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2.3 – Conformações do campo literário: o rural entre a estética e a política

(...) O nosso romance tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país. Talvez seu legado consista menos em tipos, personagens e peripécias do que em certas regiões tornadas literárias, a seqüência narrativa inserindo-se no ambiente, quase se escravizando a ele. Assim, o que se vai formando e permanecendo na imaginação do leitor é um Brasil colorido e multiforme, que a criação artística sobrepõe à realidade geográfica e social. Esta vocação ecológica se manifesta por uma conquista progressiva do território.

Antonio Candido, Formação da literatura brasileira.

Em 1945 realizou-se o I Congresso Brasileiro de Escritores, que congregou diversos autores e intelectuais. Entre os intuitos do evento destacava-se o de compor uma dimensão mais orgânica para o conjunto de reivindicações e aspirações dos literatos no Brasil53. Não se pode afirmar que o congresso produziu diretrizes programáticas para as elaborações estéticas, longe disso. Ele interessa aqui como um marco indicador de determinadas situações que se impunham naquele cenário: a existência de um campo literário que sustentava a idéia de uma posição diferenciada;

53 “O I Congresso Brasileiro de Escritores, de 1945, sem desconsiderar manifestações menores,

aglutina, além dos liberais, diversas tendências da esquerda, numa ampla frente de oposição, e pede as liberdades democráticas, mais especificamente, eleições com sufrágio universal, direto e secreto”. (CASALECCHI, 2002, p. 13).

a profissionalização do ofício; o sentido de missão social da prática literária; e o engajamento.

A resolução aprovada no Congresso ilustra as veredas perseguidas pelos escritores nesse momento particular da vida intelectual do país e denota, sobretudo, um posicionamento explícito sobre a questão democrática (MOTA, 1988). É importante, neste sentido, reter a noção de que cabia aos produtores de criações estéticas, ao menos em suas próprias auto-representações, um papel de agentes diante das transformações sociais requeridas.

O intento de profissionalização dos escritores expresso no I Congresso é acompanhado de uma mobilização contra o Estado Novo e uma conclamação à politização das letras. De qualquer modo, a missão política do ofício de escritor assume dimensões de programa político, de plataforma pública, sem necessariamente querer orientar o próprio ato criativo. A declaração de Princípios do Congresso bem expressa o “clima” e as aspirações dos escritores num contexto de queda dos totalitarismos.

Os Escritores brasileiros, conscientes de sua responsabilidade na interpretação e defesa dos interesses do povo brasileiro, e considerando necessária uma definição do seu pensamento e de sua atitude em relação às questões políticas básicas do Brasil, neste momento histórico, declaram e adotam os seguintes princípios:

Primeiro – A legalidade democrática como garantia da completa liberdade de expressão do pensamento, da liberdade de culto, da segurança contra o temor da violência e o direito a uma existência digna.

Segundo – o sistema de governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal, direto e secreto.

Terceiro – Só o pleno exercício da soberania popular em todas as nações torna possível a paz e a cooperação internacionais, assim como a independência econômica dos povos.

CONCLUSÂO – O Congresso Considera urgente a necessidade de ajustar-se a organização política do Brasil aos princípios aqui enunciados, que são aqueles pelos quais se batem as forças armadas do Brasil e das Nações Unidas (apud MARTINS, 1978, pp. 219-220).

A conclamação à politização e a mensagem de engajamento que o documento comporta, exprimem posições correntes entre diversos escritores brasileiros, similar

aos demais campos de produção cultural. Avultava a necessidade de intervir como forma de atuação e de realização para a literatura, o que se associava ao modelo de “intelectual sartreano”, imbuído de uma missão, no caso converter por meio de suas competências particulares – a escrita e o pensamento – os anseios populares em um discurso sistemático, ou produzir o estado de consciência nacional frente aos condicionantes sociais e políticos que mantinham o país no atraso.

A Declaração não se assemelha aos manifestos correntes no período modernista, conclamando à revolução estética, às mutações na arte, mas convoca os escritores a realizarem sua “missão histórica” de intérpretes e porta-vozes das massas. Não como uma consequência direta, mas o tipo de engajamento contido na Declaração se realizará em grande parte do romance de temática rural. Porém, como os jogos de força estéticos e políticos irão demonstrar posteriormente, o engajamento político na literatura caminharia no sentido inverso na forma predominante das obras. Afinal, todo esse processo de politização expresso nos discursos públicos dos escritores coincidiu com a emergência de um período em que apareceram as “gerações” mais estetizantes e experimentais da literatura brasileira, em geral associadas ao discurso da “arte pela arte”. Isto não permite afirmar que havia uma oposição entre experimentações estéticas e sentido político, ao contrário54.

