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3.5 – Ironia e decadência no mundo rural de O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho

As formas literárias de registrar a limitação não ocorrem apenas por meio da construção de ambientes violentos, sombrios e niilistas. A ironia e mesmo o humor também são mobilizados na representação do rural nas narrativas da limitação. É que a ironia, por vezes, denota o olhar que desnuda a decadência e a dissolução de um mundo social frente às novas formas de organizar a vida. Neste sentido, em 1964 é lançado o hoje clássico O coronel e o lobisomem, de João Cândido de Carvalho67.

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O autor José Cândido de Carvalho foi jornalista, contista e romancista. Nasceu em Campos, RJ, em 1914, e faleceu em Niterói, RJ, em 1989. Era filho de lavradores portugueses que se fixaram em Campos de Goitacazes. Aos oito anos, por doença do pai, foi morar algum tempo no Rio de Janeiro, quando trabalhou, como estafeta, na Exposição Internacional de 22. Logo voltou a Campos, onde continuou a estudar em escolas públicas. Nas férias trabalhava como ajudante de farmacêutico, cobrador de uma firma de aguardente e trabalhador de uma refinaria de açúcar. Após 1930, José Cândido trocou o comércio pelo jornal. Iniciou a atividade de jornalista na revisão de O Liberal. Entre 1930 e 1939, exerceu funções de redator e colaborador em diversos periódicos de Campos, como a

Folha do Comércio, O Dia, onde passou a comentar a política internacional, e ainda a Gazeta do Povo

e o Monitor Campista. Era admirador de Rachel de Queiroz e José Lins do Rego. Em 1936 publica o romance Olha para o céu, Frederico!, pela Editora Vecchi, na coleção "Novos Autores Brasileiros". Concluiu seus preparatórios no Liceu de Humanidades de Campos e veio conquistar o diploma de bacharel de Direito, em 1937, pela Faculdade em Direito do Rio de Janeiro. Passou a morar no Rio, em Santa Teresa, entrando para a redação de A Noite, um jornal de quatro edições diárias. Como funcionário público, conseguiu um cargo de redator no Departamento Nacional do Café, mas ali ficou por pouco tempo. Em 1942, Amaral Peixoto, então interventor no Estado do Rio, convidou-o para trabalhar em Niterói, onde vai dirigir O Estado, um dos grandes diários fluminenses, e onde passa a residir. Com o desaparecimento de A Noite, em 1957, vai chefiar o copidesque de O Cruzeiro e dirigir

A obra reúne diversas inovações formais e um forte senso de ironia para apresentar um mundo rural de limitação e que entra em declínio diante dos processos de modernização e racionalização. Ela é uma narrativa da limitação que mobiliza referências formais da literatura fantástica.

O personagem central da narrativa é o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, que descende de uma família de proprietários do norte fluminense. Após a morte de seu avô, ele herda muitas terras, mas não tem qualquer preparo para isso, pois queimou sua existência até “trinta e poucos anos” na farra e vida mansa. O que ele sabe é mandar. É por meio deste personagem e da descrição de sua incapacidade de se integrar aos espaços sociais, que a obra vai despontando os efeitos do processo de transição do mundo rural para o urbano. O que revela é a decadência de um representante tardio de uma aristocracia rural do norte fluminense, fatalmente condenado ao desaparecimento.

Ponciano é a alegoria da dissolução. O caráter hiperbólico por meio do qual ele se apresenta acaba por cumprir o papel de ampliar a lente que revela sua decadência e a do mundo que ele mitifica com seus casos. “A bem dizer, sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e faço alarde” (CL68, p. 03).

a edição internacional da revista. Somente 25 anos depois de ter publicado o primeiro romance, José Cândido publica, em 1964, pela Empresa Editora de O Cruzeiro, o romance O coronel e o lobisomem, que teve grande sucesso. A segunda edição saiu também pela empresa de O Cruzeiro. A partir de 1970, a Editora José Olympio passou a reeditar o romance, que em 1996 atingiu a 41ª edição. Não demorou a ser publicado também em Portugal e ser traduzido para o francês e o espanhol. Obteve o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, o Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira, e o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, do PEN Clube do Brasil. Em 1970, José Cândido de Carvalho foi diretor da Rádio Roquette-Pinto, onde se manteve até 74, quando assumiu a direção do Serviço de Radiodifusão Educativa do MEC. Em 75, foi eleito presidente do Conselho Estadual de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. De 1976 a 1981, foi presidente da Fundação Nacional de Arte (Funarte), cargo para o qual foi convidado por uma de suas maiores admirações políticas, o ministro Nei Braga. De 1982 a 1983 foi presidente do Instituto Municipal de Cultura do Rio de Janeiro (Rioarte). Suas obras incluem: Olha para o céu, Frederico!, romance (1939); O coronel e o lobisomem, romance (1964); Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, (1970); Um ninho de mafagafos cheio de

