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CAPÍTULO III – A REFORMA DO ESTADO E A CRIAÇÃO DA AGÊNCIA NACIONAL DE

3.3 Uma análise do processo

A análise desse processo revela algumas características do processo de tomada de decisões no interior do Estado brasileiro. A idéia da criação de uma autarquia especial para a vigilância sanitária federal, surgida ainda no segundo semestre de 1994, permaneceu sendo debatida durante os anos de 1995, 1996 e 1997 e os primeiros meses de 1998. De início, um debate restrito, que obteve poucos avanços

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Publicada no Diário Oficial da União em 27 de janeiro de 1998.

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O Projeto de Lei n°2.022/91, do Deputado Eduardo Jorge (PT/SP). Na verdade, a lei aprovada guarda pouquíssima relação com o teor do PL em tese.

concretos. Ou seja, debate que não saiu da órbita do Ministério da Saúde, não alcançou outros órgãos do Poder Executivo, não incorporou o Poder Legislativo e excluiu os setores sociais, públicos e privados interessados no assunto.

Esse processo terminou em seis meses de forma relativamente súbita, marcado pela determinação de resumir o debate e a participação, em decorrência de uma decisão política de aproveitar o momento favorável e criar rapidamente a Agência. Segundo a terminologia de LINDBLON (1980:8), conformou-se um processo de formulação bastante precário e insuficiente para a plena legitimação de uma decisão que envolvia uma inovação política da importância da criação de uma autarquia para a área de vigilância sanitária. Ao que tudo indica, dois fatores contribuíram para este rápido desfecho: i) a crise da vigilância sanitária, surgida dos escândalos das falsificações e outras falcatruas, que sensibilizou poderosamente a mídia e a opinião pública; e, ii) a força política do Ministro, poderoso aliado e amigo do Presidente da República de um País com regime reforçadamente presidencialista.

Se o primeiro fator influiu decisivamente para que o tema da reestruturação da vigilância sanitária federal entrasse na agenda das decisões políticas, o segundo, sem desconsiderar outras variáveis, foi certamente fundamental para que o processo apresentasse a brevidade que teve, considerando-se a complexidade das negociações que o tema envolvia.

Conforme foi mostrado, a crise da vigilância sanitária era anunciada desde 1993 e emitia suas primeiras evidências – chocantes – ainda em 1997. Porém, a agenda política principal da saúde, sempre saturada de urgências, nunca comportou a inclusão da vigilância sanitária em suas prioridades. Temas como o financiamento do Sistema Único de Saúde, a reorganização do modelo assistencial e as reiteradas denúncias de falta de atendimento, as novas e velhas epidemias, entre outros assuntos, não deixavam espaço para problemas potenciais. Entretanto, esses aspectos não elucidam completamente a questão do agendamento, sobrando amplo espaço para outras hipóteses, inclusive o fato de que, mesmo nos regimes mais democráticos, os espaço das decisões individuais é concreto. Assim, a inclusão do tema na agenda política principal pode depender mais de um ato de escolha e de vontade dos dirigentes do que da racionalidade de análises ou da formalidade dos processos políticos decisórios.

Estudando o processo de decisão política no ambiente democrático, LINDBLON (1980) apontou que, independentemente do ambiente mais democrático ou mais autoritário, as dessemelhanças nos resultados das decisões seriam pequenas. As diferenças nos sistemas decisórios não levariam a grandes diferenças nos resultados e isso teria surpreendido os cientistas políticos. Citou, como exemplos, estudos acerca das políticas sociais dos estados europeus ocidentais, todas parecidas, embora tivessem sido planejadas e decididas em ambientes políticos desiguais. Relacionou também os estudos comparados das diferenças entre o processo de decisão política nos estados da federação norte-americana – graus de competição entre partidos, sistema de representação, poder do governador e comportamento eleitoral – e as pequenas diferenças existentes nos programas educacionais, nos de assistência social e nos de transportes. A conclusão foi de que, aparentemente, as diferenças no processo decisório seriam menos importantes em termos de resultados do que se pensava. Os fatores socioeconômicos, como a riqueza e o grau de industrialização do estado, pareciam ser mais essenciais.

Assim, reformas do mecanismo decisório poderiam não ter grandes resultados em termos da melhoria dos produtos. Para LINDBLON (1980:12), as ambições das elites dominantes e as das massas –

ordem e império da lei, produção agrícola e industrial, mobilidade e comunicação, entre outras coisas – explicariam melhor porque os governos adotam determinadas políticas e almejam certos resultados. O processo decisório seria mais útil para explicar, em parte, como os governos buscam atingir seus vários objetivos, mas não porque os escolhem. No caso da ANVISA, o agendamento e a decisão a respeito de sua criação teriam obedecido ao critério político de dar alguma resposta à crise que se estabeleceu na área do controle farmacêutico com os escândalos de 1997, pelo menos, como fator desencadeante.

Essa polêmica posição relativa ao processo de decisão política é útil também para problematizar a questão do objetivo da decisão tomada. No caso da decisão que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o objetivo transcendia o da criação de um órgão forte, ágil e independente no nível federal. A própria Lei n° 9.782/99 traz, em sua ementa, a decisão de criar o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, algo bastante mais complexo do que a Agência em si, pois um sistema é composto de partes articuladas e razoavelmente adequadas entre si, que buscam um objetivo igualmente harmonizado de maneira razoável. Principalmente quando estas partes não são mecânicas, estes requisitos de identidade e articulação são fundamentais para a compreensão e funcionamento do sistema.

