

Dissertação de Mestrado

Recife 2015

(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

TAMYRES TAVARES DE LUCENA

AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO

PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO.

Dissertação de Mestrado

Recife 2015

(3)

TAMYRES TAVARES DE LUCENA

AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO

PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO.

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas/Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção dotítulo de Mestre em Direito.

Área de concentração: Jurisdição e processos constitucionais

Linha de pesquisa: Estado,

Constitucionalização e Direitos Humanos.

Orientador: Dr. Francisco Antônio de Barros e Silva Neto

Co-orientador: Dr. Leonardo José Ribeiro Coutinho Berardo Carneiro da Cunha

Recife 2015

(4)

L935a Lucena, Tamyres Tavares de

Ação popular: uma análise sob os novos prismas do direito público e do processo coletivo. – Recife: O Autor, 2014. 155 f.

Orientador: Francisco Antônio de Barros e Silva Neto.

Co-orientador: Leonardo José Ribeiro Coutinho Berardo Carneiro da Cunha

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2015. Inclui bibliografia.

1. Ação popular - Brasil. 2. Processo civil - Brasil. 3. Direitos fundamentais - Brasil. 4. Direito romano - Direito moderno. 5. Brasil. [Constituição (1988) - art. 5º, LXXIII]. 6. Controle jurisdicional de atos administrativos - Brasil. 7. Administração Pública - Brasil - Participação do cidadão. 8. Tutela jurisdicional - Brasil. 9. Brasil. Lei nº 4.717/65. 10. Função judicial. 11. Juízes - Decisões. 12. Processo administrativo - Brasil. 13. Ação coletiva - Brasil. 14. Direito público - Direito privado. 15. Direito processual coletivo. I. Silva Neto, Francisco Antônio de Barros e (Orientador). II. Título.

347.05CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2015-015)

1. Ação popular - Brasil. 2. Processo civil - Brasil. 3. Direitos fundamentais - Brasil. 4. Direito romano - Direito moderno. 5. Brasil. [Constituição (1988) - art. 5º, LXXIII]. 6. Controle jurisdicional de atos administrativos - Brasil. 7. Administração Pública - Brasil - Participação do cidadão. 8. Tutela jurisdicional - Brasil. 9. Brasil. Lei nº 4.717/65. 10. Função judicial. 11. Juízes - Decisões. 12. Processo administrativo - Brasil. 13. Ação coletiva - Brasil. 14. Direito público - Direito privado. 15. Direito processual coletivo. I. Silva Neto, Francisco Antônio de Barros e (Orientador). II. Título.

347.05CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2015-015)

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TERMO DE APROVAÇÃO

Tamyres Tavares de Lucena

AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO

PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Área de concentração: Jurisdição e processos constitucionais.

Orientador: Dr. Francisco Antônio de Barros e Silva Neto

Co-orientador: Dr. Leonardo José Ribeiro Coutinho Berardo Carneiro da Cunha

A Banca Examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu o candidato à defesa em nível de Mestrado e a julgou nos seguintes termos:

Professor Adjunto Dr. Lúcio Grassi de Gouveia, Dr. UNICAP

Julgamento: _________________________ Assinatura: _________________________

Professor Adjunto Dr. Leonardo José Ribeiro Coutinho Berardo Carneiro da Cunha, Dr. UFPE

Julgamento: _______________________ Assinatura:___________________________ Professor Adjunto Dr. Hermes Zaneti Júnior, Dr. UFES

Julgamento: __________________________ Assinatura: ________________________

MENÇÃO GERAL:

______________________________APROVADA____________________________

Coordenador do Curso: Prof. Dr. Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão

(6)

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus pais, José Tavares de Farias e Isabel Cristina de Lucena Farias, os quais sempre incentivaram minhas atividades acadêmicas, assim como minhas queridas irmãs, Renata eAline, que sempre se mostraram companheiras, desde meus primeiros anos de vida. Cada qual, à sua maneira, pelo exemplo próximo, souberam despertar em mim o gosto pelo estudo, pela leitura e pela busca do conhecimento, ao sempre estimularem meu espírito inquisidor.

À Ravi Peixoto, meu companheiro não apenas de estudo e pesquisa, mas também de vida, que sempre me deu muita força e, com muito afeto e paciência,me ajudou no decorrer de toda a produção desse trabalho.

Ao meu queridíssimo orientador Francisco Antônio de Barros e Silva Neto, a quem admiro imensamente, cujos questionamentos sempre contundentes e originais contribuíram para dar melhor consistência às minhas ideias. Agradeço também ao meu co-orientador Leonardo José Carneiro da Cunha responsável por despertar meu interesse pelo estudo do direito processual, ainda na graduação, nas reuniões de seu grupo de estudo.

Todo esse trabalho também não teria sido possível sem a ajuda dos amigos processualistas que, desde a fase do projeto até os momentos finais, contribuíram ouvindo minhas ideias, indicando e emprestando material e, especialmente, oferecendo críticas. Meu especial agradecimento aIvo Dantas,Lucas Buril, Diego Oliveira, Marta Valéria Patriota, Maíra Carvalho Mesquita, Mateus Costa Pereira, Roberto Campos Gouvêia, Hermes Zaneti Jr., Rodrigo Reis Mazzei.

Por fim, não poderia deixar de prestar homenagem aos colegas e funcionários da PPGD-UFPE, ambiente repleto de figuras humanas incríveis, com os quais compartilhei uma das minhas experiências mais edificantes.

(7)

RESUMO

LUCENA, Tamyres Tavares de. Ação popular: uma análise sob os novos

prismas do direito público e do processo coletivo.2015. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

A ação popular, como categoria jurídica, começou a ser desenvolvida no período do direito romano, do qual a tradição jurídica ocidental é herdeira, resultado do longo processo de recepção dos textos jurídicos antigos, iniciado na baixa Idade Média e concluído com a cristalização de vários institutos de raiz romana nos códigos e textos normativos da grande família jurídica romano-germânica. O direito brasileiro não escapou a esse fenômeno, tendo as ações populares ingressado em nosso ordenamento a partir das Ordenações portuguesas e, após episódicas tentativas de proscrevê-las do sistema, encontra-se tal instituto expressamente consagrado em nossa ordem constitucional, como garantia fundamental dos cidadãos. Decerto, a ação popular que hoje figura em nosso ordenamento não é a mesma dos tempos romanos, uma vez que a própria ideia de ação desenvolveu-se de forma bastante singular desde o direito antigo, sendo hoje ponto de encontro entre o direito substancial e o processo. Igualmente, a relação entre Estado e cidadão passou por transformações que tornaram a feição tradicional da ação popular ineficiente, exigindo a busca por possibilidades legais de tutelas mais consentâneas com um controle mais abrangente da Administração Pública. Enfim, as amplas construções legais e doutrinárias que permitiram, nos últimos anos, o surgimento de um verdadeiro sistema de direito coletivo, com regras e princípios próprios, consistiu em fenômeno que também demandou uma revisitação da ação popular, em razão de seu amplo potencial para tutela coletiva. O presente estudo busca, justamente, analisar a ação popular a partir das influências que essas três grandes transformações provocaram no estudo desse instituto legal tão antigo, quais sejam: (i) o desenvolvimento de uma teoria da ação e a relação entre o direito material e o processo; (ii) o controle da Administração Pública em face do renovado papel do Estado; (iii) o surgimento de um sistema diferenciado de tutela para os direito coletivos, no qual se encontra inserida a ação popular. Toda a análise tem por objetivo identificar, primeiramente, como esses novos aportes teóricos e legais permitem um exercício da ação popular mais eficiente, mas também se preocupa em identificar os atuais limites dessa ação.