mafagafinhos (1972); Ninguém mata o arco-íris, crônicas (1972); Manequinho e o anjo de procissão,

contos (1974); Notas de viagem ao Rio Negro (1983). Passou a integrar a Academia Brasileira de Letras em 1974, na sucessão da cadeira de Cassiano Ricardo (fonte: textos e informações extraídos do portal eletrônico da Academia Brasileira de Letras: www.academia.org.br).

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Para fins de citação utilizamos a abreviatura CL para nos referirmos a 38ª edição de O coronel e o

lobisomem, publicada em 1987 pela editora José Olympio. A obra segue com o pomposo subtítulo:

A obra é narrada em primeira pessoa pelo Coronel, que vai relatando os casos que se passam em sua vida. O personagem é cindido entre o mundo rural e a vida urbana. Acaba por não se adequar completamente a nenhuma delas. O personagem-narrador é uma figura de tragédia e como tal não pode resistir ao destino que a ele é reservado.

O eu do narrador-personagem exaspera uma subjetividade que eclipsa, em suas feições expansivas, qualquer dos demais personagens. Sob sua ótica, o pequeno universo social do norte fluminense, entre a zona rural e urbana de Campos vai sendo projetado. Em seu prisma, o universo social que o cerca lhe rende homenagem e submissão, sobretudo no meio rural. “Gente que tem mando não pode dar parte de fraco no lidar com o povo dos ermos. Tomei conta de Sobradinho numa segunda-feira e no mesmo dia fiz sentir as imposições de dono” (CL, p. 18).

A escrita de José Cândido é saborosamente irônica e humorada, o que pode inicialmente projetar uma celebração da figura caricata do Coronel. Mas é a partir desta forma que a decadência das grandes fazendas vai sendo revelada na figura de um sujeito bonachão, dotado de um senso inigualável de se lançar como protagonista de todas as histórias que relata. É a crença do personagem em sua imponência e aristocracia rural que eleva esse caráter. Quando, por exemplo, trava briga com coletor de imposto, representante do Estado, arma seus parcos capangas e circula pela cidade para causar impressão. Sob sua perspectiva, tinha mobilizado um exército. Na prática, um punhado de homens cheio de medos.

No prefácio da obra de José Cândido, a escritora Raquel de Queiroz, uma das autoras consagradas da geração “regionalista de 30”, celebra o trabalho de valorização da literatura rural que o romancista leva a cabo, quando a temática parecia ter sido excomungada do campo literário.

Dá vontade de arranjar um alto-falante e sair por essas ruas proclamando as excelências incomparáveis do importantíssimo romancista brasileiro, José Cândido de Carvalho. E solenemente ratifico o registro expedido em 1964: com O coronel e o lobisomem

São Salvador de Campos dos Goitacases”. A obra é dedicada a Herberto Sales, Aurélio Buarque de

José Cândido deu vida nova ao regionalismo brasileiro. Até então parecia que alguém querendo apresentar o homem do interior, sua vida, seus amores, suas lendas e problemas, teria de inventar fórmula diferente, porque o velho romance regional, o velho conto, supostamente não tinham mais nada para dar... E vem agora José Cândido de Carvalho provar que, havendo crânio, talento, boa boca, nenhum assunto está esgotado ou morto (Raquel de Queiros, in CL, p xiv).

De fato, é o mundo rural que informa o Coronel em seus modos, gestos e palavras. A projeção de um narrador-personagem dotado de uma elevada estatura, amplas barbas ruivas e um vozeirão que “faz tremer” a todos, são demarcadores que, antes de cumprirem o papel de exaltarem o poderio dos grandes proprietários rurais, apontam para a crônica de sua decadência. De fato, “o trabalho que Ponciano mais apreciava era o andar na poeira de um bom rabo-de-saia, serviço que ainda hoje é de minha especial inclinação” (CL, p. 7).

