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Conferência Internacional sobre Harmonização

CAPÍTULO V – NEGOCIAÇÃO INTERNACIONAL DO CONTROLE SANITÁRIO

5.4 Conferência Internacional sobre Harmonização

Desde o final da década de 80, as maiores indústrias farmacêuticas dos Estados Unidos, Europa e Japão tentavam convencer as autoridades regulatórias destes países a padronizar seus regulamentos. A intenção da indústria farmacêutica era diminuir os gastos com o desenvolvimento de novas drogas, relacionados aos diferentes requisitos, inclusive, de pesquisas clínicas, exigidos pelas respectivas agências. Como recompensa, ofereciam a possibilidade de que os novos medicamentos estivessem mais rapidamente à disposição da população, o que poderia salvar vidas.

Uma primeira alegação das empresas era que as agências regulatórias dos diferentes países tinham os mesmos objetivos, os de garantir a segurança e a eficácia dos medicamentos à população, mas usavam diferentes maneiras de alcançar semelhantes objetivos. A harmonização dos regulamentos poderia reduzir o tempo de licenciamento com benefícios para todos.

As empresas também reclamavam dos custos de desenvolvimento de novos fármacos, desde sua descoberta até o licenciamento, que haviam aumentado de US$ 54 milhões, em 1976, para US$ 230 milhões, em 1990. Grande parte desse acréscimo exponencial era atribuído às crescentes exigências das autoridades regulatórias. Os custos para as empresas aumentavam muito para conseguir a adequação aos diferentes requisitos das agências. A harmonização poderia tornar mais lenta a elevação dos custos de pesquisa.

Um terceiro argumento das empresas era relacionado ao período de validade da proteção patentária. No início dos anos 80, as empresas demoravam, em média, oito anos desde a descoberta de novo medicamento até o seu lançamento ao mercado. No final da mesma década, esse período havia aumentado para doze anos em virtude das novas exigências das agências regulatórias. Dado que a maioria das patentes expira em vinte anos, às empresas restavam apenas oito anos para a recuperação do capital investido. A eliminação das exigências regulatórias excessivas possibilitaria aumentar o período de validade das patentes, gerando lucros adicionais às empresas que poderiam ser reinvestidos em pesquisas. As empresas ainda alegavam que a harmonização poderia reduzir os testes em animais e em seres humanos ao buscar os melhores métodos para regulamentar novas drogas.

Da mesma forma, as agências regulatórias sofreram a pressão para negociar com a indústria farmacêutica dos próprios governos, que identificavam crescente aumento com os custos da atenção médica em seus países. Na Europa, os gastos com saúde alcançavam cerca de 8% do Produto Interno Bruto, enquanto que essa taxa era maior do que 12% nos Estados Unidos. Os medicamentos eram responsáveis por cerca de 10% destes gastos totais com saúde (FINANCIAL TIMES, 1991).

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A OMS estima que, a cada ano, os agrotóxicos causam mais de três milhões de casos de envenenamento agudo de agricultores e cerca de 20 mil mortes (AVERY et al., 1993).

As empresas japonesas – que detinham, em 1991, apenas 5% do mercado mundial de medicamentos, impressionadas com o tamanho do mercado unificado europeu e com a diminuição do faturamento em seu mercado interno motivado por cortes governamentais nos preços dos medicamentos – converteram-se à causa da harmonização (FINANCIAL TIMES, 1991). O mercado japonês era impulsionado por um esquema de sobreprescrição de medicamentos que onerava muito o custo da assistência médica naquele país: enquanto nos Estados Unidos os medicamentos eram responsáveis por 8% das despesas com saúde e na União Européia por 16%, no Japão, os medicamentos eram responsáveis por 30% dessas despesas. Os médicos compravam medicamentos diretamente das indústrias produtoras e os prescreviam aos seus pacientes, sendo reembolsados pelos seguros estatais e privados de saúde. Com providências do Ministério da Saúde japonês para alterar esse esquema, o mercado começou a diminuir e expor a fraca capacidade de competição das empresas japonesas com as empresas americanas e européias. O Japão também sustentava uma política de não aceitar as pesquisas clínicas realizadas fora do país, obrigando as empresas estrangeiras que lá quisessem solicitar registro de medicamentos a realizar toda a pesquisa clínica dentro do próprio Japão (THE ECONOMIST, 1996).

Em 1990, as autoridades da Administração de Medicamentos e Alimentos (FDA) dos Estados Unidos, do Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar do Japão e da Comissão Européia concordaram em iniciar entendimentos para a harmonização dos requisitos de licenciamento de novos medicamentos em seus mercados.

