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3 A Guerra na ex-Jugoslávia

3.2 O conflito

A guerra da Jugoslávia acabou por ser um conjunto de quatro conflitos que foram percorrendo o território jugoslavo e que resultou de todas as diferenças históricas dos povos integrantes das repúblicas e da sua necessidade de se declararem enquanto nações independentes com direito a língua, cultura e território próprios. A constante tentativa de afirmar esse conjunto de povos como um só povo jugoslavo apenas resultou enquanto havia um controlo firme do governo central de Belgrado e, ainda assim, somente à custa de algumas cedências ocasionais de Tito para os manter satisfeitos. Assim, a construção da Jugoslávia enquanto estado foi só o adiar de um conflito que, inevitavelmente, havia de acontecer, principalmente, após os acontecimentos da Segunda Guerra, os quais provocaram vítimas de todas as repúblicas jugoslavas às mãos umas das outras.

De acordo com o que foi deixado estipulado por Tito após a sua morte, a presidência da Federação devia funcionar como um sistema rotativo entre os representantes das repúblicas e das províncias autónomas. Já em 1991, a Croácia e a Eslovénia pretendiam conseguir a sua independência ou uma nova reformulação de todo o sistema político da Jugoslávia. Quando o mandato do sérvio Borizlav Jovic terminou, o seu sucessor deveria ser o croata Stipe Mesic, conhecido nacionalista e aliado de Franjo Tudjman, líder croata, no entanto, a votação (que apenas existia como formalidade) ficou empatada, porque as repúblicas da Sérvia e Montenegro e as províncias do Kosovo e da Voivodina não admitiam o facto de poderem ser presididas por um nacionalista croata. O resultado foi uma Jugoslávia sem presidência e um caminho aberto em direcção à separação das repúblicas que teve início pouco tempo depois.107

A Eslovénia, uma das primeiras repúblicas a declarar independência, em 1991, foi a primeira a perceber que a mesma não iria ser conseguida pacificamente. Ainda antes da declaração de independência, a Eslovénia deixou de contribuir financeiramente para o poder central de Belgrado, o que, juntando as duas acções, representava uma ofensa para a Sérvia, e terminou com o envio do exército federal para o território. No entanto, este primeiro conflito durou apenas dez dias e foi caracterizado pela pouca actividade de combate real, seguida «de um acordo de cessar-fogo e da suspensão por três meses da declaração de independência, obtidos por pressão da Comunidade

107 GIRÃO, António Caetano de Sousa Faria. A questão das nacionalidades, dos nacionalismos e das

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Europeia.»108 Apesar da situação vantajosa que a Eslovénia apresentava em relação às restantes repúblicas, o facto de a percentagem de sérvios que viviam dentro do território ser muito baixa, diminuiu o interesse que a Sérvia pudesse ter em prolongar o confronto até uma possível vitória, permitindo assim que esta se tornasse efectivamente independente da Jugoslávia mais rapidamente que as restantes repúblicas.

A seguir o exército federal jugoslavo dirigiu-se para a Croácia, onde Franjo Tudjman, historiador nacionalista, general e antigo partisan, estava à frente do poder e pretendia, após a independência, tornar a Croácia uma nação etnicamente pura de forma a poder continuar a construção do estado croata que tinha sido começado em 1941 e que tinha levado ao massacre da população sérvia local com o apoio da Alemanha e da Igreja Católica. Nesse sentido, os croatas começaram a recuperar «os símbolos do Estado de 1941 – nomeadamente a bandeira de xadrez vermelho, que para os sérvios tinha o mesmo significado sinistro que a cruz gamada dos nazis»109, ao mesmo tempo que agiam contra a população sérvia, o que incluiu a constituição de um exército croata e o respectivo armamento fornecido através de meios ilegais. Assim, quando a 4 de Julho ocorreram incidentes mortais em Zagreb e em Osijek, os confrontos violentos, entre o exército federal, os paramilitares sérvios da Croácia e os militares e polícias croatas, começaram por todo o território croata. Os croatas pretendiam expulsar os sérvios do território, assim como os sérvios pretendiam o contrário, ao mesmo tempo que o exército federal, que deveria ter uma atitude neutra, não agiu de nenhuma forma para interceder junto de ambos os grupos em prol da paz, uma vez que a maioria do próprio exército era de etnia sérvia, além do facto do exército croata ser responsável, durante o conflito na Croácia, da morte de milhares de sérvios que viviam nas várias cidades croatas. «A guerra foi finalmente suspensa a 3 de Janeiro de 1992 – após seis meses de massacres de civis, destruição, expulsões – num acordo de cessar-fogo negociado por Cyrus Vance110e assinado na véspera em Serajevo»111. Por fim, e com a presença dos Capacetes Azuis das Nações Unidas no território, em Agosto desse ano, Tudjman ainda conseguiu que todos os sérvios de Krajina fossem expulsos pelo exército

