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SOCIABILIDADES, POLÍTICA DE CUIDADOS E REVISÕES DA “INSTITUIÇÃO TOTAL”

“Muitas moças e muitos rapazes filhos de hansenianos namoravam e casavam com pessoas de fora. Eu tenho até em minha família um exemplo desse tipo de coisa” (Thales, 70 anos).

Iniciamos este capítulo narrando nossa surpresa ao descobrir que a Colônia apresenta-se como lugar de comunicabilidade, contrariando o que comumente se afirma em textos relativos ao isolamento compulsório. Ainda que preparados para cumprir um “roteiro previamente programado” que nos levaria a essa mesma percepção e à confirmação das pesquisas anteriores, qual não foi nossa surpresa ao nos depararmos com uma outra experiência, impulsionando, com isso, nossos novos rumos de pesquisa. Enquanto pensávamos no porquê de determinadas escolhas para a orientação de tais estudos, geralmente repetitivas no sentido de sempre vitimizarem o doente, descobrimos, a partir de seguidas narrativas, que não existe a inexorável separação entre pessoas isoladas na Colônia e as de fora dela. Diante dessa quebra de paradigma, o que mais nos impactou foi a força com que fugas, mesmo as seguidas de retornos, e “pequenas transgressões” de internos/as, revelavam um oculto processo de formação de redes sociais diversas.

Naquela época, anos 1940, transporte algum parava na Colônia. Então, para visitar seus familiares distantes, os internos caminhavam da Colônia ao centro comercial da cidade, onde faziam compras e, em seguida, viajavam. No retorno, eles “descansavam” por um ou dois dias na prisão da Colônia. Parece-nos que a transgressão compensava, haja vista que, nas fichas de ocorrências anexadas aos Prontuários Médicos de cada interno, são diversos os registros de fuga, “delito” cometido tanto pelos homens quanto pelas mulheres. Nessas fichas, constam datas de saídas e de retornos, porém, não se tem nenhum registro de como o interno utilizou seu tempo em liberdade e nem de seu itinerário.

Com base em muitas ocorrências, verificamos que o isolamento compulsório, esse regido por lei, que parecia ser formalmente cumprido, não conseguia impedir a comunicação entre internados e não internados. Nessa dinâmica de convivência, provavelmente exercitada nesses períodos de fugas, eram forjadas condições de criação de redes sociais e, com elas, arrefecimento do medo de contágio da doença. Outro fator que contribuiu para essa experiência foi a invasão de pessoas sadias em busca de proteção primária e secundária, ou seja, de cuidados oferecidos pela

120 Colônia. Essas pessoas não tinham repulsa pelos doentes e, além disso, muitos deles eram apenas moradores pobres. Numa tentativa de sair daquela situação, vislumbravam o alcance daquilo que a Colônia tinha de melhor: um lugar seguro e acolhedor, ideal para sobreviver e, possivelmente, recomeçar. Entretanto, outros a invadiam com o único objetivo de lucrar, de alguma forma, com negócios em torno da ocupação de imóveis lá dentro. Quando o Estado permitiu que pessoas com hanseníase residissem no local, algumas delas, por falta de fiscalização, venderam irregularmente “suas casas” para pessoas sadias, que, até hoje, moram lá, como se fosse uma espécie de condomínio popular. Além desse benefício das vendas irregulares das casas, os invasores, sem contrato de internação, também até hoje, obtêm lucros indiretos, pois são isentos de taxas (água, luz) e impostos, bem como usufruem alimentação gratuita no restaurante da Colônia. Tal situação fica evidente no depoimento de uma entrevistada: “um homem comprou uma casa lá e, ao faltar luz e água, cobrou da Diretora, como se ela fosse uma síndica, que lhe respondeu que ele nem deveria estar morando ali”. Apesar dessas invasões, o contingente maior da Colônia sempre foi o de familiares e de novos parentes, que chegavam através de relações matrimoniais entre doentes e sadios.

