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2.3. Conceitos-chaves

2.3.2 Confinamento – Instituição Total?

Como indicado, instituição total “é o termo concebido pelo sociólogo americano Erving Goffman para descrever todas as formas de instituições nas quais a autoridade procura uma ‘total’ regulamentação da vida diária de seus habitantes” (IGNATIEFF, 1987, p. 185). Na opinião de Ignatieff, Goffman (1974) empregou o termo indiscriminadamente para instituições diferentes, com objetivos e populações diferentes, por acreditar que todas elas oprimiam com as mesmas rotinas institucionais, com os mesmos rituais de mortificação e despersonalização, independentemente de seus objetivos. O termo era usado não somente para asilos, mas também para mosteiros, conventos, prisões, reformatórios, escolas e comunidades habitacionais rurais de empregados etc. Por conta disso, era criticado, pois muitos achavam difícil ver semelhanças, por exemplo, entre um campo de concentração, um navio mercante e um acampamento para desmatamento. Na prática o conceito de “instituição total” se restringiu às instituições do Estado (que são o asilo, a prisão, o reformatório, a casa de trabalho) em função de seu atendimento estar

38 voltado para a mesma população (que são os pobres, os desprotegidos e os estigmatizados) e para as funções análogas (que tem a prisão, a detenção e a reabilitação).

Segundo Ignatieff, o trabalho de Goffman teve impacto sobre os britânicos e os norte- americanos, mas para os franceses o trabalho passou despercebido ou não foi reconhecido. Na Europa, os trabalhos de Foucault inspiraram a maioria dos trabalhos europeus sobre instituição total (embora esse termo tenha sido raramente evocado). Para ele, o trabalho de Michel Foucault História da loucura na idade clássica, publicado em 1961, acerca do confinamento europeu da insanidade, e em seu Vigiar e punir, sobre o nascimento das prisões principalmente na França entre 1750 e 1850, exerceu uma provocação produtiva entre os historiadores. A prova disso está posta em questionamentos, críticas ao seu método e provocações, que foram organizadas por Michelle Perrot na coletânea L’impossible Prison. Assim, “como consequência do trabalho de Goffman na América do Norte e do trabalho de Foucault na Europa, uma nova história social da instituição total começou a ser escrita” (IGNATIEFF, 1987, p. 186).

Numa nova história social, que perspectivas teriam a instituição total? Seriam aquelas sobre suas instalações arquitetônicas, sobre as relações entre opressor e oprimido, sobre a atuação dos administradores? Enfim, a nova história das instituições deixou tudo isso para trás. Desde Foucault, tem-se escrito sobre a luta dos confinados contra seus sofrimentos e sobre as novas classes profissionais (médicos e governantes) que ligam sua ascensão às novas instituições. Esta nova história tenta considerar as instituições como um sistema social de dominação e resistência, a partir de troca e comunicação. Foucault irá rever a abordagem que o aproximou da noção de “instituição total” (FOUCAULT, 2008, apud COSTA, 2011).4 Esta nova abordagem destaca que o toque de recolher dos prisioneiros, as redes de entrada clandestina de mercadorias e as alterações em seu comportamento sexual se faz com muitos governos, o dos indivíduos, o das famílias, o das comunidades.

Ignatieff, diante dessa nova história social, pergunta: “É uma história de quê exatamente?” (IGNATIEFF, 1987, p. 187). De que maneira esta nova história pode abordar as relações entre dominador e dominado, com base nas relações de troca e comunicação? A resposta a esta questão

4 FOUCAULT, M., 2008. Ver p. 2-3.

39 nos é dada: “O tema verdadeiro da história das instituições não é, [eu argumentaria], o que acontece dentro das paredes, mas a relação histórica entre o dentro e o fora” (ibid). Para o autor, as entidades prisões, asilos, reformatórios etc, por si só, são de interesse somente de estudos da antiguidade. Elas somente se tornam objetos históricos significantes quando apresentam os limites que governam o exercício do poder na sociedade como um todo.

Os trabalhos de Foucault irritavam os historiadores, num tempo em que ele ousava tratar as prisões e os asilos não por eles mesmos, mas como locais para o estudo da relação poder/conhecimento [...]. Desde Foucault, a maioria dos trabalhos sobre a história da instituição total se abrigou num tímido empirismo. (ibid).

Mas, pouco antes de sua morte, em suas aulas finais, ele faz uma ampla revisão dessas ideias.

Nas palavras de Ignatieff “a questão essencial sobre a instituição total é qual o papel que ela representa na reprodução da ordem social no mundo além de suas paredes” (ibid, p. 188). Para ele, o que importa não é o que acontece dentro das instituições. “As ‘instituições totais’ produzem seus efeitos na sociedade através do peso mítico e simbólico de suas paredes no mundo exterior, através de caminhos, noutras palavras, nos quais o povo fantasia, sonha e teme o arquipélago do confinamento” (ibid, p. 188).

Ignatieff salienta a necessidade de relatos sobre como os trabalhadores de fora daquelas paredes simbolizam o mundo de dentro delas e destaca a importância de se desvendar, por exemplo: Para quem o confinamento representava uma desgraça? Para quem representava um destino a ser suportado? Para quem ele seria um terrível lugar de sofrimento? Para quem o confinamento seria simplesmente um dos movimentos constantes da vida? No modo de pensar de Ignatieff, uma questão se impõe: Se os historiadores indagassem sobre prisões e asilos, poderíamos não somente entender como as instituições conseguem seus efeitos no domínio simbólico e imaginário, mas também poderíamos aprender como as demarcações entre a classe trabalhadora “rude” e “respeitável” e a “classe perigosa” foram constituídas na consciência. Ignatieff fala com base no fato de que houve distinções nas quais os efeitos rotulados do poder de Estado tiveram importante influência.