Este processo de atribuição de engajamento às letras e seus agentes evidentemente possui conexão com as transformações sociais verificadas no período, mas deve ser compreendido também em relação com os jogos de força que se operavam no campo literário, que catalisava e traduzia em sua gramática os problemas e debates que circulavam no país. Neste sentido, a Declaração do Congresso explicita e sistematiza um senso de politização da estética que caracterizara a literatura brasileira nos anos anteriores e que no período do Estado

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Basta lembrar que a fórmula do poeta russo Vladimir Maiakóvski (sem forma revolucionária não há

arte revolucionária) constituiria uma das inspirações comuns entre escritores e criadores culturais no

país após 1950.

Novo (1937-1945) e de disputas ideológicas entre fascismo e comunismo em virtude, sobretudo, da 2ª Grande Guerra, ganha tons mais nítidos. Esse engajamento se servia, ora da participação política do escritor como figura pública em jornais e revistas, por meio dos quais mobilizava os efeitos de seu capital simbólico, ora a partir de uma politização direta e orientada ideologicamente de suas construções estéticas, como explicita grande parte da literatura social ambientada no mundo rural.

É necessário também enfatizar que uma das preocupações formais que perpassou o Congresso se refere às pressões para a profissionalização do ofício literário (MARTINS, 1978). O que denota os intentos de ajustar os ponteiros da função de escritor às novas condições de “reprodutibilidade da obra de arte”, isto é, com uma ampliação e complexidade do mercado de bens simbólicos que se verificava então. Afinal, as lutas por uma legislação de direitos autorais e regulamentações da “carreira” constituíam pontos importantes dos debates travados (MARTINS, 1978).

É evidente que a noção de corte e/ou transformação que o ano de 1945 evoca é motivada por um conjunto de mutações, tais como o fim da 2ª Grande Guerra, do Estado Novo etc., que deixaram suas marcas indiretas no campo literário, sempre relativamente autônomo. O que se vislumbra, porém, é o sentido de transformação e de rupturas.

O engajamento, as pretensões de se compreender, explicar e transformar o país continuaram a se converter em projetos estéticos, em discursos literários e criações artísticas. Neste sentido, os romances de temática rural assumiram formas distintas de engajamento. Talvez, nada mais sintomático desse processo do que o romance Seara Vermelha, de Jorge Amado, publicado justamente em 1946.

Em 1945, o Brasil não apenas mudava de regime político e finalizava um período literário e artístico, mas via-se posto, além disso, coerentemente, mas com alguma brusquidão, diante de uma opção histórica. Tratava-se do grande debate entre, por um lado, os partidários da agricultura, ou seja, da economia colonial, e, por outro lado, os partidários da industrialização (MARTINS, 1978, p. 221).

se representar o mundo rural e os seus habitantes podem ser divididas em três tipos básicos. O primeiro se caracteriza pela afirmação de elementos como força, autenticidade e comunhão com a natureza, bastante enaltecidos na literatura romântica, como em José de Alencar; o segundo tipo marca-se pelo destaque dado aos aspectos negativos e sombrios, como no Jeca de Monteiro Lobato e em Euclides da Cunha; o terceiro tipo pode ser definido a partir de uma abordagem satírica do rural e de seus tipos, o que corresponde ao modernismo (LIMA, 1999). O romance rural após a década de 1940 desenvolve diversos destes elementos, mas também consolida maneiras alternativas de representar o mundo rural.

Dito em outras palavras, a literatura brasileira entre os anos 1940 e 1960 assiste a uma transformação fundamental no que se refere a sua representação do mundo social. Ela se emancipa relativamente de uma recorrência constante a certo naturalismo na construção dos personagens e narrativas, assumindo uma dimensão verdadeiramente histórica na forma de sua composição e, principalmente, ao conteúdo abordado. A “selva”, o “calor”, as “raças”, a “preguiça congênita”, a “inferioridade física da mestiçagem”, a paisagem hostil e outros males associados a um biologismo naturalista se dissolvem, em parte, frente à força de narrativas que buscam captar e traduzir o mundo rural e seus habitantes à luz de aspectos históricos, políticos, sociais, tematizando a estrutura agrária, o latifúndio e a revolução social. O determinismo biofísico ou climático nas construções narrativas é superado, ora por determinismos sociais, ora por econômicos. Mas já são a cultura e a história, e não a natureza ou a biologia, sobretudo, que balizam os romances e os personagens construídos, seja nas narrativas da limitação, ou nas narrativas da

revolução.

Sentimos, depois da Segunda Guerra Mundial, breve mudança no romance social brasileiro. Ao relatar as relações no campo, torna-se menos enfático no conteúdo e, literariamente, mais exigente, isto é, menos espontâneo (LUCAS, 1976, p. 101).