As características do Coronel cumprem um papel de apontar a dissolução pelo contraste: a amplitude de sua figura caminha na contramão do mundo que o sustenta. “Um barbadão vermelhão como eu, aparelhado de quase dois metros” (CL, p. 22).

A obra registra os modos de falar do mundo rural-sertanejo. O narrador- personagem constrói o seu discurso a partir desta linguagem e da inserção de formas rebuscadas que o Coronel incorporou nos tempos em que trabalhou em Fórum e frequentou colégio de frei. Daí ressalta-se que a oralidade é o instrumento de comunicação naquelas terras. O Coronel manipula como ninguém esta arte. Aos poucos, porém, isto vai se convertendo em uma das motivações do seu fracasso.

Quando criança, o Coronel é enviado para a cidade, pois foi “pegado em delito de sem-vergonhismo em campo de pitangueiras” (CL, p. 4) e era preciso ser ilustrado. “Anos passei no bem-bom da Rua da Jaca. A prima na devoção dos oratórios e eu na vadiagem, em enganos de que esmerava no aprendizado das letras” (CL, p. 5). O único aprendizado prático que realmente acumula é a retórica, afinal precisava apenas mandar.

Neste ritmo o Coronel, enrola a infância e a adolescência. Quando seu avô morre, Ponciano assume suas propriedades e passa a viver nas fazendas, onde

acumula uma série de causos e aventuras com lobisomens, cobras gigantescas, mulas sem cabeça, sereias e dragões. “Acabaram meus dias de vadiagem. Tomei respeito, não só pela herança de boi e pasto, como pela patente de coronel que em seguimento recebi” (CL, p. 16). Muitas pendengas e aventuras preenchem a vida do aristocrata fazendeiro naquele mundo rural “mitologizado”. “Espalharam, mais tarde, que o coronel do Sobradinho abusou e desabusou das partes de cima da sereia, que as debaixo, escama só, nunca tiveram serventia” (CL, p. 107). Ou da serpente enorme que ele matou: “a danosa devia ter vindo das águas do mar salgado [...]. Morta a bicha, dois dias e duas noites o povo de Santinho Belo não fez outro trabalho que não puxar rolete de cobra do seu fundo covil” (CL, p. 127). No resgate dos casos e histórias, a obra mobiliza referências folclóricas e sustenta uma visão nacional- popular da cultura.

Em todas as demandas o Coronel se revela esmerado e conhecedor das artimanhas como ninguém. Nestes relatos míticos, a obra vai revelando um rural fantasioso, folclórico, onde o misticismo e um pensamento mágico dominam as relações sociais. Um mundo encantado, pré-capitalista oferece ressonância para as histórias do coronel. Esta é a feição dominante da primeira parte da narrativa, passada no mundo rural. Já na parte em que viveu no mundo urbano, travando relações de comércio, não existia mais espaço para tais narrativas. Aí elas desaparecem das conversas do coronel.

Ponciano se orgulha dos conhecimentos militares que possui das artes e técnicas de guerra. É por meio deles que descreve as contendas com os seres mitológicos que habitam um mundo rural perdido entre o litoral e as montanhas. A coragem é aí um valor projetado com alarde por Ponciano. O efeito irônico desta soberba é que nos momentos que a coragem e a ação eram efetivamente demandadas, o coronel só as adota quando se vê livre dos perigos. Ponciano é, antes de tudo, um personagem que se constrói como tal. Ele é um romancista de sua própria existência. “Outra vez, em prazo de pouco mais de quinzena, encontrava o coronel onça pela frente [...]. De repente, vi minha pessoa num brejal, a cem braças do recinto da onça, nadando em minha infância nado de cachorrinho” (CL, p. 60).

O Coronel se gaba ainda ser conhecedor inigualável das arquiteturas femininas, apesar de ser, em quase todas as suas investidas ao longo da obra, frustrado. Somente conquista as mulheres que pode pagar, do Molin Rouge. Todas as suas investidas amorosas com o intuito de “lançar herdeiro” e firmar casamento são fracassadas.