108 CUTILEIRO, José. Vida e Morte dos Outros: a comunidade internacional e o fim da Jugoslávia.

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Lisboa, 2003. Pg. 64

109 JOHNSTONE, Diana. Cruzada de Cegos – Jugoslávia, a primeira guerra da globalização. Editorial

Caminho. Lisboa, 2005. Pg. 39

110 Nota: Cyrus Vance foi Secretário de Estado dos Estados Unidos da América durante o mandato de

Jimmy Carter (entre 1977 e 1980) e, em 1991, foi nomeado Enviado Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a antiga Jugoslávia - http://publicagenda.org/staff/vance

111 CUTILEIRO, José. Vida e Morte dos Outros: a comunidade internacional e o fim da Jugoslávia.

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croata ao mesmo tempo que os muçulmanos de Srebrenica e Jeppa eram vítimas das barbaridades dos sérvios da Bósnia.

Apenas dois meses após o fim dos confrontos na Croácia, foi a vez de a Bósnia- Herzegovina ser o palco de um conflito que durou até Novembro de 1995. Foram três anos de uma guerra que tinha como objectivo principal a afirmação de cada uma das três etnias – muçulmanos, croatas e sérvios – e a sua independência, resultando, mais uma vez, em milhares de mortes e actos de profunda violência. As causas deste terceiro confronto começaram quando, ainda em 1991, tiveram lugar as eleições de Serajevo de onde saiu uma coligação dos três partidos étnicos, mas que o líder do partido muçulmano – o Partido de Acção Democrática – Alija Izetbegovic, assumiu para si o poder do governo e declarou a independência da Bósnia-Herzegovina da Jugoslávia, pretendendo criar um estado onde os muçulmanos estivessem em maioria: um estado islâmico.112 Sendo que este era um desejo contrário ao dos Sérvios, que queriam manter a Federação das repúblicas jugoslavas. Já os Croatas, primeiro, colocaram-se a favor da independência e contra os Sérvios, mas, posteriormente, juntaram-se aos Sérvios, uma vez que o medo de um futuro estado islâmico era comum aos dois povos. Com a impossibilidade de chegar a uma decisão que fosse ao encontro dos interesses de todos, começaram os distúrbios e os ataques entre os três povos que depressa se tornaram numa guerra violenta e nem o facto dos Capacetes Azuis estarem na área influenciou o decurso dos acontecimentos.113

O conflito da Bósnia-Herzegovina marcou também um ponto de viragem em relação à atenção dada pelos estados ocidentais, que, aqui, se mostraram muito mais presentes e interessados na sua resolução. A intervenção dos estados europeus e dos Estados Unidos esteve bastante ligada ao processo de tentativas para chegar a um acordo que agradasse a todas as partes. No entanto, tanto os Estados Unidos como os países europeus (especialmente a Alemanha e a França) tinham os seus interesses e preferências, que não coincidiam, o que também, de alguma forma, impediu que as negociações de paz atingissem um consenso mais rapidamente. Enquanto os países europeus viam os intervenientes da guerra com partes semelhantes de culpa e sendo, simultaneamente, vítimas, os Estados Unidos tinham uma percepção do conflito como «uma luta entre o bem e o mal» onde «os muçulmanos da Bósnia eram o bem, os