Um exemplo central desta mutação pode ser extraído de uma transição realizada na obra de Monteiro Lobato, escritor cuja construção do Jeca Tatu, figura

na literatura como caso paradigmático do determinismo biofísico na construção de um tipo literário, principalmente nas primeiras décadas do século. Os males que o Jeca Tatu expressava dão lugar a uma visão histórica do atraso e da miséria das populações rurais, empobrecidas não pela “preguiça” congênita, mas em virtude das relações de exploração entre as classes no campo. Neste sentido, Lobato constrói o menos famoso Zé Brasil, personagem que almeja ressignificar a posição do Jeca, conferindo-lhe outra condição social.

A temática central deslocava a explicação dos males do Brasil do trabalhador rural para a atitude das classes dominantes e para a estrutura fundiária responsável pelo nomadismo e pela pauperização do Jeca (LIMA, 1999, p. 150).

Estas mudanças, porém, não significaram a superação de certa herança romântica, expressa em uma estrutura de sentimentos bucólica em relação ao mundo rural. A terra iria continuar a evocar celebrações do passado, da vida pura, autêntica, integrada sustentavelmente com o meio natural.

De qualquer forma, importa dizer que o rural permaneceu, no interior do campo literário, como matéria para as criações literárias, mas num contexto de ampliação da representação do mundo urbano assumida por grande parte da literatura. “O romance social urbano, influenciado por novas técnicas de comunicação, prossegue sua na índole documental numa ampla reportagem das contradições da cidade industrial e capitalista” (LUCAS, 1976, p. 102).

Para demarcar a dimensão de ruptura, grande parte dos historiadores da literatura indica que, após 1945 e até princípios da década de 1960, marca-se uma tendência de mudança (BOSI, 1979; CANDIDO, 1999). Como já apontado, uma dimensão formalizante passa a ser o pólo dominante do campo literário desta geração, sobretudo no campo poético55. Em muitos casos, a originalidade consistia

55 “Costuma-se ver no ano de 1945 o começo de uma nova fase, que coincide com o fim da Segunda

Guerra Mundial e, simbolicamente, a morte de Mário de Andrade. Manifesta-se então uma geração nova, na prosa narrativa, na poesia, na crítica. Esta começa a mostrar os efeitos do ensino superior das letras, que motivou a sistematização da pesquisa, com aumento do número de monografias; de tal modo que a partir de 1960 a crítica dos universitários tornou-se modalidade predominante. Outro gênero que conheceu desenvolvimento notável foi a dramaturgia, estimulada pela renovação por que

em estar up-to-date com a moda e, mesmo a produção internacional.

Neste período, emergem com mais intensidade obras pautadas na descrição psicológica, assim como o espaço urbano foi objeto de um enfoque cada vez maior. A vida nas metrópoles passava a ser um tema fundamental e que surge em inúmeras narrativas. Despontam neste sentido Clarice Lispector, Geraldo Ferraz, Fernando Sabino, Autran Dourado, Carlos Heitor Cony etc. Porém, alguns autores indicam que o próprio regionalismo continuou a ser fonte para a construção de diversas narrativas, como buscamos, indiretamente, apontar nesta pesquisa56.

É preciso compreender, neste sentido, qual era o espaço ocupado pelas criações literárias que optavam por espacializar a trama no mundo rural. Esta temática nas esferas literárias deve ser cotejada com as possíveis correlações entre as mudanças ocorridas na questão agrária do país, nos debates intelectuais e nas formas de apropriação e mesmo de intervenção da literatura nestes processos. É aí que também se revelam os sentidos do romance rural, no seio das mudanças em curso, tanto no plano social mais amplo, como também no interior das esferas literárias.

O romance tematizava o rural, bem como as ciências sociais o faziam. Isto

passou o teatro, a partir de grupos amadores que acabaram por transformar completamente a concepção do espetáculo, com destaque para a direção e a montagem. Dramaturgos de grande valor foram Nelson Rodrigues (1912-1980), cuja peça Vestido de noiva (1943) foi uma verdadeira revolução pela ousadia da composição e da encenação; Jorge Andrade (1922-1984), analista da decadência da velha oligarquia rural; Ariano Suassuna (n. 1927), que tratou à luz de um cristianismo aberto e popular os temas regionais do Nordeste. Simultaneamente, cria-se a nova crítica teatral, na qual se destacam figuras como a de Décio de Almeida Prado (n. 1917), verdadeiro mestre pela segurança analítica e a beleza da escrita, e Sábato Magaldi” (CANDIDO, 1999, p.89).