Palavras-chave: Ação Popular;Controle Judicial da Administração Pública; Microssistema da tutela coletiva; Ação Material.

(8)

ABSTRACT

LUCENA, Tamyres Tavares de. “Popular action”: a study under new standards of public law and class action procedure. 2015. ou Dissertation (Master's Degree of Law) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015. “Popular action” is a juridical category that started to be developed in the age of RomanLaw, a juridical tradition that strongly inspired the civil law system, specially due to the reception of several ancient texts that formed the Corpus Iuris Civiles. The brazilian legal system is an heir of the Roman Law tradition, having incorporated the popular action from the portuguese law. Nowadays the popular action can be found in the Constitution after some attempts to withdraw it from the legal system. In fact, roman popular action and the current popular action are not the same, since the “action” as a legal category has passed through changes over the time. The legal relationship between citizen and State and the public law in general also suffered transformations in their theoretical basis. At last, the Brazilian law has developed a proper class action system. All of these novelties influenced the study of the popular action, having set new standards for the matter. This paper intends to analyze how these new standards can improve the popular action and also which are the new limits for its use in courts.

(9)

LISTA DE ABREVIATURAS

ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade

AgRg – Agravo Regimental

CC – Código Civil

CDC – Código de Defesa do Consumidor

cf. – Confira

CR/88 – Constituição da República de 1988

CPC/1973 – Código de Processo Civil de 1973 DJ – Diário de Justiça

DJe – Diário de Justiça Eletrônico Novo CPC – Novo Código de Processo Civil

DJ – Diário de Justiça da União

EC – Emenda à Constituição

EDcl – Embargos de Declaração

FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civis j. – Julgado em

LACP – Lei da ação civil pública

LAP – Lei da ação popular

Min. – Ministro

RE – Recurso Extraordinário

Rel. – Relator

REsp – Recurso Especial

RT – Revista dos Tribunais

SAFE – Sergio Antonio Fabris Editor

STF – Supremo Tribunal Federal

STM – Superior Tribunal Militar

STJ – Superior Tribunal de Justiça

t. – Tomo

TSE – Tribunal Superior Eleitoral

TST – Tribunal Superior do Trabalho

TJ – Tribunal de Justiça

TJRS - Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

(10)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 13

1. CAPÍTULO 1. ORIGENS HISTÓRICAS E EVOLUÇÃO CONCEITUAL DA AÇÃO POPULAR ... 17

1.1 Apontamentos iniciais ... 17

1.2 As actiones populares no direito romano... 17

1.3 Ação popular: transição do direito romano para o direito moderno... 26

1.4 Ação popular no Brasil: escorço histórico. ... 33

1.5 Conceito atual de ação popular. ... 45

2. CAPÍTULO 2. A AÇÃO POPULAR E OS PODERES DO ESTADO: POSSIBILIDADES DE TUTELA E FORMAS DE EXERCÍCIO. ... 53

2.1 Introdução ... 53

2.2 Ação Popular e controle dos atos estatais: um novo entendimento acerca dos paradigmas tradicionais do Direito Administrativo. ... 53

2.3 Processo judicial e processo administrativo: possíveis vias de exercício da açãopopular. ... 63

2.4 Ação de direito material e exercício da ação popular na via administrativa. ... 77

2.5 Ação popular material no processo judicial e no processo administrativo. ... 90

3 CAPÍTULO 3. A AÇÃO POPULAR E O SISTEMA DE TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS ... 93

3.1 Tutela dos direitos coletivos: primeiras linhas. ... 93

3.2 Class action norte-americana como marco na tutela coletiva. ... 95

3.3 O desenvolvimento do processo coletivo no Brasil ... 110

3.4 O microssistema da tutela coletiva e a ação popular. ... 119

3.5 Condicionantes no processo coletivo: peculiaridades da ação popular. ... 129

3.6 O controle da representação adequada na ação popular ... 132

CONCLUSÃO ... 141

(11)
(12)
(13)

INTRODUÇÃO

A ação popular é apenas uma das inúmeras construções teóricas que o apurado estilo do Direito Romano deixou de legado à tradição jurídica ocidental, em especial à chamada família de direito romano-germânica, cujo desenvolvimento foi marcado, entre outras circunstâncias, pelo meticuloso trabalho de recepção dos antigos textos legais que formaram o chamado Corpus Iuris Civilis. Seja em caráter de reverência, por motivações pragmáticas, ou ainda como base de um primoroso cientificismo, o estudo do direito romano foi determinante para forma como a razão jurídica desenvolveu-se no civil law, em especial no âmbito do processo civil. A porta de entrada de todo esse contributo para a ordem legal brasileiraforam as Ordenações portuguesas, sede de onde se extraíram as primeiras previsões de ação popular.

Ou seja, mesmo antes de se erigir um direito nacional autônomo, com fontes jurídicas próprias, a ação popular, em tese, já se mostrava passível de ser exercida no Brasil e, conquanto tenha sofrido algumas tentativas de proscrição do sistema, resta hoje consagrada na Constituição de 1988, entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5º, LXXIII).

Em razão de sua vetusta origem, muito já se escreveu sobre a ação popular, não sendo intenção do presente trabalho esgotar todos os pormenores envolvendo o exercício dessa demanda. O objetivo da pesquisa empreendida consistiu em demonstrar como oque se entende por ação popular modificou-se com o tempo, desde o início do seu desenvolvimento no direito romano, analisando-se também como as principais transformações no âmbito no direito público e no processo coletivo incidiram sobre a ação popular atual, com foco na busca de uma prestação de tutela de direitos mais efetiva.

Para tanto, divide-se o presente trabalho em três partes. Inicialmente, no primeiro capítulo, busca-se explorar o percurso histórico traçado pela ação popular desde o direito romano, até sua inserção no direito nacional, com o fito de demonstrar que a evolução no conceito de ação foi determinante para definir a atual feição da ação popular, que muito diverge da sua versão original romana. Com isso, evita-se a simples menção ao surgimento dessa ação no direito romano, sem considerar a própria evolução metodológica do processo civil que, seguramente, contribuiu para modificar o que antes se entendia por ação popular e suas possibilidades de uso. Expõe-se o decurso da ação

(14)

14 popular no tempo, até sua fase culminante, no Brasil, para que a partir daí se possa estabelecer o que agora define essa espécie de demanda, pois será a respeito desta – ação popular atual – que irá discorrer o presente trabalho nos capítulos seguintes.

No segundo capítulo, destaca-se a importante função da ação popular no controle legal da Administração Pública, contextualizando seu estudo com as recentes transformações no direito público, que restaram por intensificar as expectativas quanto à atuação do Estado. A partir de uma visão renovada sobre a participação popular na atuação da Administração Pública, vislumbram-se possibilidades de tutela mais amplas por meio da ação popular, mesmo sem modificações no quadro legal da matéria.

A moderna noção de cidadania – posição jurídica ativa que legitima o uso da ação popular – leva em conta que a relação Estado-indivíduo encontra-se submetida a rígidos parâmetros legais, com o reconhecimento de liberdades individuais fora do âmbito de interferência estatal.O controle jurídico da Administração Pública, um dos pontos fulcrais do direito administrativo, é tradicionalmente voltado para coibir ou combater condutas abusivas dos entes públicos, que firam indevidamente a esfera individual de direitos dos particulares.

