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Harmonização da regulamentação farmacêutica na América Latina

CAPÍTULO V – NEGOCIAÇÃO INTERNACIONAL DO CONTROLE SANITÁRIO

5.5 Harmonização da regulamentação farmacêutica na América Latina

A Organização Mundial da Saúde (OMS) promove, a cada dois anos, a Conferência Internacional de Autoridades Regulatórias. Nos últimos vinte anos já foram realizados nove encontros, o último deles, na Alemanha, em abril de 1999, reunindo mais de 280 participantes oriundos de 90 países. Nesta reunião foram abordados os seguintes temas: boas práticas de regulação; certificação de produtos objetos de comércio internacional segundo esquema da OMS; medicamentos falsificados; qualidade na regulamentação; zonas de livre comércio; estudos de utilização de medicamentos; esforços regionais sobre a regulação do tabaco; implicações da comunicação eletrônica na regulação; sessões para grupos especiais de pessoas como idosos e crianças; bioequivalência; medicamentos derivados do plasma humano; produtos naturais; e medicamentos essenciais – acesso e regulação.

Seguindo a sistemática da OMS, a Organização Pan-americana da Saúde (OPS) igualmente realiza, desde 1997, a Conferência Pan-americana de Harmonização da Regulamentação Farmacêutica. A primeira Conferência realizou-se em novembro de 1997 e a segunda em novembro de 1999, ambas em Washington (EUA). A organização das Conferências conta com a colaboração das entidades representantes das indústrias: a Federação Latino-americana da Indústria Farmacêutica (FIFARMA), que representa majoritariamente as empresas multinacionais; e a Associação Latino-americana de Indústrias Farmacêuticas (ALIFAR), que representa as indústrias de capital nacional na região. Os representantes da indústria participam também de todos os trabalhos da Conferência.

A I Conferência recomendou aos países latino-americanos a adoção das boas práticas de fabricação; a capacitação de inspetores de forma conjunta para alcançar parâmetros semelhantes; a implementação do reconhecimento mútuo; a exigência de testes de bioequivalência e biodisponibilidade;

mudanças nas condições de venda dos produtos; as boas práticas clínicas; o conceito de países de referência; o fortalecimento das agências reguladoras; processos de harmonização por blocos econômicos; e a aproximação com a Conferência Internacional de Harmonização (ICH).

A II Conferência abordou principalmente os temas dos testes de bioequivalência e biodisponibilidade; as boas práticas clínicas; as boas práticas de fabricação; a falsificação de medicamentos; e a classificação de medicamentos (com e sem prescrição). Também foram abordados os temas da formação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), do processo de harmonização farmacêutica na Europa e informes sobre a nona Conferência Internacional de Autoridades Reguladoras (ICDRA).

Embora sejam chamadas de Conferências Pan-americanas de Harmonização da Regulamentação Farmacêutica, esses eventos não funcionam efetivamente realizando trabalhos de harmonização dos regulamentos. Uma análise da documentação das duas conferências – definidas como esforço de cooperação técnica da OPS aos processos de integração econômica global, regional ou sub- regional, como a ALCA, MERCOSUL, Comunidade Andina de Nações, entre outros – mostra que as conferências caracterizam-se principalmente como encontro de autoridades, no qual são expostas e debatidas suas experiências acerca dos temas da pauta. Não há regimento para orientar o processo de harmonização, tampouco são discutidas especialmente propostas de harmonizações e não há prazos ou compromissos dos países.

Um dos mais importantes resultados da II Conferência foi um levantamento da situação da regulamentação sanitária nos países e blocos da região, que mostrou a diversidade de tratamento em termos de regulamentação farmacêutica.

A Argentina talvez tenha sido o primeiro país a adotar registro diferenciado para os produtos novos já aprovados em outros países que suas autoridades considerem como de “alta vigilância sanitária” (OPS, 2000:87). Nesses casos, a informação exigida a respeito da pesquisa clínica é reduzida a uma síntese. Esse assunto foi comentado no texto anterior, sobre o Mercosul.

O regulamento do Uruguai também estabelece tratamento privilegiado aos produtos novos, mas já registrados nos Estados Unidos ou em países que integram a União Européia (OPS, 2000:91).

No Peru, o registro de medicamentos foi drasticamente modificado para adotar o registro automático, dado em prazo máximo de 7 dias. A autoridade peruana exige apenas que os solicitantes de registro responsabilizem-se pela qualidade, segurança e eficácia e declarem a conformidade com os regulamentos nacionais ou do país de origem do medicamento.

O Equador exige, para os produtos novos importados, a apresentação do Certificado de Produto Farmacêutico, objeto de Comércio Internacional, um programa coordenado pela Organização Mundial da Saúde que cataloga as autoridades nacionais que dele participam, porém requer apenas uma declaração de que o plano de pesquisa clínica tenha sido realizado conforme os cânones institucionais.

Da mesma forma, a Colômbia definiu uma lista de países de referência. Quando o produto cujo registro seja solicitado se encontra registrado em pelo menos dois países de referência, somente será exigido um sumário da informação clínica.149 Apesar de ter criado o Instituto de Vigilância de

149

Da lista em vigor na Colômbia fazem parte os seguintes países: Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Suíça, França, Inglaterra, Dinamarca, Holanda, Suécia, Japão e Noruega.

