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O fim do isolamento compulsório e os vínculos dos internados com a CTM

LIBERDADE CAÇA JEITO

2.4. O fim do isolamento compulsório e os vínculos dos internados com a CTM

Apesar da medicação proporcionar para uma parcela significativa de internos a saída da Colônia, ficar livre do esquema de tutelado não era tão fácil, muitos não tinham mais para onde ir. Haviam passado por um processo de desfiliação do seu grupo social de origem, tinham sofrido bruscas rupturas em suas trajetórias de vida, o desprezo e incompreensão, fruto do medo de contágio e das diferentes produções subjetivas vinculadas à lepra e à exclusão (LIMA FILHO, 1996, p. 20).

Foram décadas de isolamento, haja vista que a política pública deve seguir as recomendações das sociedades médicas nos congressos.50 Entretanto, essas sugestões de congressos não têm valor perante a legislação. Em alguns casos, tais recomendações tornam-se leis após anos. Em 7 de maio de 1962, com o Decreto 968, o isolamento compulsório foi extinto,

50 As principais medidas aprovadas em congressos em relação à profilaxia são: em 1897, Berlim (Alemanha), define-

se a lepra como uma doença incurável; em 1909, Bergen (Noruega), o isolamento a principal medida profilática da doença; em 1923, Estrasburgo (França), confirma-se o isolamento dos doentes acompanhado de legislação apropriada e a contagiosidade da doença; em 1938, Cairo (Egito), matem-se o isolamento com tratamento e sugere-se o modelo Tripé; em 1948, Havana (Cuba), recomenda-se o isolamento apenas para casos contagiantes e início do tratamento químico com a sulfona; em 1953, Madri (Espanha), sugere-se o isolamento somente para casos confirmados; em 1958, Tóquio (Japão), considera-se o isolamento retrógrado, por ser epidemiologicamente ineficiente, devendo ser abolido e os tratamentos quimioterápicos oferecidos nos órgãos centrais de saúde pública (MACIEL, 2007, p. 252). Cabe ressaltar, ainda, que na Conferência de Berlim concluiu-se que “a cura ainda era uma utopia, e [...] o isolamento dos doentes, única alternativa viável para o não alastramento do mal” (BECHLER, 2009, p. 190).

113 porém demorou a ser aceito nas colônias brasileiras. Cada uma teve seu próprio tempo para pôr em prática a liberação dos internos.

Ao sair da Colônia como egresso, o ex-interno perdia uma série de vantagens que a vida tutelada oferecia. Por isso mesmo ser contratado como funcionário público ou ter a oportunidade de “morar lá fora” tinha suas consequencias criando dilemas que requeriam um “pensar com cuidado”, pois o interno nem sempre estava “disposto” ou “forte o bastante para enfrentar” algumas exigências da sociedade dita sadia (ibid, p. 27).

Aos poucos foram saindo. Alguns se instalaram nas redondezas da instituição. Outros que tentaram residir mais distante voltaram pouco tempo depois, numa clara demonstração de que os problemas de adaptação à sociedade parecem ter sido menos significativos do que os de cunho afetivo. As motivações mais faladas pelos internos para permanecerem residindo na ex-colônia foram o apego às pessoas e ao próprio lugar.

A título de ilustração, podemos observar a importância das relações sociais entre os semelhantes e o sentimento de pertencimento a um lugar no qual se criou laço social entre as pessoas que compõem uma comunidade, lembrando as peculiaridades já citadas (gênero etc.). No livro O inverno de um tolo, de Michael Bruckner (1985), o velho Moisés, ao ser libertado do manicômio onde viveu por décadas, se mostrava insatisfeito morando na casa de seu filho, que logo questionou se ele estaria com saudades do manicômio. O pai respondeu que sim, pois lá ele tinha muitos amigos. Então, seu filho, surpreso, lembrou-lhe: aqui o senhor tem uma família, o velho pai, muito tranquilo, lhe disse que mesmo assim não se sentia feliz e que desejava voltar, o mais rápido possível para o manicômio. (BRUCKNER, 1985).