O agigantamento das funções do Estado, com a consagração de um rol cada vez maior de direitos e garantias individuais e coletivas, bem como o reconhecimento da força normativa e efetiva cogência dos direitos fundamentais, trouxeram maiores exigências para a atuação estatal. Atualmente,permeia o direito público o ideal de que ao Estado caberia,igualmente,o cumprimento de deveres positivos, com a concretização de necessidades materiais dos cidadãos, de forma que a submissão do Estado ao direito não abrangeriasomente a desconstituição de atos danosos, mas também a possibilidade de responsabilizar juridicamente o Estado para forçar a prática de condutas em favor dos indivíduos e da coletividade.

Essa nova perspectiva não deve ser desconsiderada no estudo da ação popular, por ser, justamente, um dos principais meios de controle da Administração Pública.

Ocorre que o procedimento específico da ação popular (Lei nº 4.717/65) encontra-se previsto ainda de forma muito arraigada à conformação tradicional, porquanto apenas se dispõe expressamente acerca da possibilidade de anulação de ato, em razão de lesividade e ilegalidade, sem tratar da hipótese de se cominar a prática de atos, ou mesmo de prevenir condutas danosas, quando para tanto houver permissivo legal ou constitucional. A forma como previsto pela legislação infraconstitucional o exercício jurisdicional da ação popular acabou por influenciar o entendimento

(15)

15 tradicional da matéria, bastante restritivo quanto às medidas que poderiam ser impostas ao Poder Público por essa via.

Outrossim, o reconhecimento da processualidade administrativa abriu novas vias para o controle do patrimônio público, sem a necessidade de sempre se provocar o Judiciário para interferir nas escolhas administrativas.

Entende-se ser possível introduzir o exercício da ação popular sob essas novas perspectivas do direito público. Para tanto, toma-se a ação em seu sentido material, de forma que os provimentos consistentes em declarar, constituir, condenar, mandar e executarpossam ser obtidos tanto na via jurisdicional, como no processo administrativo. Apartando-se a ação popular em sua acepção substancial, do seu procedimento específico, lançam-se novas luzes sobre os requisitos de forma que poderiam ser exigidos para o exercício dessa demanda.

No terceiro capítulo,trata-se de contextualizar o estudo da ação popular em face do desenvolvimento de um sistema de tutela coletiva no Brasil, com regras e princípios próprios, fundados em lógica diversa daquela que orienta o processo tradicional, voltado para a solução de litígios individuais.

A ação popular sempre ocupou posição singular em nosso ordenamento, por permitir a defesa de bens de titularidade difusa. Nas últimas décadas, contudo, formou-se um amplo quadro legal de medidas que propiciaram formas diversas de tutela coletiva, debruçando-se a doutrina sobre as especificidades desse novo ramo do direito processual.

O incremento e a valorização do processo coletivo no Brasil acompanharam o desenvolvimento de uma sociedade cujas relações passaram a ser marcadas pela massificação, em que de um mesmo evento ou conduta poderiam partir efeitos danosos para toda a coletividade. Os limites entre o que seria direito público e direito privado também se tornaram menos nítidos, notadamente em virtude da consagração de direitos sociais, circunstância que também influenciou no desenvolvimento do processo coletivo, ao tornar questionáveis os cânones do processo individual, os quais se baseavam em tal distinção rígida, além de problematizar a própria aptidão do processo civil clássico para resolução das recentes formas de litígio, de caráter coletivizado.

Para lidar com essas novas situações jurídicas, muito se buscou no quanto desenvolvido pelo direito norte-americano em relação à class action, a qual permite o julgamento de causas com repercussão coletiva, de diferentes espécies. O direito brasileiro não fugiu dessa tendência de exame e busca de inspiração no processo

(16)

16 coletivo estadunidense – vertente de estudo com grandes expoentes no direito italiano – razão pela qual se tratou de apresentar o regime básico das ações de classe, como parâmetro de comparação com o sistema brasileiro de tutela coletiva, a fim de se verificar possíveis interações e contribuições entre os dois sistemas, no que concerne especialmente ao exercício da ação popular.

Outro ponto de análise é a chamada teoria do microssistema da tutela coletiva, em face da qual os aspectos peculiares do processo coletivo ganham relevância, em especial o caráter intercambiante das normas contidas nos diversos diplomas legais voltados à regular a defesa em juízo dos direitos e interesses metaindividuais. Muito embora, atualmente, já conste em nosso ordenamento diversos diplomas legais relacionados à tutela coletiva, a ação popular, certamente, consubstancia-se como uma das principais ações que compõem esse microssistema, sendo o seu regramento específico (Lei nº 4.717/65) ponto de referência para as demais leis que tratam do direito coletivo.

Conquanto se possa encontrar na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, assim como na própria doutrina especializada, juízos favoráveis à adoção dessa teoria, ainda se mostra pendente de maior amadurecimento a posição quanto aos limites ao intercâmbio de normas dentro do microssistema, problemática objeto de análise, em razão de repercutirdiretamente no estudo das balizas ao exercício da ação popular.

O juízo quanto aos requisitos de admissibilidade e exercício regular da ação na tutela coletiva também se mostra dotado de especificidades, merecendo destaque o chamado controle da representatividade adequada, uma das principais contribuições do regime de class action ao estudo da tutela coletiva. A possível recepção desse instituto é objeto de análise, em especial o quanto o exame judicial da representatividade poderia auxiliar no controle de um potencial mau uso da ação popular, ou ainda na superação de exigências formais inadequadas em face da defesa de bens difusos de maior relevância, como o meio ambiente.

Enfim, ao se analisar a ação popular perante o contexto do processo coletivo, procura-se destrinchar não apenas as vias para um maior alcance dos seus provimentos, mas também os limites que os fundamentos da tutela coletiva impõem ao exercício dessa ação.

Em vista de tudo quanto já se escreveu a respeito da ação popular, o presente trabalho objetiva explorar questões não tão óbvias no trato da matéria, tentando conferir mais vigor ao estudo dessa demanda e do seu procedimento específico.

(17)

17

1.

CAPÍTULO I.ORIGENS HISTÓRICAS E EVOLUÇÃO CONCEITUAL DA

AÇÃO POPULAR

1.1 Apontamentos iniciais

Ao se tratar da ação popular, comumente se aponta para as suas origens históricas no direito romano, não obstante as relevantes particularidades de seu sistema de ações. É importante fazer menção não apenas a esse período civilizatório, mas também às fases históricas subsequentes no estudo da ação popular, visto que, desse modo, se torna possível destacar as características que definem e singularizam esse instrumento, assim como a relação entre sua previsão e efetividade no sistema jurídico e a forma como se organiza o Estado.

Como se tentará demonstrar, a ação popular é um gênero, sendo necessário ter-se em conta suas características básicas, para que assim ter-seja possível identificar suas diferentes espécies, presentes no ordenamento.

A evolução histórica da ação popular no Brasil, em particular, resultou em uma maior aceitação desse instrumento, pelo menos no plano teórico, circunstância demonstrada pela ampla consagração de hipóteses legais de ação popular atualmente em nosso ordenamento.

1.2 As actiones populares no direito romano.

O estudo do direito romano debruça-se sobre a análise do conjunto de normas ou textos jurídicos que vigoraram no mundo romano desde a fundação de Roma (735

a.C., segundo a tradição) até 565 (ano da morte do imperador do Oriente, Justiniano), 1

período de catorze séculos, marcado por sucessivas fases (arcaica, clássica, pós-clássica, justinianeia), com profundas e inevitáveis alterações cada qual, para corresponder às

contínuas transformações sociais dessa época histórica. 2

1

Faz-se necessária essa delimitação conceitual, eis que a expressão “direito romano” pode também denotar várias noções diferentes, como a tradição romanista ou o direito da civilização ocidental, ou ainda o direito romano organizado como direito em vigor pelos juristas alemães do século XX (pandectistas). CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. 6ª Ed. São Paulo: RT, 1988. p. 15.