Assim, constatamos, de modo surpreendente, que as pessoas doentes isoladas transacionavam e se comunicavam, não somente entre si, os iguais, como também com os diferentes, os sadios, que vieram de fora da instituição. Isso nos permitiu observar que as relações sociais vividas na Colônia são articuladas não somente pela perspectiva de coerção, mas também pela de resistência a ela e que essas relações podem surgir a partir de um simples aperto de mão. Essa investigação, em conjunto, moveu-se no sentido de superar a ideia da inexorável normatização da vida social atribuída às políticas isolacionistas, a fim de contribuir com estudos sobre formas de resistência ao isolamento e mudanças de regras de convivência. Apoia-se, dessa forma, essa assertiva em condutas que efetivam essas formas de resistência.

3. 1. Sociabilidades: um simples aperto de mãos

Um grupo de pacientes da Colônia veio até a sede, para uma festa de despedida para nós dois. [...] Seu apreço veio do fato de que nós não usamos sobretudos ou luvas, de que apertamos suas mãos [...], sentamos ao seu lado, conversamos sobre assuntos variados e jogamos futebol com eles. [...] O benefício psicológico de essas pobres pessoas [...] serem vistas como seres humanos normais é incalculável, e o risco de ser contaminado, incrivelmente remoto (Che Guevara, 1952).

121 Observaram-se relações sociais na Colônia, como essas descritas por Guevara e por Mendonça e Figueiredo (2009, p. 5), abaixo assinaladas:

As colônias eram, deve-se lembrar, um espaço de experiência: um lugar em que pessoas viviam, faziam amizades, freqüentavam bares, praticavam esportes, namoravam, assistiam a filmes, cantavam, casavam. A sociedade e a vida que lhes fora retirada por meio da reclusão era, de algum modo, como que reconstituída nas instituições asilares. Nessas micro-cidades, com direito a prefeitura, bailes de carnaval, concursos de beleza, poetas e grupos de teatro, edificava-se uma nova vida em sociedade.

De fato, as entrevistas revelaram que atividades como “[...] festas, bailes, lazer nas cachoeiras e sessões de filmes” compunham uma vasta rede de relações sociais em atividades usuais na Colônia. No esporte, os internos encontravam um modo privilegiado de socialização, que permitia até viagens a outras colônias por ocasião de campeonatos e jogos amistosos. O futebol ocupava um lugar privilegiado na vida social das colônias.

Se muitos prazeres e atividades lhes eram negados, os pacientes encontravam táticas para burlar as proibições e a vigilância. Namoros às escondidas eram frequentes, e a obtenção de bebidas alcoólicas revela a existência de contatos com o mundo exterior; contatos esses que as administrações das colônias buscavam impossibilitar. Até mesmo moedas de circulação interna eram criadas de modo a evitar não apenas uma suposta contaminação do dinheiro dos “sadios”, mas também as fugas de pacientes. Estes, no entanto, tinham suas artimanhas para obter o dinheiro oficial. Muitos internos simulavam compras no mundo externo, para que os dirigentes passassem os recursos deles para os supostos vendedores, que, por sua vez, entregar-lhes-iam o capital mediante a cobrança de uma comissão. Movidos por vontades e escolhas próprias, esses pacientes souberam, enfim, recriar modos de vida a partir de situações adversas. (MENDONÇA e FIGUEIREDO, 2009, p. 5).

Quando começamos a frequentar sistematicamente o ambiente da Colônia para cumprimentar os internos, preferíamos abraçá-los a apertar-lhes as mãos. Fazíamos isso não só por medo de machucar seus dedos caídos ou com pedaços, cujos curativos minavam secreção, mas também por entender que o contágio, além de ser como o da tuberculose pelas gotículas que saem por meio da fala e respiração, se dá, também, através do toque da lesão da pele do doente com a pele de outra pessoa com algum ferimento. Às vezes, dependendo da empolgação, apertávamos as mãos dos internos e, outras vezes, em função do mistério que ainda envolve questões não esclarecidas pela ciência em relação ao contágio da hanseníase, evitávamos essa

122 conduta. Um dia, numa reunião em nossa casa, uma amiga hanseniana, com dedos intactos, confidenciou que seu marido, com feridas nos dedos, se ressentia de nosso constrangimento em cumprimentá-lo com aperto de mãos. Esclarecemos que isso se devia ao receio de magoar seus ferimentos já tão prejudicados. Contudo, deste dia em diante, sem olhar ferimentos, passamos a apertar as mãos de todas as pessoas internadas, considerando apenas a importância desse gesto simbólico de cordialidade.