Medicamentos e Alimentos (INVIMA), em 1994, para reestruturar sua organização regulatória e funcionar como agência independente, a Colômbia regulamentou a terceirização das atividades típicas de fiscalização sanitária, como a inspeção dos fabricantes, por meio da certificação de entidades públicas ou privadas (OPS, 2000:96).

A análise do relatório da II Conferência indica que a Organização Pan-americana da Saúde validou o conceito de país de referência, conclamando os países latino-americanos a harmonizarem a lista de países segundo critérios definidos. Paradoxalmente, o motivo alegado para essa validação era:

... considerando que podría verse disminuida la autonomía de las autoridades regulatórias respecto a su decisión de autorizar la comercialización de los productos.150

Este posicionamento da OPS a respeito de lista de países de referência, manifestado durante a referida Conferência, entra em conflito com entendimento expresso em outro documento, também com a sua chancela, elaborado por especialistas da Região Andina em 1992, em reunião para debater a política de autorização de produtos farmacêuticos.

O texto traz criteriosa discussão acerca da natureza e das funções do registro sanitário de medicamentos, bem como sobre as influências que o registro sofre na conjuntura atual, com a opinião pública sensibilizada pelas políticas de reforma do Estado – desburocratização de processos, não intervenção na economia, eliminação de barreiras ao comércio, agilização e simplificação de controles. Já teriam sido feitas, inclusive, propostas para a eliminação do registro sanitário de medicamentos151

Ao responder uma a uma as críticas feitas à autorização pré-comercialização pelos setores econômicos dos governos e pelos representantes da indústria farmacêutica, os especialistas igualmente rebateram a alegada desnecessidade do registro, tendo em vista sua aprovação nos sistemas regulatórios mais exigentes dos países centrais:

... por razones de soberanía, de especificidades sanitarias (morbilidad, tipo e grado de desarollo de los sistemas de servicios de salud o de seguridad social) y por diferencias sociales, económicas y culturales, es perfectamente legítimo que cada país cuente com su próprio sistema de autorizaciones de pre- comercialización de medicamentos.152

Ressaltando que a disponibilidade de recursos humanos, técnicos e financeiros para os sistemas de regulamentação sanitária e controle de qualidade tem sido, em geral, decrescente ou, na melhor das hipóteses tem permanecido constante apesar do crescimento do mercado, os autores recomendam o estudo cuidadoso da utilização do expediente dos países de referência.

Existem outras questões que justificam atitude mais cautelosa em relação a essa renúncia de prerrogativa das autoridades sanitárias latino-americanas. Se a realização das pesquisas clínicas em cada

150

II Conferencia Panamericana de la Armonización de la Reglamentación Farmacéutica; 2-5 de noviembre de 1999; Washington, DC – Informe Final. p.112.

151

OMS/OPS (1992:7).

152

país onde o medicamento seria registrado não for possível nem razoável, pelo menos toda a informação concernente às pesquisas realizadas nos países centrais deve ser completamente disponibilizada às agências de cada país. Essas informações, além de propiciar valioso material de estudo para os especialistas dos órgãos de regulação sanitária, são imprescindíveis ao acompanhamento da qualidade, segurança e eficácia dos produtos no mercado, diminuindo o hiato de acesso ao conhecimento antes comentado.

Estas experiências dos países latino-americanos, no entanto, merecem mais do que simples descrições, pois podem mudar bastante o panorama das ações de regulação e controle de medicamentos não apenas na região, mas no mundo.

As conferências, aparentemente, não têm aprofundado a reflexão acerca da real necessidade e as conseqüências do uso do conceito de país de referência para o sistema regulatório da América Latina. Contudo, as recomendações dos relatórios validam e, mesmo, estimulam o uso da prática de dispensar as exigências das informações clássicas no tocante à qualidade, segurança e eficácia dos produtos oriundos dos países de referência, por ocasião de seu registro. A única preocupação manifestada sobre o tema no Relatório da II Conferência estava relacionada à falta de critérios para escolher a lista dos países.153

Outro aspecto que deve ser problematizado é a natureza da participação da indústria farmacêutica nas conferências. Sua participação e a parceria de trabalho que estabelece com a OPS são requeridas e bastante bem-vindas em muitas situações. Mas quando se realiza sem distinção de funções e de posições acerca dos temas, deixa de considerar os potenciais conflitos de interesse que existem e coloca em questão a credibilidade e a independência das entidades internacionais, quanto à legitimidade de suas diretrizes, e das entidades públicas, enquanto autoridades regulatórias, as quais, antes de qualquer objetivo paralelo, devem zelar pelas necessidades e segurança sanitária das populações.

Por exemplo, muitos registros, relatos, artigos de orientação (papers) e exposições relacionadas às Conferências são de autoria de representantes das indústrias farmacêuticas. Entretanto, os autores abordam temas – como esse dos países de referência, entre outros – como se estivessem expressando a orientação da própria OPS no tocante aos mesmos.154 A não distinção das atribuições e lugar social de cada agente coloca em questão a credibilidade das propostas e opera no sentido da simplificação da regulação sanitária pelo predomínio da perspectiva comercial. Eliminar barreiras sanitárias ao comércio internacional não gera automaticamente produtos farmacêuticos mais baratos e maior acesso da população aos medicamentos. Por isso, esse trabalho não é prioridade para os organismos da saúde, que enfrentam ainda graves problemas com a segurança, qualidade e eficácia dos produtos, bem como o sério desafio do uso racional dos medicamentos na região.