2

JUSTO, Santos A. Direito Privado Romano – I: parte geral. 4ª Ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 2008. p. 17-18.

(18)

18 Não obstante tais marcos evolutivos, a força datradição era uma das características distintivas do direito romano e do seu povo. O desenvolvimento das instituições jurídicas era lento, prudente e conservador. Ao lado de regras jurídicas novas e adaptadas às exigências do momento, permaneciam as normas antigas e raramente o direito anterior era derrogado. Dessa tendência de continuidade e devoção ao passado não escapou o processo civil, a sucessão de um sistema para o outro (legis actiones, agere per formulas, cognitio extra ordinem) deu-se de modo lento e gradual,

chegando alguns desses a coexistirem. 3

Ensina o romanista português Santos Justo que “a história do processo civil romano é marcada pela progressiva penetração do elemento publicístico na esfera dos interesses privados”, dividindo-se em dois períodos: (i) o sistema do ordo iudiciorum privatorum (iudicia privata), em que a Administração da Justiça ainda não é totalmente assumida pelo Estado e se limita a excluir a arcaica justiça privada, apenas disciplinando a defesa do direito substancialmente privado; (ii) e o sistema da cognitio extra ordinem, o qual gradualmente acabou por suplantar o ordo iudiciorum privatorum,

tornando-se, da época pós-clássica em diante, o único sistema processual. 4

O ordo iudiciorum privatorum se manifestou nas duas fases iniciais do processo romano: legis actiones e per formulas, com maior vigor ao tempo do direito clássico. A instância se dividia em duas etapas sucessivas, uma chamada in iure (desenvolvia-se perante o magistrado, o qual organizava e fixava os termos da controvérsia) e a outra denominava-se apud iudicem (comandada pelo iudex, que era um

particular, ou um colegiado de particulares, e não um funcionário do Estado). 5

No sistema da cognitio extra ordinem a instância não mais se dividia em dois momentos, desenrolando-se inteiramente diante de um juiz vinculado à organização política romana. O processo tornou-se todo “estatal”, desenvolvendo-se completamente perante o magistrado, cuja decisão não mais correspondia a um parecer jurídico (sententia) de um iudex, simples cidadão autorizado pelo poder romano, mas sim a “um comando vinculante próprio de um órgão estatal”. Nesse regime, a sentença deixa de ser um ato exclusivo do cidadão, perdendo seu caráter arbitral, para exprimir a autoridade

da força soberana de Roma. 6

3

JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 22-23.

4

JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 265-266.

5 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Vol. I. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 184. 6

(19)

19 Comparando a iurisdictio do período clássico com a desenvolvida ao tempo da cognitio extra ordinem, Ovídio Baptista da Silva afirma que naquela “a ciência jurídica romana é criada pelos juristas, não pelos magistrados, naturalmente sem qualquer caráter coercitivo”. O caráter privado também a distinguiria da jurisdição do período em que predominava a cognitia extra ordinem, mas alerta o processualista que o qualitativo

“privado” aí não se opõe a público, mas sim a “estatal”. 7

Em suas palavras:

A iusdictio do direito clássico era tão pública, como autêntica expressão do imperium, quanto poderá sê-lo a jurisdição moderna. Ela não era estatal, como hoje, como uma expressão da soberania do Estado romano, mas era pública tanto quanto a nossa. 8

De fato, em que pese conter parcela de arbitramento privado, a justiça ofertada nas primeiras fases do processo romano (legis actiones, agere per formulas) já ostentava uma vertente publicística. Aponta Othon Sidou, como elementos que denotam desde o início a vocação publicística do procedimento romano, o respeito à autoridade da coisa julgada, a fiscalização dos aspectos formalísticos e o impedimento da autodefesa no sistema das legis actiones; bem como, posteriormente, o desenvolvimento do Direito honorário, com o uso dos interditos, que permitiam maior

grau de interferência “estatal” nas relações privadas. 9

A jurisdição do período clássico e aquela praticada nos estágios finais do direito romano ainda se distinguem pela pluralidade de fontes na primeira (lei, senatusconsulto, constituições imperiais, respostas dos prudentes, de acordo com Gaio), ao passo que, no período justinianeu, a lei tornou-se fonte exclusiva e o Imperador, seu único intérprete. Explica Ovídio Baptista que essa multiplicidade de fontes determinava o caráter criativo da jurisprudência no direito clássico, com uma discricionariedade

inerente. 10

No último grande período de transformações romanas, com o advento do poder imperial, bastante sufocada restou a vontade popular na feitura das leis, que agora não seriam mais que o reflexo da vontade dos imperadores. O avançado estágio da tradição cultural romana deu ensejo a um processo de compilação dessas leis, inicialmente elaborada em caráter privado por jurisconsultos do Oriente (Codex Theodosiano), culminando com a codificação do direito romano em sua totalidade, na terceira década

7

SILVA, Ovídio Baptista da.Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 264-265.

8

SILVA, Ovídio Baptista. Op. Cit. p. 286.

9

SIDOU, J. M. Othon.A vocação publicística do direito romano. Recife: Ed. Câmbio, 1955. p. 136-137.

10

(20)

20 do século VI, pelo imperador Justiniano. O conjunto de todo esse trabalho (Digesto, Código, Institutas, Novellae Legis) consubstancia o que, na Idade Média, os glosadores

denominaram Corpus Juris Civilis. 11

Essa extensa construção jurídica, que culminou em um verdadeiro monumento legal deixado de herança pela cultura romana, se singulariza, notadamente, pela forma de exercício e proteção de direitos por força das ações.

É bem conhecida a definição de actio atribuída a Celso: Nihil aliud est actio quam ius quob sibi debeatur, iudicio persequendi (“ação nada mais é do que perseguir em juízo aquilo que lhe é devido”, D. 44.7.51), havendo autores como Giuseppe Provera, que extrai dessa máxima uma relação de identidade entre a actio e o ius no direito romano, como duas faces de uma mesma moeda. Essa definição de Celso, que remete aos primórdios da experiência jurídica romana, teria mantido sua força mesmo no período justinianeu, sendo “o centro de um sistema no qual o direito subjetivo

identifica-se com o poder próprio de quem é dele titular para agir em juízo”. 12

Esse sistema de exercício e proteção de direitos em razão da actio decorreu de um gradual processo de limitação da justiça de mão própria. A ampla defesa privada dos direitos subjetivos (autotutela), primitivamente admitida, vai aos poucos sofrendo restrições. Conquanto não seja possível determinar o tempo e nem precisar a forma exata pela qual essa punição particular foi sendo substituída pela justiça pública, já na Lei das XII Tábuas encontravam-se ordenações processuais, para que a atuação de um magistrado atenuasse a vingança privada, impondo a celebração de pactos e aplicando multas, entre outras medidas. Com as progressivas limitações ao uso da força privada no decorrer dos anos, a justiça administrada pela autoridade pública restou triunfante,

ficando a justiça exclusivamente particular restrita a casos excepcionais. 13

Nesse contexto de administração pública da justiça é que se pode falar da actio como principal meio de defesa de direitos no sistema romano privado. A realização dos poderes e faculdades decorrentes de um direito subjetivo não ficava mais exclusivamente dependente da colaboração da outra parte da relação, nem totalmente sujeita ao precário recurso da força dos próprios interessados.

11

SIDOU, Othon J. M.. Op. Cit. p. 143-144.

12

PROVERA, Giuseppe. A noção romana de actio. Seminários de direito romano na Universidade de Brasília: realizados em 1981 e 1982. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1984. p. 55-58.