3. 2. Redes sociais de cuidados

No caso do isolamento dos hansenianos, alguns estudos mais recentes sobre cuidados trouxeram-nos novas perspectivas acerca das sociabilidades e redes. Identificamos novas formas de sociabilidades (CAVEDON, 2007; COSTA, 2007; DOIN, 2007; MORIGI e PAVAN, 2004; TEIXEIRA, 2008; TRUZZI, 2008) e os modos de vida no interior da Colônia ganharam novos significados, com destaque para indícios relativos às sociabilidades nos processos de ajuda, em experiências de indivíduos unidos por laços de parentesco ou afins. Ao contarem com apoio mútuo, expressaram relações sociais de muitos elos e significados novos, imersas em referências culturais diversas. Roberto Da Matta lembra que, na América do Norte, a existência social é praticamente impossível sem a conta bancária, o cartão de crédito e o social security number; enquanto, no Brasil, há milhões de pessoas que vivem sem nada disso. A diferença é que lá as pessoas têm condições de dispensar muitos laços sociais instrumentais de cuidados, já entre nós, “ninguém existe de modo social pleno sem ter uma família e uma rede de laços pessoais imperativos e instrumentais” (DA MATTA, 1987, p.101).

O conceito de rede, inaugurado pela sociologia e pela antropologia social, teve um uso metafórico, deixando de associar as relações e o comportamento dos indivíduos que as constituem. Em As estruturas elementares do parentesco, de Claude Lévi-Strauss, o autor discute a noção de rede quando admite que uma relação “[...] não pode ser isolada arbitrariamente de todas as outras, e também não é possível que o indivíduo se mantenha aquém ou além do mundo das relações [...]. O meio é inseparável das coisas que nele habitam” (1982, p. 523). Também Bourdieu (1980), ao examinar estratégias de investimento nas relações passíveis de serem utilizadas como fonte de benefícios em seus estudos sobre capital social, indica que este depende tanto da amplitude da rede de ligações entre indivíduos quanto a dispor e a disponibilizar certa

123 quantidade de capital (econômico, cultural ou simbólico) de cada um. 52 Elias (1994), por sua vez, destaca não o caráter indissociável da noção de rede, mas sua reciprocidade. Para ele “[...] a rede só é compreensível em termos da maneira como eles [os fios] se ligam, de sua relação recíproca” (1994, p. 35). Já para Silvia Portugal (2007), o termo designa grande variedade de objetos e fenômenos:

[...] a construção de um sentido analítico para o conceito de rede social desenvolveu-se em torno de duas correntes: uma, que emerge da Antropologia Social britânica do pós II Guerra Mundial, e se preocupa fundamentalmente com uma análise situacional de grupos restritos; outra, sobretudo a americana, que se prende ao desenvolvimento da análise qualitativa, no quadro de uma abordagem estrutural (ibid, p. 3-4).

Com Elizabeth Bott, os estudos sobre famílias passam a incorporar a noção de rede ao levarem em conta seu contexto social. 53 Essa noção diz respeito a pessoas conectadas em diferentes pontos de um sistema social, como canalículos. Difere, nesse aspecto, da ideia usual de grupo, vista como reunião de indivíduos organizados em torno de uma causa comum, partilhando de uma cultura específica, formada pelo paradigma da totalidade. 54 Assim, rede seria um conjunto de relações, nas quais um indivíduo pode ocupar várias posições: “A rede é definida como todas ou algumas unidades sociais (indivíduos ou grupos) com os quais um indivíduo particular ou um grupo está em contato” (BOTT, 1976, p. 299). A autora destaca, ainda, a relação conjugal, concluindo que quanto menor for a conexão da rede, menor será o grau de segregação entre os papéis do casal, pois contando menos com uma rede, tende-se a compartilhar decisões e tarefas domésticas. Seu argumento baseia-se no fato de que a dinâmica da estrutura familiar depende não apenas do comportamento dos seus membros, mas também das relações que estes estabelecem com outros. A estrutura da rede de parentes, amigos, vizinhos e colegas tem uma

52Bourdieu conceitua capital social como “o conjunto de recursos, efectivos ou potenciais, relacionados com a posse

de uma ‘rede durável de relações’, mais ou menos institucionalizadas, de interconhecimento e de reconhecimento” (BOURDIEU, 1980, p.2).