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Esta abordagem implica que o melhor ponto para consideração dessa instituição total é a partir do exterior, do mundo das classes trabalhadoras que suportaram a violência das prisões do século XIX. [...] É notório como as tornamos passivas quando pensamos sobre sua relação com a prisão, o asilo e a casa de trabalho. [...]. Atrás dessa suposição de passividade e tolerância, existe outra – que o Estado é a agência central na reprodução da ordem. As classes trabalhadoras são ordenadas: o Estado faz o ordenamento [...]. É esta ideia de monopólio – sobre punição, repressão e reprodução da ordem social – que os historiadores da ‘instituição total’ devem começar a questionar (p. 188).

Ignatieff nos convida a entender, antes, a família, a rua, o bar, a fábrica, o clube e até mesmo o grupo de criminosos como lugares de regras, implícitas, voltadas para a reprodução de ordem moral mesmo que esta regra signifique apenas “honra entre ladrões”.

Em outras palavras, Ignatieff nos sensibiliza para a focalização do volume de informações que há, não dentro das instituições ditas totais, mas fora delas e numa relação entre seu interior e seu exterior no que diz respeito à historicidade em relação a elas. De acordo com o autor, devemos observar que a institucionalização crescente da velhice e morte foi um processo no qual o Estado, classes dominantes e classes dominadas, participaram. Ele cita, por exemplo, os asilos para idosos e os manicômios nos quais o processo pelo qual as pessoas são primeiramente definidas, estigmatizadas e marginalizadas sempre deve começar ou no lar, ou no trabalho, e desde que a grande maioria de lunáticos era pobre, deve-se começar com a família da classe trabalhadora. A própria construção de asilos faz com que a oferta crie sua própria demanda. Isto não significa que a insanidade estivesse aumentando, mas as novas instituições surgem e tornam possível a criação da categoria em uma subclasse institucionalizável.

Lembrando que as sociabilidades estão presentes no caso da segregação social dos hansenianos, as análises da vida nesses antigos “leprosários”, com frequência, são subjacentes à noção de “instituição total” de Goffman (1974), tão criticada por M. Ignatieff (1987). Ignatieff desmonta a ideia de que o Estado cria essa instituição e também aponta o fato de que não há isolamento, pois estamos sempre nos relacionando. Erving Goffman entendeu as colônias como “instituições totais”, admitindo o seu isolamento com o mundo exterior. Em geral, registros de experiências – como os de pacientes submetidos ao isolamento compulsório, são enunciados nessa perspectiva como em Mancuso (MANCUSO, 1996, p. 35):

41 A colônia era um lugar organizado: o espaço e os horários disciplinados, as relações normatizadas, até mesmo (ou principalmente) as mais íntimas como as de namoro. A desobediência às normas era punida, ou pela suspensão de algum direito (o de lazer, por exemplo) ou pela própria prisão, castigando os que saíssem da colônia, indicava que a colônia, ela própria, era prisão.

Esta ideia de colônia, construída como uma instituição com regras rígidas “de dentro” e de incomunicabilidade para com o mundo “de fora”, representa bem o modelo de instituição total postulado por Goffman e examinado por Ignatieff. Este debate tem guardado de muitos modos, similitudes com o de outras instituições, como os guetos que, em geral, são vistos como lugares de segregação, de privação de liberdade, sem espaço para a vida social. Essas percepções em análises de prisões, de sanatórios, e mesmo, em algumas produções, de mocambos, favelas, bairros periféricos etc. alteraram-se, sobretudo com os estudos contemporâneos sobre o Holocausto.

De fato, a vida em colônia sob a noção de instituição total reforçaria a integração do espaço institucional com o isolamento em relação ao exterior, daí a distinguir-se “nesse momento inaugural os quatro elementos constitutivos do gueto, isto é, o estigma, a coerção, o confinamento espacial e o encapsulamento [encasement] institucional” (WACQUANT, 2008, p. 79). Já a experiência do gueto judeu, hoje bastante documentada e estudada, revelou-se um espaço de muitas variações culturais e formas de vida social; não se trata, pois, de uma “instituição total”, porque também é local de resistências. Com múltiplas identidades se organizaram as manifestações de insubordinação exercidas de diversas formas, tantas imperceptíveis. Há de se entender que os diferentes modos de segregação produzem diferentes modos de vida social, muitos deslocamentos identitários e modos de enfrentamento de condições extremas de privação. Isso nos leva a rever as observações de Saraceno (1999), quando afirma: assim como não é possível falar de cultura hebraica, sem levar em conta os campos de concentração, não se pode pensar na reabilitação em psiquiatria sem levar em conta o Hospital Psiquiátrico. É possível falar do estigma e da segregação social dos portadores de hanseníase, ao se falar da colônia, mas ao se falar sobre esse viver em colônias há de se levar em conta suas singularidades, e estas vão além dos seus muros. Nas colônias – como no gueto judeu – o

42 estigma, a coerção, o confinamento e o encapsulamento institucional podem também, por meio das redes sociais de cuidados, produzir a integração do interior institucional em relação ao exterior. Este milieu tem suas formas de viver a vida social e de se negar como “instituição total”, considerando as sociabilidades e as redes sociais, sobretudo na esfera dos cuidados, que nele se desenvolvem.