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DO USO DAS PARTES COMUNS, DOS SERVIÇOS E DE PROPRIEDADES PRIVATIVAS

5.4 O CONFLITO: DOMINÂNCIA E SUBVERSÃO

A esfera do conflito por vezes é associada a uma disputa entre duas ou mais posições. É comum que essas disputas delineiem a dominação de um pensamento ou ação. Sendo assim procuraremos identificar esse processo de acordo com a proposta do trabalho

5.4.1 Diferença nos campos: a antiga moradia

Considerando o contexto dado, o que afinal poderia representar morar em bairros abertos? E o que de fato se contrapõe ao modo de morar no condomínio fechado? Os bairros abertos não estariam propensos a ter conflitos, diferenças, hierarquias, barreiras, regras? O que os tornam diferentes? Levando em conta o conceito de campo como origem dos valores sociais (BOURDIEU, 1989), pode-se considerar que esse é o espaço legítimo dessa gênese. Portanto, somente observando esses dados, valores sociais, que se pode determinar aquilo que predomina. O campo é o espaço do conflito e seus valores sociais ganham pesos diferentes a cada mudança, logo, sua característica de dominância e subversão também alterará.

O campo (condomínio), conforme já apresentado, exprime posição social relacional situada em um eixo cujo seus extremos são o público e o privado. A esse respeito, Sennet (1998) comenta sobre a perda do espaço público em detrimento do privado. Podemos, então, visualizar as características da posição em que se encontra o condomínio, no eixo comentado.

Nesse sentido, pode-se inferir que se no campo (cidade) existe um conflito entre o público versus privado, a partir disso, haverá uma perda do espaço público. Isso se dá em virtude de uma espécie de empuxo, que é uma força que atua como elemento de impulsão, logo, esta é exercida, a partir de características variantes, em um caminho que privilegia o aspecto privado. Relacionando com Bourdieu (1989), a particularidade que compõe o movimento de privativo, para os moradores, seria um grande troféu com características peculiares. Isso é caracterizado por uma construção social que tem capacidade de transbordar o sentido do intramuros.

No campo (condomínio), supõe-se que esse efeito se traduz na repulsão de certos simbolismos públicos cooptados durante a trajetória singular de cada indivíduo. A repulsão se trata do conflito causado pela estrutura do campo (condomínio), colocada para que os princípios dominantes ganhem estabilidade mesmo que destruam os simbolismos já cooptados. Isso é de um simbolismo enorme, pois os dominantes conservam a ordem e

os subversivos a seguem. No entanto, por vezes, os dominados agem como subversivos, procurando desestabilizar a ordem dada.

Nessa perspectiva, questionamos: considerando o conceito de campo inerente ao espaço desse conflito, como se daria a exibição dos valores sociais no bairro comum de modo que sua relação na transferência de capital do campo (bairro comum) para o campo (condomínio) cause tamanho choque? Essa relação pode ser observada a partir de seus próprios moradores.

Comentando sobre sua moradia, o morador 1 faz referências sobre sua antiga residência:

Morar aqui é muito bom, ultimamente o pessoal tem se aproximado mais e também temos bastante lazer, atividades e segurança que é o que falta lá fora. É até chocante quando lembro da minha antiga moradia, lá por volta dos anos 80, no bairro de Capim Macio. Eu conhecia muita gente da vizinhança, sabe? Tinha muita gente boa, trabalhadora... sabia-se quem era marginal de cara por que todo mundo já sabia que essas não queriam nada com trabalho. As ruas eram trafegáveis, poucos carros, sabe? Dava pra andar de bicicleta até a praia de Ponta Negra com os amigos sem problema. Ir além dos limites do bairro era gostoso, era bom conhecer coisas novas [...]. Tinham coisas em Ponta Negra que não tínhamos em Capim Macio, a própria praia, né? Também tinha a praça da caixa d’água. Era um desbravamento da cidade [...] quando voltávamos para o nosso bairro também sentia um alívio porque era o lugar que eu já conhecia quase todos (Morador 1, servidor público, 48 anos).