53 Sua ideia de rede social permitiu compreender como a família articula-se com outros grupos e instituições por

meio da rede de relações pessoais que unem seus membros, ao dialogar com a sociologia da família: “O meio social imediato das famílias urbanas é melhor compreendido, não como a área local em que vive a família, mas sim, como a rede das relações sociais reais que elas mantêm [...]” (BOTT, 1976, p.111).

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Nessa perspectiva, rede difere de grupo, pois a noção de grupo implica totalidade, e a rede se constrói não a partir da totalidade, mas dos agentes, de unidades. A autora destaca, ainda, que as pessoas se relacionam em contextos e intensidades diferentes, mesmo que estes relacionamentos sejam com as mesmas pessoas a partir de questões similares.

124 influência direta na definição das relações familiares, bem como as relações mais afastadas que também a compõem.

Com base em regras sociais fixadas em nome do direito de proteção dos cidadãos de doentes contagiantes, o hanseniano, afastado da convivência social, recompõe sua vida gregária; ela se faz no intercâmbio interno e naquele entre o interior e o exterior da Colônia. Assim, os internos criaram modos de vida em comum e promoveram cuidados através de redes sociais. Ronaldo, nascido em 1932, internou-se em 1943 e informa-nos não ter apresentado, até então, “nada de manchas, nada de deformidade”. Ficou internado até 1948, quando assinala: “[...] eu, oh! [sinal de estalar os dedos] saí fugido. Trabalhei por três anos e nove meses ‘lá fora’, voltei em 1951 e fiquei até agora; saindo, mas morando aqui na Colônia; não senti mudança da época do isolamento para depois, não”. As marcas em seu corpo somente se manifestaram em 1951. Por este motivo, retornou de sua experiência no meio social mais amplo. Durante a entrevista, ele nos fornece uma importante informação: “não senti mudança da época do isolamento para não isolamento”. Na verdade, ele sentiu mudança do período com e sem marcas denunciadoras da doença. Ronaldo contou-nos que, certa vez, ao ir no Ministério da Saúde, um médico o convidou para trabalhar no Posto de Saúde de Nova Iguaçu. Diante de sua recusa, o médico lhe disse: “Vocês não querem nada, são preguiçosos; se chama para trabalhar, não aceitam”. Ronaldo disse que, dessa vez, só não saiu da Colônia para morar fora porque ele tinha uma família e não poderia deixar sua mãe – com as mãos atrofiadas e sem as pernas – e sua esposa sozinhas na Colônia e ir para Nova Iguaçu, onde o alojamento era inadequado para elas. Em outro momento, ele foi fazer um treinamento em Niterói, por convite de um padre americano, que arrumou três vagas no Citibank para internos da Colônia. O padre havia dito que o emprego estava garantido e que, assim, estaria contribuindo para integrar os doentes à sociedade. Além disso, afirmou que o fato de ele ser doente não o impediria de ser transferido para os Estados Unidos, com tudo pago pelo banco. Pelos mesmos motivos anteriores, Ronaldo recusou, lembrando novamente de sua família. “Minha esposa tem muitas sequelas. Como eu vou para um país sem falar a língua e quem vai cuidar dela?”

Essa proposta de trabalho no exterior nos remete ao “dever de memória”, no caso, política indenizatória por danos causados pela discriminação (HEYMANN, 2007, apud COSTA e CAVALIERE, 2010). Devoir de mémoire ou dever de memória é:

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uma categoria recente, datada no caso francês de 1999, que tanto agrega o pensamento político sobre direitos humanos, como as reivindicações comunitárias, sobretudo, as decorrentes de tensões interétnicas, posta por deslocamentos das antigas colônias europeias para os centros metropolitanos, em seguidas correntes migratórias e que vivenciam discriminações de todo o tipo quanto a acessos à cidadania (COSTA & CAVALIERE, 2010).

Nesse sentido, a França, reconhece o direito e estabelece política indenizatória. Essa tendência também aparece no Brasil com o reconhecimento de direitos dos negros, no caso de cotas nas universidades - em parte, concedidos, numa política imposta pelo dever de memória; e também de proposta de remuneração, sob forma de aposentadoria, para as donas de casa, ainda não efetivada.