Outro bom exemplo de apego a um lugar de isolamento, desta vez uma prisão, encontra-se no filme Um sonho de liberdade, no qual observa-se o sentimento de pertencimento e apego a um lugar. O preso, que viveu e envelheceu na prisão, ao receber a notícia de sua liberdade, transtornado ameaçou um colega de cela com uma faca para que, com esse crime, permanece-se preso onde havia passado a maior parte de sua vida. Como essa estratégia foi em vão, logo após sair da prisão enforcou-se no quarto onde morava.

A vida no interior da Colônia permitia aos internos se engajarem socialmente e fugirem do estigma que costumava existir na sociedade, onde a experiência da humilhação fazia-se dolorosa pelo olhar indiscreto das pessoas que observavam o aspecto estético. Assim, para

114 superação do preconceito, muitos ex-internos permaneciam morando na Colônia com portões abertos.

A permanência do interno na Colônia pode ter sido motivada por um forte saudosismo, haja vista que toda sua história está atrelada a este período. Dessa forma, sua identidade se constituiu a partir não só de suas memórias positivas, mas também de lembranças negativas. Vale a pena conhecer a opinião de Tenório:

Antigamente aqui era melhor do que é hoje. O hospital era minha segurança, mas hoje não é mais. Brigas só tinha de rivalidade sadia entre times de futebol. Na época da compulsória, não havia crime. Depois, quando chegou a chamada

liberdade, começou a invasão até de traficantes e das milícias. Aí, acabou o sentido de comunidade pra mim. A partir dessa abertura, foram acontecendo vários assassinatos nunca elucidados. Por causa da chamada liberdade, a segurança mudou. Antes era como se fôssemos todos irmãos, e hoje, se você falar qualquer coisa que desagrade, pode acordar com a boca cheia de formiga. Então, na compulsória, no regime fechado, não existia nada disso (Tenório, 81 anos).

Tenório acredita que a violência dentro da Colônia foi causada pela invasão de pessoas com a abertura dos portões, que ele chama de liberdade. Por outro lado, Rodrigo Lima Filho nos apresenta uma perspectiva diferente, elucidando que a violência se deve à urbanização da cidade:

Nos últimos anos da década de 50 muitos pacientes receberam alta e foram morar com suas famílias em áreas situadas no entorno da Colônia, e ficaram trabalhando no Hospital como funcionários egressos. A situação manteve-se assim até os anos 80, quando ocorreram reestruturações no modelo disciplinar vigente: foi abolida a guarda interna, assim como todas as outras proibições que impediam as pessoas não-portadoras da doença (os chamados “sadios”) de habitar o núcleo central da Colônia, inclusive crianças. Neste mesmo período foi construída uma imensa auto-estrada (BR-101), o que transformou toda a região e trouxe problemas inerentes ao desenvolvimento urbano desordenado: caos imobiliário e violência. Muitos moradores associaram a reestruturação do sistema interno da Colônia à perda de uma tranquilidade comunitária rural (LIMA FILHO, 2010, p. 87-88).

O isolamento compulsório tem sido comumente pensado como um lugar de incomunicabilidade. Verifica-se que essas instituições são articuladas não somente pela perspectiva de coerção aos doentes internados, mas também pela de resistência dos oprimidos. Cabe ressaltar a existência de pessoas saudosas exatamente do tempo do isolamento compulsório que passou, conforme Danilo, ex-interno, relata claramente:

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Eu com meu irmão, para ver as moças, pulávamos o portão porque a colônia era fechada. Era escuro, porque a luz só funcionava até as nove horas da noite e a água era puxada do rio Iguá por um motor. Aquele tempo era muito bom, mas infelizmente acabou. Eles achavam que a liberdade tinha que ser liberdade (Danilo, 80 anos).

Não se supunha, àquela época, que o isolamento compulsório pudesse ser pensado como lugar de sociabilidade. Na experiência de isolamento aqui apresentada, a sociabilidade se expressa em muitas dimensões, sendo a principal delas a do corpo e da liberdade. Parece que Danilo se dá conta de que para ser livre basta simplesmente ser, pois, segundo o poeta Manoel de Barros “liberdade caça jeito”. Nesse sentido, hoje, no século XXI, permanecer morando na Colônia e, ao mesmo tempo, ganhar espaço e respeito na sociedade externa é sinônimo de progresso.