A atitude da agência americana (FDA) era a mais reticente em comprometer-se com a harmonização, o que levou algumas companhias a suspeitar que a harmonização, se alcançada, ficaria aberta à interpretação dos técnicos americanos. Alguns diretores da FDA reconheciam a necessidade de procedimentos mais rápidos e simples para o licenciamento de medicamentos; outros entendiam que esse caminho poderia pôr a população em risco. Este era o dilema das autoridades regulatórias: maior rapidez na comercialização poderia beneficiar muitos pacientes e salvar vidas, mas aumentaria a possibilidade de repetir a cena da talidomida, no início dos anos 60.

Dilema semelhante foi experimentado pela FDA, na década de 80, no caso dos primeiros medicamentos anti-retrovirais, quando grupos socialmente envolvidos com a epidemia de AIDS reivindicaram a possibilidade de usar os fármacos que ainda estavam cumprindo as detalhadas e demoradas etapas de pesquisa clínica exigidas pela agência americana, conforme relato de HEIMANN (1997:157). Este autor classificou o dilema da FDA segundo a probabilidade de realizar: i) um erro do tipo I – aprovar nova droga que pode gerar problemas de saúde, inclusive, mortes; ou ii) erro do tipo II – rejeitar ou retardar a aprovação de nova droga que poderia ajudar muitos pacientes ou salvar vidas. Desenvolvendo uma tese acerca dos ‘riscos aceitáveis’, o autor afirma a necessidade das agências regulatórias desenvolverem estratégias para balancear esses dois tipos de risco. A FDA e a NASA, organizações estudadas pelo autor, construíram imagens de alta confiabilidade com essas estratégias, somente possíveis quando existe uma estrutura organizacional e técnicas gerenciais apropriadas. Um licenciamento mais rápido exigiria um sistema de farmacovigilância ampliado e mais ágil para detectar possíveis efeitos adversos e retirar do mercado os produtos inseguros.

As exigências da indústria farmacêutica criaram a necessidade de que as agências adquirissem capacidade de obter alto grau de confiança em suas decisões no menor tempo e com a menor exigência possível.

A Conferência Internacional sobre Harmonização147 teve início em abril de 1991, quando foi estabelecido um Comitê Diretivo composto de seis representantes oficiais – dois da Comissão Européia, dois da FDA/EUA e dois do Ministério da Saúde, Trabalho e Bem Estar do Japão – e de seis representantes das respectivas federações das indústrias farmacêuticas. Autoridades do Canadá e da Suíça – representando a Área Européia de Livre Comércio –, bem como da Organização Mundial da Saúde, que participam como observadores da Conferência e têm assento no Comitê Diretivo.

O Comitê Diretivo trabalha segundo um conjunto de Termos de Referência da Conferência, determina suas políticas e procedimentos, seleciona os temas para a harmonização e monitora o progresso dos trabalhos. Cada uma das partes – autoridade regulatória e representação das empresas – conta com um Coordenador-ICH nomeado, que funciona como o principal ponto de contato com a Secretaria-ICH, e garante que os documentos sejam distribuídos às pessoas indicadas para os trabalhos.

A Secretaria-ICH funciona em Genebra e é patrocinada pela Federação Internacional das Associações das Indústrias Farmacêuticas148 e sua função principal refere-se à documentação, preparação

dos encontros do Comitê Diretivo, assim como a preparação e a coordenação dos encontros dos grupos de trabalho compostos por especialistas.

Para cada um dos temas selecionados para a harmonização, o Comitê Diretivo nomeou um Grupo de Trabalho de Expertos para analisar as diferenças, em termos de exigências, entre as três regiões e desenvolver consenso cientificamente orientado para conciliá-las. Os Grupos não têm obrigatoriamente componentes fixos, mas cada uma das partes mantém um coordenador nomeado que serve de contato para cada tema. Autoridades dos Estados Observadores, das farmacopéias, das indústrias de produtos de venda livre e da indústria de genéricos são convidados para participar dos Grupos de Expertos, que não podem funcionar sem a presença de, pelo menos, um dos expertos nomeados pelo Comitê Diretivo para cada parte.

A Conferência é iniciativa que envolve agentes reguladores e representantes da indústria regulada como parceiros iguais nas discussões científicas e técnicas dos procedimentos, além de testes que são requeridos para avaliar a segurança, qualidade e eficácia dos medicamentos. O foco principal centra-se nos requerimentos relacionados aos novos fármacos que, em sua maioria, são desenvolvidos na Europa Ocidental, Estados Unidos ou Japão, razão pela qual a Conferência definiu que a harmonização vale apenas para o registro nessas três regiões, embora o objetivo seja o de expandir seu uso a todas as partes do mundo.

Cada país/região estabelece uma Rede de Contatos entre os seus expertos das agências regulatórias e das indústrias para garantir que as discussões reflitam os pontos de vista e as políticas de suas entidades. Também são realizadas, por cada uma das partes, Oficinas de Trabalho Regionais, visando à implementação e ao uso das diretrizes e regulamentos harmonizados.