Exemplo disso é sua primeira investida. Ao se apaixonar pela professora Isabel, sua primeira investida amorosa, percebe que seu modo rústico não consegue seduzir a professora letrada. Na conversa que trava com Isabel, tentando conquistar a professora, se revela a limitação do Coronel:

- Vossa Mercê já foi mordida de cobra?

A moça ria desses e outros despautérios, que outra coisa não podia fazer. Uma noite, estando em gozo de cadeira de balanço no alpendre, um vagalume acendeu e apagou a brasa do rabo bem junto dela. Logo aproveitei para soltar bobagem:

- Dona Isabel já viu a pessoa de um boitatá?

Não viu nem acreditava em invencionices do povo bronco dos ermos. Pois eu, em vez de meter o boitatá no saco, ainda tive o desplante de apresentar aos olhos de água da moça, todo apetrechado e desbatizado, um lobisomem que conheci em dias recuados da infância.

A mestra de letras, no vaivém da cadeira de balanço, aturou tudo dentro de bons ensinamentos da educação. A certa altura, eu mesmo achei que era lobisomem demais. Mudei de toada, falei do tempo: Vai cair água. O sul está puxando.

Só isso é que saía da minha ideia, bobajada, tolice de pegador de rês (CL, p. 71).

O Coronel Ponciano de Azeredo Furtado impera nos “pastos e terras de botina”. Não é dotado dos requisitos que a “civilização” exige. O amor romântico não constitui uma técnica que ele domina. Como os casamentos não podiam mais ser simplesmente encomendados, ele vê seus desejos matrimoniais se diluírem.

Após enfrentar dragões, sereias, lobisomens, onças, mulas sem cabeça e fantasmas, o Coronel resolve se mudar para a cidade de Campos, pois, “em verdade, o Sobradinho enferrujava a libertinagem de qualquer cristão” (CL, p. 170).

A ida de Ponciano para o mundo urbano inaugura a segunda parte do romance. Na cidade o Coronel é seduzido pelos encantos da vida urbana. “Tomei

gosto pelas vadiagens da Rua Direita” (CL, p. 185). Aí ele é envolvido inicialmente com o comércio de açúcar. Em princípio, refuga a idéia: “sou homem de pasto, sem preparo de comércio” (CL, p. 191). Mas resolve investir e, rapidamente, enriquece fazendo transações de compra e venda do produto.

Sua projeção o aproxima de Pernambuco Nogueira e de sua esposa Dona Esmeraldina. É por meio deles que Ponciano é inserido no mundo “sofisticado” da cidade. “A mulher dele, professora jubilada mas ainda no gozo de um bom par de platibandas, apreciava conversar comigo” (CL, p. 185).

As conversas e modos do mundo rural são postas em suspenso para o novo papel que o coronel incorpora. O processo de fincar relações com o mundo urbano altera o Coronel. Casos míticos, histórias de curral e conversas de compra de boi e briga de galo, que antes tanto o agradavam, passam a ser repelidas. O Coronel passa a incorporar o novo ethos urbano em sua figura. Ponciano deixa de ser um fazendeiro e passa, no mundo urbano, a ser um capitalista.

Subi demais. No dobrar do primeiro ano de compra e venda eu tinha sacudido pela orelha as rotinas do comércio [...].

- Nesse andar o coronel acaba dono de usina.

Na verdade, os ganhos da firma inchavam nas burras do Banco da Província. Dos pastos e labutas de rês eu nem queria ouvir falar. Quem quisesse presenciar este coronel mordido de cobra era relembrar tarefa de curral (CL, p. 204).

A ostentação e os gastos exagerados encantam Ponciano, que passa a se enxergar como membro das elites urbanas e forçando para compartilhar seus signos (cafés, teatros, jornais). As fortunas que ganha especulando a compra e venda de açúcar bancam suas estripulias. “Digo que peguei certo acanhamento diante de tamanha ostentação, mas no andar da semana acostumei os sapatos e o assento aos confortos do escritório. E era assim de lorde que eu recebia as partes” (CL, p. 199).

A riqueza de Ponciano faz com que seja convencido a colaborar com a campanha para deputado de Pernambuco Nogueira, o advogado que o havia inserido no mundo urbano. Mas é, de fato, a paixão que nutre pela esposa deste que

motiva o coronel. Ele passa a realizar todos os caprichos de Dona Esmeraldina, inclusive empregar como administrador de uma de suas fazendas um primo da moça, Baltasar da Cunha.