O trecho evidencia fragmentos do cotidiano construído pelo morador 1. Não só elementos do seu cotidiano mas também alguns aspectos de seu habitar. É nesse cotidiano que ele exprime algumas de suas atividades, muitas delas voltadas ao lazer. No entanto, chama-se a atenção para a descrição feita das pessoas residentes no bairro. De acordo com o morador, elas são conhecidas, inclusive os “marginalizados”. Além disso, menciona as frequentes saídas dos limites do bairro, evidenciando certa euforia com a descoberta do que estava além dos limites.

O bairro, para ele, não era apenas um recorte territorial, por mais que em alguns momentos considere dessa forma. Por exemplo, reconhece que o bairro pode ser o lugar de certos tipos de equipamentos urbanos em que poderia desbravar o espaço para achar o que de fato queria. De fato, ir para outro bairro perpassa pela ultrapassagem de limites, mas há um reconhecimento de que o deslocamento realizado acontece na cidade. No entanto, o retorno ao seu bairro de origem parece ser reconfortante.Tal fato se torna relevante, pois o bairro é o espaço onde seu habitar se desenvolve mais livremente. Há identificação, socialização reconhecida e, portanto, laços de pertencimento.

Ir para caixa d’água era uma coisa curiosa. Nós chegávamos lá e botávamos as bicicletas na grama, bebia água da torneira e as pessoas ficavam olhando para gente. Pegávamos bola de papel, jogava na grama e sempre tinha a sensação de que estavam olhando pra gente, mas nunca proibiam. Eu acho que isso era o que trazia o conforto do meu antigo bairro, porque eram coisas normais fazer isso, não acha? Além disso, nossa área não tinha problemas com água de chuva, tinha canto ali que alagava. Era melhor onde eu morava mesmo (Morador 1, servidor público, 48 anos).

Essa descrição sobre suas atividades na praça de outro bairro evidenciam práticas habituais, habitus para ser mais preciso, o que fica evidenciado na sensação “inexplicável” de estar fazendo algo digno de observação (jogar bola na grama da praça). Para ele, poderia ser algo normal e desviante para outros que observavam. No entanto, não menciona que havia proibições. Além disso, em seu discurso, o bairro comum ao visitante também apresenta problemas, sendo o seu refúgio consolativo o seu próprio bairro.

Dessa forma, o bairro descrito pode ser interpretado como algo que é público, mas carregado de privações simbólicas No entanto, tais privações não o impediam de participar e compartilhar um estilo de vida, pois mora em um bairro em que não há praias e se desloca para outro em que há. Isso acaba implicando um estilo diferente de bairro. Outro aspecto importante referente às privatizações é o fato de que os moradores do bairro de origem aparentemente se reconhecerem como semelhantes, e observam os estranhos. Assim, embora permeado de individualizações, o bairro é também público, pois não se restringe, nesse caso, a um determinado grupo social.

Park (1970) já comenta sobre a organicidade dos bairros. A flutuação da população (viajantes na cidade), o trabalho, a religião etc. são fatores que explicam que um bairro comum sempre necessitará de outro grupo para seu funcionamento. É esse movimento que qualifica o elemento do bairro comum como pertencente a um grupo, mas público a outros. O fato de se reconhecerem e de ser observarem os estranhos está ligado muito mais a outras formas de barreiras, as simbólicas, nos termos de Bourdieu (1997), a partir de acepções dos moradores que estão estabelecidos (ELIAS, 2002) no espaço.

Isso tudo começou a mudar com cada vez mais pessoas fazendo casas clandestinas por ali em Ponta Negra. Logo, muitas pessoas desconhecidas ficam circulando por ali, já dando uma sensação de alerta. Antes a gente sabia que provavelmente quem não trabalhava era meio que pedinte, mas depois não tinha como saber. Começaram muitos assaltos, a praça da caixa d’água ficou muito perigosa, deve ser até hoje. As pessoas foram se mudando ou comprando apartamentos em condomínios que estavam construindo durante os anos noventa (Morador 1, servidor público, 48 anos).

Esse trecho nos revela outra característica representativa dos bairros abertos para o morador 1. O bairro muda à medida que a situação de conforto se altera. Os conhecidos e trabalhadores estão se dispersando, visto que há a introdução de uma espécie de extrato intruso no bairro. Isso pode ser relacionado à reconfiguração simbólica à medida que certas classes sociais vão ganhando mais ocupações sociais (BOURDIEU, 1997).