O fenômeno da permanência de muitos internados na Colônia nem sempre denota medo do preconceito no cotidiano da sociedade em outro lugar. Hoje, a liberdade de ir e vir, essencial para se alcançar autonomia, parece ser observada na experiência da maioria dos que foram isolados compulsoriamente nessa instituição.

Em outras colônias ocorrem fenômenos interessantes, conforme constatado por Ana Carolina Rocha et al (2011). Segundo esses autores, os próprios ex-hansenianos fazem questão de se identificar como tal, demarcando seu espaço na Colônia.

Percebe-se que, enquanto os olhares de fora (visitantes e pesquisadores que frequentam o lugar, por exemplo) são direcionados para sensibilizar e aderir aos atos de caridade e escrever teses sobre a necessidade de se “acabar com o estigma e o preconceito”, a pessoa dentro da CAD [Colônia Antonio Diogo] parece ter um movimento contrário, que é o de manter viva a sua história, assumir essa identidade, afirmar-se hanseniano, dependente (portanto) e, com isso, deixar clara a demarcação, inclusive, do espaço físico conquistado (a Colônia), separando-os, mesmo que simbolicamente, do resto da sociedade (ROCHA et al, 2011, p. 215).

Na CTM, a demarcação de espaço, no entanto, tem sido realizada por meio de negociações pautadas na antiguidade do morador e em lutas travadas, com o apoio do MORHAN,51 para regularização de seus imóveis, através da legalização de documentação de propriedade.

51 Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase) busca assegurar os direitos dos

pacientes e garantir cidadania por meio de reinserção social do ex-hanseniano. É um dos mais bem-sucedidos movimentos sociais no Brasil com representação no Conselho Nacional de Saúde.

116 2.5. Movimento de resistência dos internos para permanecerem nas colônias

No que concerne à dimensão de interações e fronteiras entre a Colônia e a sociedade externa, houve uma ameaça de abertura para que o doente se integrasse à sociedade. Contudo, tal fato não se concretizou totalmente, uma vez que não houve uma preparação para isso.

A maior parte dos internos, que devido à internação estava afastada de seus familiares, procurou mantê-los por perto, providenciando moradia para eles no interior da Colônia. Os filhos, agora crescidos, passaram, então, a morar com os pais dentro da Colônia. Essa convivência criou condições para o surgimento de novas relações com descendentes sadios.

Para Zoika Bakirtzief, os discursos humanistas de anti-institucionalização que pretendiam e que ainda pretendem extinguir ou transformar os antigos leprosários em novos espaços, têm esbarrado sempre nos movimentos de resistência, que apontam os interesses financeiros do governo em cortar gastos.

O silenciamento da voz do paciente tem sido uma tática de governabilidade. Na época do regime militar, a mídia pouco divulgava os protestos e manifestações sociais, apesar da desinstitucionalização ter sido, por vezes, realizada sob protestos. Desconhecemos referências bibliográficas de estudos realizados nesse período silencioso da história dos doentes no Brasil (BAKIRTZIEF, 2001, p. 109).

De fato, ao longo do tempo, pudemos tomar conhecimento, através da mídia da existência de projetos para desalojar os internos moradores nas ex-Colônias brasileiras. Entretanto, o apelo para que eles possam continuar morando dentro dessas ex-Colônias, inclusive a de Itaboraí é grande.

Na década de 1980, a matéria de Fuad Abílio Abdala, intitulada “A quem interessa a desativação das Colônias”, sobre o Sanatório de São Paulo, publicada no Jornal do Morhan, mostra a preocupação com os motivos ocultos:

Com a desativação, esses burocratas insensíveis jogaram à exacração pública seus internados. [...] muitos incapacitados para trabalhar e sem ter a quem

recorrer. [...] antigos internados foram atirados à rua, [...] e os chalés onde residiam muitos pacientes estão hoje ocupados por funcionários e suas famílias [...]. Pergunto a quem serviu a desativação e conseqüente dissolução do Sanatório Pe. Bento? (ABDALA, Jornal MORHAN, 1983, p. 4). (Grifo nosso).

Em outra matéria “A face suja da moeda – Lobos em pele de cordeiros”, André Luiz de Paula denuncia que a campanha pela desativação da Colônia de Curupaiti e a transferência de seus internos para o Hospital Tavares de Macedo é mais uma jogada dos grandes especuladores

117 imobiliários, que estão interessados na área extremamente valorizada, ocupada pelos hansenianos (DE PAULA, Jornal do Morhan, 1984, p. 8).