13

Exemplificam essa tendência a lex Iulia de vi publica et privada, no Principado, que punia o credor que usasse a violência para obter o pagamento do devedor, com sanções que incluíam até a perda do direito de crédito; o Decretum, de Marco Aurélio, em que se ampliou o conceito de violência não apenas para abranger o ato de ferir pessoa, mas também a obtenção de um res devida, sem se socorrer da actio, entre outros exemplos (JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 234-236).

(21)

21 É comum entre os estudiosos da matéria se dizer que o direito romano era antes um sistema de ações do que um sistema de direitos subjetivos. Essa inferência decorre da circunstância de que, notadamente na fase do direito clássico, a evolução dos

institutos do direito romano se fez principalmente pela atuação do pretor no processo. 14

A estreita ligação entre o ius (direito subjetivo) e a actio era evidente, eis que os juristas e os pretores não determinavam as hipóteses em que um direito existia, mas os casos em que havia actiones. Com a criação e incremento dos meios processuais surgiam novos institutos jurídicos, de forma que não se mostra possível o conhecimento do direito

privado romano, sem o estudo do processo civil romano. 15

A actio romana seria, afinal, “um meio que protege um direito subjectivo pré-existente reconhecido pelo ordenamento jurídico (normalmente o ius civile) ou uma

situação de facto que o magistrado considerou merecedora de protecção jurídica” 16

(actio praetoria). 17 Na maioria dos casos, os direitos (iura) derivam de actiones,

consideradas típicas, pois para cada direito corresponderia uma ação própria, razão pela qual o número dessas ações cresceu com o gradual reconhecimento de novas relações

jurídicas. 18

Ao lado das ações, dá-nos notícia Gaio também acerca dos interditos (Instituições, IV, 138 ss.) meio pelo qual, em certas situações, o Pretor poderia desde já impor sua autoridade, para por fim a determinadas contendas, em especial referentes à posse e quase-posse. Consistia em uma ordem emitida pelo magistrado, baseada em cognição sumária dos fatos, de um fazer ou não fazer, cujas fórmulas eram reunidas no Edito, periodicamente publicado.

14

ALVES, José Carlos Moreira. Op. Cit. p. 182.

15

CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977. p. 111-112.

16

JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 237.

17

Ao lado do ius civile e suas respectivas ações (sistema de caráter rígido e formal, cujas fontes são as leis, os plebiscitos, os senatusconsultos, as constituições imperiais e os costumes), também havia o sistema formado pelo direito pretoriano (ius praetorium), de suma importância no período clássico, o qual teria decorrido da necessidade, com o passar dos anos, da criação de instrumentos processuais capazes de reparar eventuais iniquidades, provenientes da estrita observância das normas do ius civile, ou até mesmo para preencher as lacunas deste. Em razão da demora dos resultados práticos no ordo iudiciorum privatorum, dividido em duas instâncias, os magistrados (pretores investidos de jurisdição), buscando equidade, foram criando diversos institutos processuais para agilizar a tutela de direitos, fundados em seu poder de império. Esse poder discricionário dos magistrados era balizado pelos editos (programa publicado pelo magistrado antes de iniciar seu ofício, e que continha as circunstâncias em que outorgaria ou denegaria o iudicium) os quais deram ensejo a um complexo de normas (ius honorarium) posteriormente codificado sob o reinado do imperador Adriano (Edictum Perpetuum) (PAIM, Gustavo Bohrer. Breves Notas sobre o Processo Civil Romano. Revista jurídica (Porto Alegre. 1953), v. 405, 2011, p. 25-28).

18

(22)

22 Com o advento do Código justinianeu, contudo, os interditos foram

equiparados às ações e adaptados ao procedimento da cognitio extra ordinem. 19

A circunstância de as ações nesse período serem particularizadas, plúrimas e, em grande medida, a principal forma de revelação do direito subjetivo, já demonstra o quanto a actio romana se distingue do moderno conceito genérico de ação, apropriado

pelo direito processual. 20 À evidência, as actiones populares não escapam a esse

panorama geral do direito romano, sendo também típicas e de progressivo aumento numérico, com o decorrer das fases históricas.

A actio popular, como especial categoria de ação no direito romano, se contrapõe à actio privada, classe de ação outorgada a particulares para defesa de direitos subjetivos ou situações de fato, só podendo ser instaurada pela pessoa lesada. A actio popular, por outro lado, poderia ser atribuída a qualquer cidadão, para proteção de

interesses não meramente particulares, mas públicos. 21

Essa legitimação ativa conferida a qualquer cidadão não diferenciava classes, variando, contudo, a terminologia utilizada nas diferentes fontes, fazendo-se referência ora a cada indivíduo do povo (cuivis e populo/ cuilibet ex populo), ora aos cidadãos em geral (mones cives), ou ainda àquele de uma determinada colônia ou município (colonorum eius coloniaecui volet/ municipum eius municipii cui volet, cuique per hanc legem licebit). A actio popularis seria, afinal, aquela ação conferida a qualquer cidadão

como um do populus (base política romana). 22

O Digesto, repositório de pareceres dos jurisconsultos, contém um título todo dedicado às chamadas popularibus actionibus (título XXIII, Livro 47), a partir dos ensinamentos de Paulo e Ulpiano, no qual as ações populares são definidas como aquelas que amparam direito próprio do povo (Eam popularem actionem dicimus, quae suum ius populi tuetur). Peculiaridades do procedimento da ação popular ainda são objeto de comentários nesse título, como a possibilidade de se opor exceção de coisa

19

PAIM, Gustavo Bohrer. Op. Cit. p. 28-31.

20

Cintra, Dinamarco e Grinover atestam ser a conquista definitiva da ciência processual o reconhecimento da autonomia do direito de ação, a qual teria se desprendido por completo do direito subjetivo material. Dizem ainda que, para a doutrina dominante no Brasil, a ação seria um direito subjetivo público, dirigido contra o Estado, de natureza abstrata, mas conexo a uma situação jurídica concreta (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 273-274). O termo “ação”, no entanto, é rico em significados, sendo esta definição da ação como um direito abstrato e desgarrado do direito material apenas uma das diversas concepções de ação. É certo, contudo, que essa noção foi cunhada pelo direito moderno, sendo desconhecida no período romano.

21

JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 258.

22

FADDA, Carlo. L’azione popolari: studio di diritto romano ed attuale.Torino: Unione Tipografico-Editrice, 1894.p. 56-58.

(23)

23 julgada; a impossibilidade de o demandante nomear procurador, critérios para quando tal espécie de ação fosse exercida por muitos ao mesmo tempo (o Pretor escolheria o mais idôneo, ou aquele que tivesse interesse na causa), entre outras medidas.