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Mais conhecida pela sigla em inglês ICH.

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As propostas para novas harmonizações podem surgir: i) das oficinas de trabalho regionais; ii) de outras oficinas, conferências e simpósios, nacionais ou internacionais de pesquisa e desenvolvimento e de atividades de regulamentação; e, iii) de associações, federações e sociedades reconhecidas, que representem profissionais envolvidos técnica ou cientificamente com avaliação e registro de medicamentos. Cada iniciativa deve vir acompanhada de um documento que descreva o tema, o problema identificado e a proposta de harmonização. O Comitê Diretivo analisa, define e encaminha a proposta e, em conjunto ao respectivo Grupo de Expertos, estabelece um cronograma para o trabalho que não excede normalmente dois anos.

Desde 1991, foram realizadas cinco Conferências – Bruxelas, 1991; Orlando, 1993; Yokohama, 1995; Bruxelas, 1997; San Diego, 2000 –, sendo que cada uma delas comporta quatro reuniões do Comitê Diretivo e dos Grupos de Trabalho, duas em cada ano. O processo de harmonização é dividido em etapas:

passo 1 – a construção do consenso; a partir do documento que propõe a harmonização e do relatório de um membro do Grupo de Trabalho;

• passo 2 – aprovação do Comitê Diretivo; que decide se o passo 1 foi suficientemente preciso em termos científicos no consenso alcançado;

• passo 3 – consulta interna ampla; nas três regiões, para permitir a participação de todos os envolvidos ou interessados;

• passo 4 – adoção do texto harmonizado; a partir do relatório das consultas, com alterações ou não derivadas da consulta;

• passo 5 – a implementação; as autoridades em cada parte adotam os regulamentos harmonizados. Estão nos estágios 4 e 5 as propostas de 36 regulamentações, tendo-se iniciado mais de 50 temas.

Na Conferência de 1997 realizou-se uma avaliação dos trabalhos que atestou o seu sucesso e encerrou uma primeira fase da harmonização. Foi decidida a continuidade do processo das Conferências com a reafirmação do compromisso de implementar a harmonização internacional, assegurando que medicamentos de boa qualidade, segurança e eficácia venham a ser desenvolvidos e autorizados da forma mais rápida e menos onerosa.

Os Termos de Referências foram revisados para contemplar os objetivos de: i) manter fórum de diálogo entre as autoridades regulatórias e as indústrias que realizam pesquisa; ii) monitorar e atualizar os requisitos técnicos harmonizados; iii) prevenir divergências em futuros requerimentos, selecionando temas nos quais seja necessária a harmonização, considerando, da mesma forma, os avanços da tecnologia; iv) facilitar a adição de novas ou revisadas técnicas de pesquisa que permitam economia no uso de humanos, animais e recursos materiais, sem comprometer a segurança; e, v) facilitar a disseminação e a comunicação da informação sobre as diretrizes harmonizadas e o seu uso como referência de padrões.

Um Documento Técnico Comum com vistas às solicitações de registro de medicamentos também está sendo harmonizado para ser adotado pelos agentes regulatórios dos países.

A Organização Mundial da Saúde tem participado e estimulado a disseminação das diretrizes harmonizadas e o seu uso de forma generalizada pelos países que não participam da Conferência. Este

talvez seja o grande objetivo da indústria farmacêutica, pois difunde a tese de que, feito o registro em somente uma das agências regulatórias participantes da Conferência, as agências dos outros países – adotando a mesma regulamentação e, inclusive, os mesmos tipos de documentos em que são registradas as informações exigidas – não têm motivo para retardar ou desaprovar o registro em seu país.

Esta harmonização globalizada, embora não retire a autoridade e a soberania das autoridades sanitárias de cada país, introduz, sem dúvida, um elemento de pressão quase incontestável para as agências dos países periféricos caracterizadas pela debilidade institucional. Os benefícios e prejuízos gerados pela iniciativa da Conferência talvez ainda não estejam suficientemente apreendidos nesses países, cujos mercados interessam às empresas transnacionais.

A perspectiva dos países excluídos do mapa da tecnologia não é otimista. A realização de pesquisas clínicas em países que não participam da Conferência torna-se cada vez mais improvável, uma vez que, realizadas naquelas regiões, preenchem automaticamente os requisitos da legislação harmonizada para o seu registro. A tendência é a transformação dos países mais pobres em estados- mercado, ou seja, apenas a dimensão comercial é objeto de importância internacional. Este estratégico assunto em breve deverá fazer parte da agenda das agências regulatórias desses países e de seus blocos de integração econômica, inclusive do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária brasileiro. Sem dúvida, pode trazer modificações importantes em suas concepções, operacionalidade ou adeqüabilidade.

5.5 Harmonização da regulamentação farmacêutica na América