A alusão a esse fato também perpassa pela ideia do trabalho, bastante repetida no discurso. Simbolicamente, o ser honesto, para alguns dos entrevistados, está ligado à ideia de trabalho, logo, quem não é parece estar na marginalidade. Tal fato é colocado por Wirth (1987) não somente ligado ao ato de trabalhar mas também pelo dinheiro. No caso, a forma como se ganha os recursos financeiros, isto é, por meio do trabalho, é o grande nivelador das relações no cotidiano. Essa proliferação de estranhos, que se relaciona com indivíduos com potencial de marginalidade, causou para o entrevistado a sensação de que algo ali estava se perdendo.

A ideia de normalidade é também vista em Park (1987) como aquilo que passa a ser normal é justificado, ou seja, torna-se aceito pelo grupo da comunidade. Se porventura houver desvios do que é aceito pelo grupo, haverá quebra da normalidade. Tal fato pode gerar problemas potenciais no que diz respeito à presença do “estrangeiro” (estranhos na vizinhança). Nessa direção, Simmel (1987) mostra que a existência desta diferença é indispensável para compreender novas reconfigurações no bairro, e isso pode dar origem a outras possibilidades de práticas sociais.

Dessa forma, o bairro comum, nesse caso, levanta alguns valores importantes carregados de similaridades e diferenças. Sobre as similaridades, o bairro também possui limites, que não podem ser traduzidos somente em limites físicos mas também em conforto natural no espaço. Tal conforto perpassa pelo conhecimento de seus semelhantes, dos espaços com valores simbólicos, entre outros. Mais uma vez, para os entrevistados, o indivíduo de bem está diretamente relacionado ao homem que trabalha:

Eu adorava meus vizinhos. Eram todas pessoas de bem, trabalhadoras, os conhecia e tinha aquela solidariedade. Eram o tipo de pessoa que você vê e não sente hostilidade. Sentávamos na calçada às 16h, todo dia e botávamos nossos filhos para brincar na rua até perto das 18h. Minha vizinha antiga virou minha amiga, a conheço há mais de 15 anos. Qualquer festa aqui, eu a chamo, mesmo morando longe. Tinha também a vizinha dela que eu achava estranha, mas logo fui me adaptando porque ela sentava junto a nós. Tínhamos esse costume, sabe? Depois compramos nosso cachorro, passeávamos até duas ou três ruas além da nossa. Víamos sempre a mesma coisa, íamos na padaria. Até isso eu sentia falta, porque eu conhecia a dona da padaria, tinha até uma conta lá e a comida era ótima, aqui é ruim. [...] Cidade Satélite era muito bom de se viver por causa dos vizinhos, minha casa era velhinha também, em comparação a

esta atual. [...] mas aí começou a ficar muito esquisito, pessoas estranhas andando por lá, brigas entre times rivais e acho que tinha bastante drogas além do sistema de iluminação ser precário e as chuvas35 também atrapalhavam. Essa situação me fez ficar muito acuada em casa, era diferente daquilo que já foi um dia. Se pudesse moraria aqui (condomínio) com os meus vizinhos (Morador 7, 42 anos, engenheiro civil).

Os episódios descritos representam a transcendência da intimidade local em que o vínculo afetivo se forma. Nessa direção, Prost e Vincent (1992) comentam que tais vínculos podem perdurar no tempo e no espaço, especificamente no local público, conforme descrito pelo morador 7 e 1. Suas experiências se passam onde exatamente essa transcendência se deflagra: no espaço público. É aí que se dá o conhecimento da intimidade, a aversão etc.

Esse tipo de discurso, remetendo ao passado, foi bastante repetido em várias entrevistas. Na ocasião, observamos aspectos importantes tais como: (i) situa a posição dos indivíduos por meio do trabalho; (ii) pessoas desconhecidas provenientes das últimas transformações do bairro eram taxadas como marginais. Ressalvam-se ainda situações, como no caso do morador 7, que fez amizade com uma dita “estranha”, a partir do desfrute do espaço público junto a tal pessoa. Esse fato nos leva ao grande cerne sobre a representação das antigas moradias dos condôminos. Os espaços formados por ruas, bairros etc. são heterogêneos e perpassam por grande dinâmica que envolve parte da formação imaginária. Interações que podem levar as relações a se homogeneizar, mas também se sedimentam em função de um habitus de confiança baseado em algum grau de solidariedade. Essa dinâmica é similar ao que Sarti (1994) fala sobre a identidade social

[...] o vizinho torna-se seu espelho, “o real imediato”, o reconhecido e semelhante que serve de parâmetro para elaboração de sua “identidade social”, mesmo que ambientada em uma atitude ambivalente de aproximação e hierarquização com o imaginário social mais amplo em que está inserido (SARTI, 1994 apud ALMEIDA, 2011, p. 79).