Minha análise é que, se o tipo ou a qualidade do processo de decisão política não é tão importante para o resultado final, certamente o é para buscar articulação e harmonização entre as partes do sistema e, nesse caso, o processo é tão importante quanto o resultado. Sendo agentes políticos, as partes precisam de diálogo e de experimentos para nivelar entendimentos e amadurecer pensamentos e atitudes, de modo a estarem mais bem preparados para fazer parte do sistema.

Como COSTA (1999:376) havia apontado, a Lei n° 9.782/99 pretendeu dispor a respeito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, mas mostrou um vazio frustrante quanto a sua configuração, princípios e diretrizes. Limitou-se a remeter aos dispositivos da Lei n° 8.080/90, que abordam as distribuições de competências entre os três níveis de governo. A Lei Orgânica da Saúde tem caráter de generalidade, e a interpretação que é utilizada para pensar os serviços de assistência à saúde nem sempre se encaixa quando o objeto é a vigilância sanitária, a qual, insisto, tem natureza e singularidades que a diferenciam da área da assistência, demandando debate próprio voltado a sua inserção no SUS, em especial, acerca da descentralização.

O próprio LINDBLON (1980:13) destacou a relevância de duas questões relacionadas com o processo de decisão política: i) como tornar as políticas mais eficientes nas soluções dos problemas sociais; e, ii) como tornar o processo decisório sensível ao controle social. Enquanto a primeira questão demanda análise científica e profissional, ou seja, pede informações técnicas mais amplas e análise mais racional, o segundo exige que a decisão se mantenha sempre como processo político. Uma tensão natural estaria continuamente presente no interior desse processo, pois, ainda que complementares, a análise e a política teriam dimensões excludentes: aumentar o nível da razão e da análise no processo implica em abandonar alguns aspectos da democracia.

O processo de decisão da criação da Agência e do Sistema63 parece ter sido pobre nos dois componentes. Isso porque unicamente um processo político pode resolver as diferenças de concepção e de opinião. As soluções dos problemas da vigilância sanitária exigem a harmonização de interesses e de

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Entenda-se o conceito de decisão de forma ampla, englobando todo o processo de agendamento, de discussão e de formulação da proposta.

valores entre as partes, os grupos e seus interesses. Tais agentes compõem não apenas o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, mas também a sociedade. Pelo menos uma chance para que isso acontecesse na área da vigilância sanitária foi perdida. Esse é o lado pobre da dimensão política do processo de debate e criação da Agência.

De outro lado, os problemas sociais que atualmente ameaçam a organização social – deterioração ambiental, escalada da violência e crime organizado, por exemplo – intensificaram a exigência de políticas fundamentadas em análise técnica e científica mais cuidadosa.

A área da vigilância sanitária está a merecer uma análise deste tipo, pois suas carências ameaçam não somente a saúde, mas têm implicações em todos campos da vida social, desde a ética à economia. A falta de técnicos estudiosos e conhecedores da realidade da vigilância sanitária no processo de decisão da Agência mostra pobreza na dimensão analítica reivindicada por Lindblon.

Em favor da decisão tomada, deve-se entender que o processo analítico exige tempo e recursos, além de não se poder esperar que todos os fatos relevantes sejam perfeitamente conhecidos para efetuar uma decisão política, ainda mais em ambiente de crise. Uma análise da vigilância sanitária, com o pouco acúmulo de informações hoje existentes, poderia levar meses e, até, anos, enquanto que suas conclusões poderiam não ser tão importantes para a decisão. Entretanto, o processo consumiu anos – de 1994 a 1998 – e, mesmo assim, não produziu elementos analíticos significativos para o suporte da decisão.

Nos países mais pobres, em especial, que não têm estrutura de produção de conhecimento, ao mesmo tempo, ampla e especializada, as decisões políticas são tomadas, com mais freqüência, sem o suporte das informações técnicas. Mas nem por isso são obrigatoriamente menos demoradas ou menos onerosas.

O processo de decisão política não avança de forma ordenada, racional; com princípio meio e fim. Antes, caracteriza-se como algo complexo, com limites pouco definidos e desfecho incerto. Às vezes, o final é algo estranho à expectativa de todos os agentes participantes (LINDBLON, 1980:10). Mas, o grau de incerteza é diretamente proporcional à diversidade e riqueza da dimensão política.

A criação da Agência não foi o caso de resultado inesperado pelos participantes de sua discussão. O processo político mostrou-se razoavelmente fechado para que algo parecido pudesse acontecer. Entretanto, se o processo mais fechado é teoricamente mais fácil e rápido, pode ter custo social alto. É menos consensual e, em tese, menos preparado estrategicamente para ser bem sucedido. Assim, deixou algumas seqüelas, para o sistema pretendido, que exigirão energia para o seu tratamento. As análises futuras da ação da Agência revelarão a magnitude de seu custo.

O processo de decisão que criou a ANVISA não fez diagnóstico do arranjo existente de regulamentação e controle do risco na área da saúde. A criação da Agência foi feita de forma dissociada de uma análise do sistema que ela mesma iria coordenar. A seguir, será visto como estava estruturado o arranjo nacional na área de vigilância sanitária no final da década de 90.