O primo de Dona Esmeraldina é engenheiro e resolve modernizar as terras do coronel. “Seu dedinho embonecado apontou as melhorias que ia fazer e não fazer na herança de Simeão. Falou em represamentos dos corgos, sangria dos banhados, dois paióis e mais água corrente dentro de casa” (CL, p. 221). Os intentos faústicos de Baltasar custam muito ao coronel, que cede imaginando agradar sua paixão. Ainda por este motivo, Ponciano investe muito dinheiro na campanha de Pernambuco Nogueira, que acaba derrotado. Estes movimentos armavam as circunstâncias da decadência do coronel. É no contato e agrados para a família Nogueira que o coronel passa a afundar sua fortuna adquirida no mundo urbano.

Na sustentação dessa grandeza, tive de abrir as burras do Banco da Província, raspar meus guardados em dinheiro. Baltasar da Cunha levou vinte contos de réis e o dobro queimei na política de Pernambuco Nogueira, fora o brilhantão de ovo com que municiei o dedo de Dona Esmeraldina (CL, p. 225).

Ponciano de Azeredo Furtado não consegue conquistar Esmeraldina. Não bastasse isso, uma enorme queda nos preços do açúcar e o ímpeto gastador do coronel acabam por levá-lo à falência. Ao mesmo tempo, Pernambuco Nogueira se afasta dele e, junto com Baltasar, aciona a justiça para tirar dinheiro do antigo amigo.

Neste momento de falência e decadência, o coronel resgata sua fama dos currais e o coronel do mundo rural vai aos poucos diluindo “as roupas da cidade”. “De repente, voltei a falar na voz de curral que as educações e finuras da cidade tinham relegado como coisa sem préstimo. Era cada grito, cada destampatório” (CL, p. 268). O descendente da aristocracia rural não mais consegue se ajustar ao mundo urbano. Ao sumir a riqueza que comprava as relações na cidade, desaparecem também as amizades novas e o coronel só encontra apoio e solidariedade nos amigos antigos, de pasto. O urbano acaba por aparecer em O coronel e o lobisomem como o lugar racional, do cálculo e das amizades superficiais. No rural subsistem alguns poucos resquícios de autenticidade.

Por fim, o coronel acaba falido e empenhorando os bens. Resta apenas a velha fazenda de Sobradinho, abandonada, que é para onde tem que voltar. A questão é que o mundo de onde emergira estava dissolvido e abandonado.

Por causa de taxas e dízimos fui obrigado a voltar ao Sobradinho. Já não era sem tempo. As educações da cidade não comportavam mais o coronel do mato que eu era. Meus berros de pastos varavam longe, metiam medo. Ponciano de Azeredo Furtado exagerava tudo (CL, p. 290).

Os novos amigos da cidade desaparecem e os velhos companheiros do mundo rural são os únicos que persistem para celebrar as façanhas reais e imaginárias do coronel. É no desfecho da obra, quando o coronel retorna para um mundo que não mais existe, para uma riqueza que se dissolveu, que se revela mais intensamente a decadência de uma forma de poder do mundo rural e dos agentes que a encampam. A loucura que aparentemente toma o coronel reforça a trágica figura que ele expressa. Em sua dissolução, ele se apega à “simplicidade da vida rural” e à imagem de imponência que possui de sua própria figura.

No trem, sabiá-laranjeira do lado, como se passageiro fosse, dei balanço aos meus salvados. A bem falar, voltava o neto de Simeão de bolso vazio, mas enricado de muitas e boas experiências. Sujeito nascido como eu, altão, de mais de uma nuvem encalhar no meu cabelo, não podia ficar arreliado com as picadas dos gongolos e das minhocas cá de baixo. No mais, não era de bolso vazio quem possuía um passarinho como o que herdei do falecido João Fonseca. Muitas outras gentes tinham baús de brilhantes e brilhantins, mas cantoria de veludo só quem tinha mesmo era o coronel Ponciano, na gargantinha do seu sabiá laranjeira (CL, p. 291).

O coronel morre logo após chegar à antiga mansão de Sobradinho e reencontrar velhos empregados com os quais compartilhava aventuras e histórias. O mundo que a antiga fazenda expressava e a imponência que guardava se diluem no