Além de tais disposições procedimentais genéricas, ainda é possível se identificar no Digesto descrições diversas de ações e interditos de caráter popular, entre os quais se destacam: (a) actio sepulchri violati (D. 47.12), ação concedida contra quem dolosamente violasse sepulcro, a qual poderia ser exercitada por quem pertencesse a coisa ou por qualquer um que quisesse exercê-la; (b) determino moto (D. 47.21.3), contra os que removessem dolosamente marcos colocados para assinalar limites agrários, punindo com multa em favor do erário por cada pedra removida; (c) actio de effusis et deiectis (D. 9.3) contra aqueles que lançassem ou derramassem coisas sobre transeuntes, seja em lugares públicos ou privados, por ser de utilidade pública que se ande pelos caminhos sem medo e sem perigo; (d) actio de albo corrupto (D. 2.1.7) impunha-se multa a quem dolosamente alterasse o edito do pretor (e) de locis et itineribus publicis (D. 43.7), permite-se a qualquer um exigir respeito pelas coisas públicas, de uso de todos, como caminhos e vias públicas, concedendo-se o respectivo interdito; (f) ne quid in loco publico vel itinere fiat (D. 43.8), interdito proibitório para

que não se edifique em lugar público, além de vários outros casos. 23

Conquanto cada um dos exemplos citados regulasse situações bem específicas, é notório que tais ações populares acobertavam interesses que transcendiam a esfera de individualidade dos cidadãos, envolvendo questões referentes ao patrimônio comum, à fé e à ordem públicas, como bem explica Othon Sidou:

É que em Roma, emparelhando os crimes e os delitos, havia ilícitos que, sem constituírem ofensa enorme à sociedade ou ao indivíduo, isto é, nem tão amplos que vulnerassem o Estado lato sensu nem tão restritos que se circunscrevessem ao indivíduo, eram entretanto ofensivos à sociedade inteira ou a uma coletividade determinada e contra os quais se concediam ações a quem as quisesse intentar. 24

Ainda assim, esclarece o jurista que tais ações populares, apesar de serem também chamadas de públicas, seriam na verdade privadas em sentido hodierno. O

23

Além dos citados exemplos extraídos do Digesto, Othon Sidou ainda identifica diversos outros casos de ações populares romanas fundadas na lei, no edito do Pretor e ainda certos casos não identificados em lei ou edito, como as ações contra os que depositassem imundícies, depusessem cadáveres ou realizassem sacrifício funerário no bosque sagrado de Lucéria (Inscrição de Lucéria, do ano 254 ou 240 a.C.), ou contra aqueles que mantivessem animais nocivos nos caminhos públicos (D. 21.1.42,1). SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular: as garantias ativas dos direitos coletivos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.. p. 392-393.

24

(24)

24 qualificativo “público” atribuído denotaria, justamente, a ideia de “pertencimento a

todos, de uso geral, comum a todos”, e não como ação de incumbência do Estado. 25

Ademais, a actio era um instituto próprio do ordo iudiciorum privatorum, juízo voltado ao arbitramento de questões de direito privado.

Esclarece Othon Sidou que “o conjunto de normas estabelecidas para regularizar a atuação dos princípios jurídicos reservados ao Estado, ou a ordo iudiciorum publicorum, não se exercitava mediante actiones sim de questiones”, sendo objeto dos iudicia publica os delitos considerados crimen, como homicídio, falsificação, peculato, rapto etc. Os delitos e ofensas em geral que não se consideravam crimen, cabiam ao iudicia privada, situação em que se enquadravam os casos de actio popular.

26

Essa distinção é importante, visto que os romanistas classificam a maior parte das actiones populares como ações do tipo penal, mas que nada tem a ver com o

procedimento criminal. 27 As chamadas ações penais, no direito romano, eram aquelas

que se contrapunham às do tipo reipersecutórias. As ações penais seriam as que decorrem de um delito, visando à condenação do réu a uma quantia, a título de pena privada; já as reipersecutórias seriam as que possibilitam ao autor o ressarcimento de

um dano, ou a restituição daquilo com que o réu indevidamente se enriqueceu. 28As

ações reipersecutórias reivindicariam uma res, ao passo que as penais, reclamariam uma poena, sendo esta “pena” a quantia em dinheiro que se exige ao autor de um delito, ou

quase delito, independentemente de um possível dano patrimonial causado. 29

A actio popular romana era, enfim, uma categoria do direito privado, em que pese configurar forma de o cidadão interferir em questões que vão além da sua esfera de interesses meramente individuais. Demonstra o vínculo do cidadão romano com as coisas públicas, que permaneceu mesmo com a superação da organização gentílica.

Rodolfo de Camargo Mancuso comenta que o fato de a noção de “Estado” ainda não se encontrar bem definida em tal período histórico explicaria essa forte ligação entre o cidadão e a gens, permitindo ao indivíduobuscar a tutela dos bens coletivos. Defende que a atávica noção de “povo” e “nação” compensaria a falta de um “Estado” bem definido e estruturado; a res publica pertenceria a cada um dos cidadãos

25

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 389.

26

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 387-388.

27

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 387.

28

ALVES, José Carlos Moreira. Op. Cit. p. 233.

29

(25)

25 romanos, sentimento que permitiria compreender a legitimidade do cives a pleitear em

juízo, em nome dessa universitas pro indiviso. 30

De fato, o Estado é espécie de organização política, elemento histórico e cultural que apenas se pode identificar a partir da Idade Moderna. Até esse momento as estruturas de governo assumiram outras modalidades, sendo imprecisa a expressão Estado romano, bastanteutilizada por romanistas e ensaístas do século XIX (e ainda hoje encontrada), por tentar transpor indevidamente para o mundo romano conceitos como divisão de poderes, sociedade e Estado que não existiam em tal período histórico.

31

Quando se fala em “Estado” romano, na verdade, faz-se referência ao poder político desse período, organizado de forma bastante peculiar.

Analisando essas particularidades do poder público em Roma, Georg Jellinek destaca a noção de civitas, ou “comunidade de cidadãos”, ou ainda de res publica, “comunidade do povo”, como concepções que definem a organização política romana, a

partir da compreensão de seus próprios membros. 32

A natureza jurídica da cidadania encontrou em Roma amplo desenvolvimento, até mesmo porque a personalidade jurídica individual, independente de um poder político, somente se reconhecia em plenitude quando se tratava de um cidadão. Não se reconhecia a personalidade ao homem como tal, nem mesmo com o advento do

cristianismo. 33 As ações populares desenvolvidas nesse período reafirmam, portanto,

essa grande significância do cidadão na organização social romana, bem como o estreito vínculo desse sujeito com as coisas públicas.

Essa ausência de uma noção de Estado como ente personalizado e dotado de responsabilidades legais, típica do Estado de Direito moderno, é um dado relevante também para se compreender o alcance das ações populares romanas, no que concerne ao sujeito em face do qual tais medidas se destinam.

Compulsando fontes dessa época histórica, Rui Barbosa conclui que não havia no direito processual de Roma, ação contra o “Estado”, fosse por dano dele oriundo aos particulares, fosse por débito de qualquer outra natureza. Isso porque a soberania da força política romana não tolerava limites, aos atos abusivos cometidos pelos órgãos do soberano falecia o caráter essencial ao dano jurídico: a injúria (lesão do direito), já que

30

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular. 7ª Ed. São Paulo: RT, 2011. p. 47.

31

DANTAS, Ivo. Teoria do Estado Contemporâneo. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2013. p. 58-59.

32

JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. México: FCE, 2000. p. 303.

33

Ressalta Jellinek, no entanto, que no Principado e no Império houve uma redução dos direitos públicos, a tal ponto que o caráter de cidadão limitou-se quase que exclusivamente a sua capacidade de direito privado(JELLINEK, Georg. Op. Cit. p. 305-306).

(26)

26 o direito não poderia ser ferido por quem, como lei viva, o criava. A ausência de divisão do poder político em poderes distintos e independentes seria outra razão para essa irresponsabilidade “estatal”; o poder judiciário, executivo e legislativo fundiam-se todos nas mãos do soberano, superior a toda lei, no estágio culminante da experiência política romana. Logo, não poderia haver ação contra o “Estado”, ou seja, contra o príncipe, encarnação viva e absoluta da soberania. 34

As ações populares romanas, certamente, não escapavam a essa conjuntura. Os exemplos citados já demonstram que, se por um lado o exercício da ação era conferido a qualquer cidadão, por outro, o demandado também seria um indivíduo, eventual violador do interesse comum protegido, e não uma entidade coletiva de caráter público. Não há qualquer menção à possibilidade de se intentar ação popular contra a própria Roma nas disposições gerais contidas no Digesto (47.23), pelo contrário, pois as ordens ali referentes aos demandados tratam sobre questões como a autorização para nomear procurador (47.23.5), bem como acerca da intransmissibilidade aos herdeiros em caso de morte do réu (47.23.8), situações próprias de um sujeito passivo particular.