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Cabe uma nota relevante acerca do regionalismo brasileiro após 1945 a partir da obra de Dalcídio Jurandir, chamado de “o romancista da Amazônia”, pois escrevia do Pará, uma condição que lhe lançava em uma posição dominada do campo literário, centrado no mercado de bens simbólicos que se mantinha concentrado no Rio e São Paulo. Sua obra descreve com intensidade a ilha de Marajó. Destacam-se entre suas criações Marajó (1947), Três casas e um rio (1956), Linha de parque (1958) e Passagem dos Inocentes (1960). Ressaltar a obra de Jurandir nos conduz a uma reflexão acerca das distinções entre Amazônia e mundo rural. Estas construções topográficas carregam diferenças significativas. O rural existe na Amazônia e a própria natureza define muito do mundo rural, sobretudo antes de sua conversão em espaço agrário. Mas a noção de Amazônia acaba por se apropriar de uma definição distinta daquela que delineia o rural/sertão. Em outros termos, é possível pensar os romances amazônidas focados na natureza como romances regionalistas, mas é possível pensar neles como obras de temática rural? Nas metáforas sobre o país, onde terminam as fronteiras do sertão/rural e começam as da Amazônia? Tais questões são centrais para as reflexões que pensam as metáforas do espaço e da narrativa. A obra de Dalcídio Jurandir, Inglês de Souza, Marcio de Souza, Ferreira de Castro, entre outros, é fundamental para desenvolver tais reflexões.

sugere a forte circulação das idéias entre espaços culturais diferenciados e entre os processos sociais e sua formalização estética. As narrativas da limitação, da

revolução e da experimentação são, concomitantemente, tributárias e produtoras

destas dinâmicas.

Em síntese, depois da Segunda Guerra Mundial até 1964, quando o golpe político fomenta ainda mais a literatura de protesto (SCHWARZ, 2009), ocorre uma paulatina mudança na tradição literária brasileira rural.

Permaneceu a tendência documental para a descrição da vida no campo, mas amenizada pelo destaque dado à sociedade, mais do que à natureza ou à predestinação divina, como já vimos mais atrás. As obras dessa corrente documental, rural, apresentam-se literariamente mais bem cuidadas, dotadas de menor oralidade e de maior apuro estético (LUCAS, 1976, p. 106).

Além dos romances analisados, muitos outros consagraram o mundo rural como espaço para a ambientação de narrativas. Basta lembrar a obra monumental de Guimarães Rosa que, entre as décadas de 1940 e 1960, publica suas principais criações (Sagarana, Corpo de Baile, Grande Sertão: veredas), onde um rural/sertão sintetiza inúmeras questões e inovações estéticas, que reconfigurariam o campo literário então. A obra literária de Guimarães Rosa, seja no gênero conto ou no romance, escapa à classificação por nós proposta, exigindo uma tipologia alternativa para sua compreensão, afinal comporta representações bastante peculiares do mundo rural, do falar sertanejo, da presença da política nas letras e que por isso se esquivam à nossa análise57. Mas é relevante apontar como sua literatura consagra e

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Como já apontado, as classificações de narrativas da limitação e narrativas da revolução não esgotam, de forma alguma, as possibilidades de construções explicativas para uma sociologia da literatura daquele período. Outra tipologia possível para compreender muitas obras de temática rural publicadas naquele contexto seria a de narrativas da experimentação. Estas construções optavam por traduzir o rural a partir de fortes elementos alegóricos, metafóricos e com o recurso ao experimentalismo e à inovação lingüística, construindo imagens metafóricas das condições sociais e ressignificavam a própria língua, aproximando-se, assim, dos pólos mais em voga da literatura vanguardista do período. A característica central destas narrativas, é a referência alegórica ao mundo social, como fica explícito no romance Grande sertão: veredas (1956). A experimentação formal radical realizada por Guimarães Rosa conduz a uma complexização do discurso literário e, consequentemente, da formalização dos processos sociais no rural/sertão, que não estão ausentes do conteúdo, mas convertidos em alegorias (BOLLE, 2004), compreensíveis, por sua vez, a luz de transformações do campo literário e das transformações que ele impõe. O rural/sertão é apresentado

reafirma a temática rural que, em conjunto com diversas outras obras, se mantém com forte presença no campo literário que se diferenciava no Brasil e que dividia sua função de produtora de uma consciência com outras formas discursivas.

Ao examinarmos os romances de temática rural aqui selecionados, as questões estéticas, políticas, intelectuais e sociais daquele contexto pode ser melhor compreendidas. Por outro lado, a presença destas temáticas no interior das obras também pode se revelar com mais ênfase. É isso que passamos a fazer nos capítulos seguintes.

como espaço do mítico, do universal, das lendas e do misticismo, todos funcionando como metáforas não imunes ao bucolismo, haja vista que a própria estratégia de reminiscências (Riobaldo relembrando dos tempos em que era cangaceiro) com a qual a narrativa é construída aponta para isso.

CAPÍTULO 3