112 JOHNSTONE, Diana. Cruzada de Cegos – Jugoslávia, a primeira guerra da globalização. Editorial

Caminho. Lisboa, 2005. Pg. 90

113 CUTILEIRO, José. Vida e Morte dos Outros: a comunidade internacional e o fim da Jugoslávia.

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Sérvios o mal, os outros intervenientes variavam de posição conforme se fossem colocando em relação aos dois primeiros.»114 Por causa desta visão que os americanos tinham do conflito, os muçulmanos tentaram sempre adiar a chegada a uma unanimidade com a esperança dos Estados Unidos apoiarem a sua causa com ajuda militar contra os Sérvios, o que acabou por acontecer com a chegada da NATO e da Força de Reacção Rápida de britânicos, holandeses e franceses ao campo de batalha.

O ponto alto da violência e da violação dos direitos humanos e que levou a que se percebesse que era imperativo chegar o quanto antes a uma solução para um acordo consensual, aconteceu em Srebrenica, em Agosto de 1995, quando, segundo uma das versões, cerca de 7000 muçulmanos, que estavam prisioneiros dos soldados bósnio- sérvios, foram massacrados por estes «depois de conquistarem sem combate uma “área segura” sob protecção das Nações Unidas.»115 Já de acordo com Diana Johnstone, na sua obra Cruzada de Cegos, na qual afirma que pretende dar uma outra visão dos sérvios e uma visão mais justa dos acontecimentos ocorridos durante a guerra da Jugoslávia, os conflitos que se sucederam em Srebrenica tiveram uma sequência de eventos diferente, assim como o número de vítimas terá sido bastante inferior. Segundo a autora, o caso de Srebrenica terá sido o resultado planeado pelos muçulmanos para conseguir a intervenção da NATO. Ou seja, após vários ataques dos militares muçulmanos contra os sérvios, e sem que estes respondessem com a intensidade desejada, os muçulmanos, sob as ordens do Naser Oric, responsável pelo exército muçulmano, conseguiram infiltrar-se no território sérvio onde fizeram dezenas de vítimas sérvias na aldeia de Visnja. Encarando este ataque como o limite, o exército sérvio da Bósnia, sob o comando do general Ratko Mladic, preparou uma investida às zonas militarizadas de Srebrenica, uma vez que a Força de Protecção das Nações Unidas (United Nations Protection Force – FORPRONU) estava presente nas zonas desmilitarizadas, no centro de Srebrenica. No entanto, talvez já prevendo esta reacção sérvia, a maioria dos comandos do exército muçulmano abandonou o local deixando este sem defesa, um factor com que os sérvios não contavam e que mudou os seus objectivos ocupando toda a área de Srebrenica. Esta segunda teoria é, também, em parte, confirmada por relatórios da ONU, onde é possível ler que quando as milícias sérvias chegaram ao território de Srebrenica, não encontraram quase nenhum militar do exército muçulmano, o que levou a que Mladic

114 CUTILEIRO, José. Vida e Morte dos Outros: a comunidade internacional e o fim da Jugoslávia.

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Lisboa, 2003. Pg. 74

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mudasse os planos e decidisse ocupar todo o enclave.116 Quanto ao número de pessoas que, realmente, foram vítimas neste ataque, até hoje, é impossível chegar a um valor exacto devido às informações contraditórias de ambos os lados, sendo que a única certeza é que foi este o acontecimento, planeado ou não, que acabou por desencadear a entrada em acção da NATO e que provocou ainda mais vítimas.

O fim do conflito só foi possível em Novembro de 1995 com interferência das potências ocidentais que conseguiram delinear os termos das negociações de forma a agradar a muçulmanos, sérvios e croatas, concluindo com a assinatura do Acordo de Dayton. Por esta altura, já o mundo estava chocado com as atrocidades cometidas durante a guerra da Jugoslávia, onde imperou o ódio mútuo dos povos das repúblicas constituintes e que levou ao esquecimento de que estavam a combater seres humanos, iguais e detentores de direitos. E ainda faltava, ao povo jugoslavo passar por um último conflito antes de ver a sua afirmação enquanto povos distintos aceite pelo resto do globo, a guerra do Kosovo – que também ficou na história pelos extremos de violência a que o ser humano chegou.

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