Em vista de todas as características expostas, pode-se entender que a actio popular se distinguia por (i) resguardar interesses comuns, de natureza transindividual, mas cuja violação não configurava crime; (ii) ser conferida a qualquer cidadão, membro constitutivo da organização política romana, estreitamente vinculado às coisas públicas; (iii) não possibilitar, no entanto, a sujeição do poder soberano de Roma a medidas legais, sendo exercida em face de outro sujeito particular.

1.3 Ação popular: transição do direito romano para o direito moderno.

Toda construção jurídica que respaldava a aplicação das ações populares perdeu força com a fratura do império de Roma e a respectiva quebra do vínculo entre cidadão e bens públicos, que justificava a tutela diferenciada da actio popular romana. Até mesmo porque as relações de poder e as forças políticas no período medieval modificaram-se drasticamente, tornando-se mais difusas, desestimulando o exercício de direitos e interesses públicos.

34

Rui Barbosa ainda expõe que a tal ponto chegava entre os romanos a irresponsabilidade do “Estado”, que até em matéria de desapropriação por utilidade pública, não havia princípio legal que refreasse o arbítrio do soberano (BARBOSA, Rui. Responsabilidade civil do Estado por ato dos seus representantes – razões pelas quais o Direito Romano não a consagra. Revista dos Tribunais, ano 101, vol. 916, fevereiro/2012, p. 65-66).

(27)

27 Não obstante a conjuntura do período medievo ter levado a esse enfraquecimento, as ações populares não desapareceram de todo. Nesse ponto defende Othon Sidou que “do mesmo modo como a moeda escasseou no longo transcurso da Idade Média sem contudo ter deixado de circular, assim também as ações populares, de bem reduzida força operativa embora, permaneceram a ter existência e aplicação.” Exemplos desse exercício pontual da ação popular no direito intermédio encontram-se no regime estatutário de repúblicas ou reinos mediterrâneos, ainda que de forma bem

simplificada. 35

Estatutos de Milão, Lodi, Brescia, Bérgamo, Navarro continham fórmulas nesse sentido, cada qual impondo suas exigências ao autor popular (fiança, juramento, prova testemunhal, ou nada se autor fosse digno de fé), havendo ainda acréscimos de novas figuras que autorizavam o exercício dessa ação, como as práticas ou atos atentatórios à segurança, à saúde, ao trânsito público, as fraudes no comércio e as

defraudações nos sistemas de pesos e medidas. 36

A demanda popular na Idade Média foi ainda objeto de estudo do enciclopedista Tomaso Bruno, o qual deduziu que “onde o regime político assume caráter de absolutismo e de despotismo, a ação popular primitiva, aquela que convoca qualquer um a participar na tutela da coisa pública, não podia surgir”, sendo encontrada nos regimes comunais. Afirma ainda que “até quando e até onde o direito romano manteve sua poderosa influência e foi aplicado como direito comum, essa ação foi observada e adotada compativelmente com os regulamentos políticos dos Estados e das

cidades, em que o direito mesmo se impôs”. 37

A tímida presença da ação popular no direito medieval, portanto, esteve ligada não apenas a uma organização política que permitisse ao cidadão participar no cuidado com a coisa pública, mas também se mostrou resistente onde o direito romano manteve sua influência.

Ainda que o interesse teórico e prático pelas coletâneas do Corpus Iuris Civilis tenha sido retomado com maior vigor a partir do século XI, na Itália, o direito romano justinianeu nunca deixou em absoluto de ser estudado e aplicado. Nos primeiros séculos medievais essas fontes não alcançaram divulgação notória ou alcance efetivo, mas já eram conhecidas, sendo conservadas e até analisadas nos centros de cultura eclesiástica.

35

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 405.

36

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 405.

37

BRUNO, Tomaso apud SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 29.

(28)

28 O fenômeno que ficou conhecido como renascimento do direito romano designa, justamente, um decisivo interesse no estudo das fontes justinianéias, em contraste com a difusão modesta ou indiferente do direito romano até o século XI, movimento que nos dizeres de Almeida Costa representa o “ponto de partida de uma evolução longa e

diversificada que conduziria à ciência jurídica moderna”. 38

Esse longo processo de redescobrimentoe recepção do direito romano justinianeu, que moldou o direito privado de vários países do ocidente, entre outros fatores, possibilitou de forma determinante a consagração da ação popular nos ordenamentos modernos, em especial o brasileiro.

O chamado renascimento do direito romano representou, essencialmente, uma revalorização científica desse direito, não apenas uma mera retomada prática, ou

tampouco simples recuperação dos textos perdidos, 39 dando azo ao sucessivo processo

de recepção, composto por diferentes etapas. Marcam esse longo desenvolvimento histórico (i) a fase de recepção realizada pelas universidades medievais, a partir de Bolonha; (ii) a fase da recepção humanista, notadamente na França e, enfim, (iii) a

recepção pandectística, na Alemanha do século XIX. 40

Cada qual dessas etapas de recepção representa uma nova forma de comunicação e aprendizagem do direito romano, não obstante as fontes jurídicas

romanas permanecessem as mesmas. 41

A escola dos glosadores, a partir da universidade de Bolonha, em meados do século XII, inaugurou o trabalho de revalorização do direito romano, ao tomar textos do Corpus Iuris Civilis como objeto de estudo.

O método de análise consistia, fundamentalmente, na inserção de glosas ao lado ou entre as linhas do texto original, além da elaboração de summae, que se

38

COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do direito português. 4ª Ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 230-231.

39

KEMMERICH, Clóvis Juarez. O direito processual na idade média. Porto Alegre: SAFE, 2006. p. 88.

40 Explica Menezes Cordeiro que, na recepção, verifica-se que uma comunidade, independente de

qualquer dominação política, econômica ou social, adota elementos jurídicos significativos de outra, presente ou passada. (CORDEIRO, Menezes A. Prefácio. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 4ª Ed.Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008. p. LXXI).

41

Essa particular sistematização na aprendizagem e comunicação do direito é aquilo que Menezes Cordeiro chama de sistema externo, que se contrapõe ao sistema interno, equivalente à lógica mínima das relações estáveis que permite diferenciar o direito do puro arbítrio. Para este autor, o progresso do direito civil continental pode ser explicado com base na sucessão de modelos sistemáticos externos (CORDEIRO, A. Menezes. Op. Cit. p. LXXIII).

(29)

29

tratavam de exposições sintéticas de matérias ou partes dos livros jurídicos.42 A técnica

aplicada remetia às artes do trivium (gramática, dialética e retórica), pertencentes ao conjunto das artes liberales, já conhecidas e ensinadas anteriormente. O caráter inovador da escola de Bolonha, no entanto, consistiu em aplicar a técnica das glosas, usada até então para fins gramaticais ou semânticos, com intenção dogmática, no

esclarecimento e compilação dos textos romanos. 43

A aplicação prática, interpretação e organização lógica das fontes antigas na vida medieval exigiam enorme esforço dos seus cultores, porquanto os textos compilados provinham de épocas diversas, haviam sido retirados de seu contexto e não

estavam a salvo de interpolações. 44 O empenho no estudo dos textos romanos, todavia,

justificava-se em razão da autoridade que a cultura antiga desfrutava no espírito medieval.