Essa polêmica vem se estendendo ao longo dos anos, o que impulsiona a criação de projetos de transformação de Colônias em bairros, nos municípios de origem ou em loteamentos adjacentes, de modo a manter os remanescentes agregados em um único asilo. Essa ideia, em geral, é rejeitada, em defesa dos deficientes físicos e visuais, que, desalojados de suas acomodações de costume teriam dificuldade de adaptação em novas residências. Outros ferrenhos defensores da retomada da propriedade para outros fins alegam os elevados gastos com a manutenção. Assim, enquanto não se decide o destino das antigas colônias, os embates se renovam a cada governo. Nesse ponto, Salomão, 74 anos, é taxativo:

O governo não tem moral para acabar com isso aqui. Ele criou. O governo não deve fechar a Colônia porque foi ele que forçou, é obrigação deles. É muito complicada essa situação social aqui dentro. O comentário entre os doentes é que aqui vai acabar. Cria um estado emocional...

O doente que tem ferimento não pode viver lá fora porque o posto de saúde fica longe e ele não pode ir andando, nem de bicicleta, nem pode guiar o carro porque a mão desliza. A prioridade é viver aqui dentro.

Colocou a força para livrar a cara da sociedade lá fora e não é com dinheiro que ele vai mandar em minha vida. Eu não estou ganhando mal, não. Graças à porcaria da doença, mas preferia ser pobre e ter disposição para andar, trabalhar... Tentei morar fora, mas não deu certo porque me acostumei com isso aqui. Eles não são muito amigos um do outro, não. É como lá fora, aqui não sou amigo nem inimigo de ninguém. Têm somente umas três pessoas morando aqui que são prestativos.

Após anos de confinamento, a maioria dos ex-pacientes das colônias, apesar de estar autorizada a abandoná-la, permaneceu morando, porém sem obrigatoriedade e por opção. Opção essa influenciada não só pelo apego e sentimento de pertencimento ao lugar, mas também por muito serem desencorajados por situações adversas. A preocupação dos internados, agora, é a de que sejam forçados a sair de suas moradias, casa ou pavilhão.

Face às narrativas sobre o sofrimento da experiência do hanseniano deixar a colônia, observamos que, no passado, o pesar pela perda da estrutura familiar, ao ser retirado da sociedade para viver no isolamento, paradoxalmente, parece ser o mesmo pesar de, hoje, ter que ser retirado da Colônia para viver na sociedade. Esse sofrimento parece ser em virtude do mesmo sentimento de perda de relações que foram construídas, como aquelas de antes da internação, ou seja, reescreveram no isolamento uma nova história de sociabilidade para se adaptarem a uma nova

118 vida dentro da Colônia. Nessa perspectiva de sociabilidades, nas “relações com o outro”, entendemos por que sair de vez da Colônia é tão pesaroso para os nossos entrevistados e para muitos outros.

Se o governo resolver transformar os hospitais, como o HETM, em outro tipo de instituição – e para isso tenha que desativar totalmente as ex-colônias brasileiras – acreditamos que os maiores prejudicados serão os próprios moradores internados. Um dos argumentos desfavoráveis que não se pode relevar, sob pena de cometer um grave ato de omissão, é o impacto que os corpos das pessoas atingidas pela lepra provocam nas pessoas que as acolherão na sociedade. Para muitos moradores da CTM, é impensável viver “lá fora”, devido às deformações no corpo. O impacto do olhar do outro, da sociedade, sobre os corpos dos ex-internos é um dos principais fatores que dificultam ou até mesmo impedem sua reinserção no mundo externo às colônias. Em nossas costumeiras caminhadas, ladeiras acima, cumprimentamos pessoas, cujas modificações corporais lhes dão um aspecto de anormalidade. Esse aspecto é conferido pelas alterações faciais, mãos em garras ou com apenas alguns dedos; e membros amputados. Deixar a colônia para trás significa enfrentar problemas social, psicológico e de saúde.

119 CAPÍTULO III

SOCIABILIDADES, POLÍTICA DE CUIDADOS E REVISÕES DA “INSTITUIÇÃO