Sob essa ótica, Park (1987) afirma que a vizinhança é considerada uma unidade social e que devido aos seus contornos e a uma estrutura orgânica interna, suas reações poderiam ser equiparadas à mente social. O autor chama ainda a atenção para o fato de que as forças de uma vizinhança tendem a se dissolver em tensões. Os interesses podem

35 As chuvas neste bairro costumam causar transtorno, visto que se formam lagoas nas ruas, problema típico de falta de saneamento básico.

convergir para uma situação mais ideal, ou, no caso urbano, podem sofrer isolamento em relação a outros grupos.

As mudanças no espaço urbano é outra característica da vida nas grandes cidades. Muda-se com muito maior frequência de casa e de emprego, com isso, as relações de vizinhança e de amizade também podem ser instáveis. O grande cerne está nas entrelinhas, pois apesar das aproximações e das distâncias dadas, as diferenças sempre circulam e isso cada vez mais gera enriquecimento, formando vínculos com base em suas identidades. Esse poderia ser o ponto natural em relação à sociabilidade. A distância citada está relacionada às condições que, para os entrevistados, quebram a normalidade, o justificável. Por sua vez, a sensação de rebuscar isso leva também a repelir o próprio espaço de identificação (antiga moradia).

Tais condições de quebra de normalidade se dão em virtude dos “males da cidade”. Além da questão de desconfiar do estranho, são relatados, diversas vezes, problemas estruturais envolvendo serviços básicos. Entre os mais citados, podemos mencionar a iluminação pública, a falta de saneamento, as paradas de ônibus distantes, entre outros.

Meu antigo bairro (bairro dos professores) se tornou perigoso. Além disso, tínhamos problemas com saneamento em algumas partes. Iluminação era algo terrível, o bairro foi se tornando perigoso. Possui uma grande praça, mas sabe- se lá quem frequenta, o que dá segurança ali é a igreja ao invés do Estado (Morador 9, servidor público, 41 anos).

Isso nos aponta uma forte vertente ligada à percepção desses moradores: a falta de urbanidade36. Esse termo é dado na ciência do urbanismo de forma bem ampla, mas podemos englobar em seu sentido aspectos ligados à diversidade nas ruas, à alta conexão entre o espaço público e o privado, à diversidade no transporte etc. Ao comparar esses fatores com a visão dos moradores, a principal queixa em relação à falta de urbanidade estaria em torno dos serviços prestados pelo Estado e sua baixa eficiência, tal como a segurança, a iluminação etc.

36 A literatura mostra que a ideia de Urbanidade é polissêmica. Segundo Saboya (2011), o conceito envolve a utilização do espaço público por diversos perfis sociais na interação com espaços privados. Além disso, pode envolver os modos de transporte na cidade, interação entre grupos sociais que desencadeia a vida cotidiana. Vale salientar que o aporte para essas atividades perpassa pela existência de estruturas e condições vitais para elas existirem corretamente, como, por exemplo, serviços básicos de segurança.

Podemos dizer então que tais relatos servem como parâmetro sendo evidenciados os anseios sentidos antes da vida em condomínio, especificamente os que remetem à vida de alguns novos moradores cuja historicidade urbana advém dessa tipologia de bairro. A esse respeito, foram elencados valores como: (i) territorialidade: o bairro, apesar de ser aberto, exprime uma territorialidade, no entanto, isto está condicionado a disputas por territorialidade à medida que o estranho vai sendo percebido; (ii) interdependência: nos termos de Park (1987), o bairros abertos estão propensos à constante mutação social, por ora, observa-se seu grupo característico, mas logo outros podem chegar; (iii) choque de diversidade entre classes sociais; (iv) serviços ou atividades específicas: ter esses dois elementos garante também a transição entre os espaços, ação que reforça termos anteriormente citados.

5.5 DIFERENÇA ENTRE CAMPOS: ANÁLISE INTRAMUROS DO CONDOMÍNIO JARDIM