Assim como o domínio imponente da Sagrada Escritura, dos textos dos concílios e dos padres da igreja sobre a teologia, o Corpus Iuris gozava da mesma autoridade no pensamento jurídico, afirmando Franz Wieacker que “ele teve sobre o

sentimento jurídico medieval a força de uma revelação no plano do direito”. 45 Por essa

razão, quando os glosadores interpretavam os textos e tentavam ordená-los, não buscavam provar a justeza das afirmações, fundamentá-lo ou compreendê-lo do ponto de vista histórico, tampouco torná-los úteis para a vida prática. Intentavam, antes de tudo, comprovar com o instrumento da razão (lógica escolástica) a verdade irrefutável da autoridade. Para os juristas medievais, no Corpus Iuris, a própria razão se convertera

em palavra – ratio scripta. 46

Os chamados comentadores, práticos ou conciliadores, já em momento posterior (século XIV),ajudaram a sedimentar o trabalho iniciado pelos glosadores, dando continuidade ao estudo e ensino do Corpus Iuris. Esses juristas, no entanto,

42

Ainda foram usados outros meios técnicos como as regulae iuris (definições que enunciavam de forma sintética princípios ou dogmas jurídicos fundamentais), os casus (de início, meras exemplificações de hipóteses concretas a que as normas se aplicavam e, mais tarde, exposições interpretativas), as distinctiones (análise dos vários aspectos em que o tema jurídico considerado podia ser decomposto), entre vários outros. As glosas, portanto, constituíram apenas um ponto de partida e os glosadores, consoante com sua preferência e o seu fôlego, dedicaram-se aos diferentes tipos de obras (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op., Cit. p. 238-239).

43

KEMERICH, Clóvis Juarez. Op. Cit. p. 92.

44

KEMERICH, Clóvis Juarez. Op. Cit. p. 92-93.

45

Essa autoridade de que gozavam os textos de Justiniano na Idade Média é atribuída à “ideia de Roma”, ou seja, a convicção geral de que o império romano, continuado até a atualidade através da translatio imperii, constituía a única forma pensável do corpo de Cristo no ocidente, a noção de que o império de Constantino permaneceria constituindo a própria comunidade cristã (WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 4ª Ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010. p. 43-44).

46

(30)

30 relacionavam o direito romano com os direitos estatutários locais, com um compromisso prático, tornando as fontes romanas diretamente úteis para a satisfação das necessidades da vida. Contribuíram, assim, para a formação do direito comum na

Europa, 47 assim como para a aproximação entre o direito civil clássico e a realidade

jurídica de seu tempo. 48

Ao contrário dos glosadores, os comentadores não se prenderam muito à coletânea justinianeia, dando preferência à aplicação das glosas e aos comentários sucessivos que sobre elas iam sendo elaborados, em vez de estudarem os próprios textos romanos. Socorreram-se ainda de outras fontes, como costumes locais, direitos estatutários e do direito canônico, iniciativa que permitiu a criação de novos institutos e novos ramos do direito. Entre os estudiosos dessa corrente, destacou-se Bártolo, cujos comentários adquiriram prestígio generalizado, tornando-se até mesmo fonte subsidiária no ordenamento jurídico de vários países. Em Portugal, as Ordenações determinaram a

aplicação supletiva dos comentários de Bártolo, ao lado da Glosa de Arcúsio. 49

Glosadores e comentadores, ao lado dos canonistas, constituíram durante longo período a camada culta da Idade Média, mas o empenho em compreender e dar sentido lógico às fontes romanas esbarrava nas limitações do estilo escolástico. O método de interpretação jurídica desses cultores, baseado na noção de autoridade do direito romano e na sua disposição prática, dava já sinais de esgotamento quando ganhou força o movimento humanista, responsável pelo segundo ciclo de recepção, a partir do século XV.

Havia ainda na corrente humanista um forte senso de reverência à cultura antiga e aos textos de origem romana, mas sob outra vertente filosófica. Ante o nominalismo aristotélico dos escolásticos, opunha-se o idealismo platônico do humanismo. Propunha-se uma nova relação da cultura europeia com o direito romano, dessa vez a partir de uma experiência direta da antiguidade. Esclarece Wieacker que “assim como o humanismo provocou a Reforma, através da busca do sentido literal,

47

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 80-86.

48

MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da idade média. Fundamentos da história do direito.4ª Ed. Antônio Carlos Wolkmer (Org.). Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 205.

49

Essa previsão de aplicação supletiva dos comentários de Bártolo e da Glosa de Arcúsio vigorou por certo período, até o advento da chamada Lei da Boa Razão (18 de agosto de 1769), que modificou a teoria das fontes. Essa lei proibiu que as glosas de Arcúsio e as opiniões de Bártolo fossem alegadas e aplicadas em juízo, em razão de imperfeições jurídicas atribuídas tanto à falta de conhecimentos históricos e linguísticos dos referidos autores, como à sua ignorância das normas do direito fundamental e divino. (COSTA, Mário Júlio Almeida. Op. Cit. p. 267, 406-407).

(31)

31 puro e original, das fontes hebraicas e gregas sem a mediação da vulgata e do ensino da

Igreja, assim ele provocou também o regresso da jurisprudência às fontes autênticas”. 50

A recusa da mediação do direito romano pelas autoridades medievais e o lastro das ideias no idealismo de Platão distinguiam o pensamento humanista e impulsionavam suas posturas críticas.

Em razão disso, esses teóricos rechaçavam as obras de referência medievais (Glosa de Arcúsio) e o culto às autoridades de Bártolo e Baldo, assim como criticavam fortemente a forma como os glosadores e comentadores compreendiam e lecionavam o direito, com o aglutinamento de figuras lógicas e questões controversas que tornavam o ensino jurídico moroso e embotado. Em síntese, propunham no lugar da tradição, o estudo das fontes puras; em vez de comprovação da autoridade por artifícios lógicos, a compreensão do ideal de direito e uma organização sistemática de seus princípios

jurídicos. 51

Nessa etapa de recepção o aspecto histórico-cultural do direito romano ganha destaque, junto com uma nova forma de ordenar e expor a matéria jurídica, com maior

atenção ao aspecto sistemático. 52

Mesmo representando uma etapa posterior no pensamento jurídico, o humanismo não conseguiu um triunfo absoluto sobre o antigo método bartolista (mos italicus), especialmente em países como Itália e Alemanha, em que essa última orientação continuou a predominar. O método humanista (mos gallicus) era mais voltado à especulação pura, tendo construído um direito teórico, de tendência erudita, ao passo que os comentadores levaram a um “direito prático”, com a utilização do direito romano para encontrar soluções para casos concretos. Do século XVI ao século XVIII,

confrontaram-se os dois métodos. 53

Contudo, o potencial inspirador do direito romano ainda não havia se esgotado, uma vez que, a partir do chamado usus modernus, dá-se uma nova virada metodológica e interpretativa, que alcança seu apogeu no século XIX, notadamente na Alemanha, dando ensejo à recepção pandectística.

50

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 89-90.

51

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 91-92.

52

Menezes Cordeiro afirma que essa tentativa humanista, empírica e periférica, de tentar ordenar os fragmentos do Digesto em razão de diversos fatores externos (equivalência linguística, proximidades do objeto etc), permitiu que o Direito assumisse pela primeira vez uma ordenação, ou seja, um efetivo sistema externo (CORDEIRO, A. Menezes. Op. Cit. p. LXXVII).

53

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