Cabe aqui destacar que esse dever está oculto nas relações profissionais, ainda que impulsione a formação de redes e ensejem benefícios sob a forma de iniciativa humanitária. No caso de Ronaldo, o ganho de oportunidades de trabalho foi avaliado pelas perdas de cuidados impostos pelas condições de dependência de sua família. Sua decisão em permanecer com a família expõe o que parece definir um dever filial e familiar; seu cunho indenizatório está em devolver à mãe e à família algo que também recebeu: cuidados. Isso marcaria sua vida, mas suas obrigações de cuidados o levariam para um outro rumo.

3. 3. Redes sociais, maternidade transferida, cuidados privados e públicos: o preventório (Educandário de Vista Alegre – EVA)

Redes sociais presentes em tantas práticas sociais, por serem, geralmente, tão “naturais”, permanecem invisíveis. Nesse sentido, a partir de uma aproximação dos estudos de gênero, pudemos dar novos sentidos à presença de mulheres na organização de redes de proteção social primária na Colônia em práticas costumeiras de cuidados (COSTA, 1995, 2002, 2009; FREIRE, 2006; PINTO, 2007). Atender, socorrer e amparar foram ações da vida em comum dos moradores na Colônia, hoje HETM. Mesmo quando em níveis sociais distintos, a maternidade transferida de uma mulher para outra e, também para homens, é uma evidência comum a essa experiência.

Ressalte-se que, após o tratamento e obtida alta médica por cura, muitos homens e mulheres ex-internos permaneceram na antiga Colônia e restauraram modos de morar e de ajuda mútua em família. Anália, internada em 1945, é uma delas:

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Temos três casas neste quintal. Cada filha tem a sua, meu filho mora em Alcântara. Ele cuida de mim, faz minha compra no carro dele e toma conta de meu pagamento. Recebo três pagamentos: um é próprio de minha folha de albergado, recebo também do INPS que era do meu marido e tenho o dinheiro do Lula [pensão indenizatória pelo isolamento compulsório]. Dá para ajudar cada filha com seus maridos, seus filhos) (Anália,70 anos).

Nessas relações, destacam-se, com frequência, obrigações “naturais” da maternidade, como os cuidados com os filhos e desses para com seus pais e de jovens para com os idosos, em representações de que trata Elisabeth Badinter (1985), ao indicar que o amor materno é algo adquirido, sendo, pois, um grande mito a crença de que esse é um sentimento inerente à condição de mulher. Citando A.M. Dardigna, ela observou que, “quando se aborda o tema da maternidade, realiza-se uma passagem imediata da função biológica da procriação para o papel de criação, e depois de educação. Por tudo isso, a mulher é a única responsável” (1985, p. 327). Para a autora, a pressão ideológica sobre o papel das mulheres resultou num endeusamento das mães admiráveis e flagelação das que fracassavam em sua “missão sagrada”. Nessa perspectiva, de um lado sobram elogios e homenagens às mães que, de boa vontade, aceitavam o fardo, e de outro, ameaças e condenações para aquelas que não davam conta das exigências. E não eram poucas (p. 272):

Desgraçada a mulher que não ama seus filhos, exclama Brochard. Desgraçada aquela que não o amamenta, continua o doutor Gerard: “ela condena toda sua descendência a males horríveis, cujas consequências terríveis podemos apenas entrever: enfermidades incuráveis como a tuberculose, a epilepsia, o câncer e a loucura, sem contar todas as horríveis neuroses que tão cruelmente afligem a humanidade”.

Estava definida a “natureza feminina”: uma natureza forjada no mito do amor materno, no qual o “amor forçado” iria se apoiar para demonstrar as características de ser uma boa mãe, algo fortemente representado por importantes pensadores:

Assim fazem Rousseau e Freud, que elaboraram ambos uma imagem da mulher singularmente semelhante, com 150 anos a separá-los: sublinham o senso da dedicação e do sacrifício que caracteriza, segundo eles, a mulher “normal”. Fechadas nesse esquema por vozes tão autorizadas, como podiam as mulheres escapar ao que se convencionara chamar de sua “natureza”? Ou tentavam imitar o melhor possível o modelo imposto, reforçando com isso sua autoridade, ou