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4.1 Seara Vermelha: a revolução entre os caminhos rurais

Cai, orvalho do sangue do escravo, Cai, orvalho na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz”.

Castro Alves E pela madrugada, quando as sombras ainda envolviam os campos úmidos de orvalho, e no ar se elevava aquele cheiro poderoso de terra, Neném partiu para a caatinga pelo mesmo caminho seguido um dia por Jerônimo e sua família. Os brotos de dor e de revolta cresciam naquela seara vermelha de sangue e fome, era chegado o tempo da colheita.

Seara Vermelha, Jorge Amado

Essas coisas se passaram no sertão, onde a fome cria bandidos e santos.

Seara Vermelha, Jorge Amado

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A conformação da criação literária aos desígnios do engajamento político nem sempre resultou em uma fatura positiva para a narrativa. Em alguns casos, o discurso da política coloniza o texto. É evidente que tal condição em particular não dissolve as possibilidades de êxito da criação literária. Tais questões podem assumir uma tonalidade ainda mais problemática quando a politização das letras emerge fora do espaço literário e de suas formas. Este parece ser o caso do romance Eles possuirão a terra, de José Ortiz, publicado em 1955, entre outros romances que caricaturam o mundo rural com o intuito de instrumentalizá-lo politicamente. Outros romances também levam a cabo a questão rural sob a ótica da denúncia e da revolução. Por exemplo:

Vento Nordeste (1957), de Permínio Asfora; O caminho das trombas (1966), de José Godoy

Garcia; Cangerão (1946), de Emil Farhat, entre outros que poderiam ser proficuamente analisados a partir da tipologia de narrativas da limita ção.

O engajamento político como inerente ao modus operandi na literatura é fato que implica evidentemente em uma pluralidade de formas do fazer literário. O rural como objeto narrativo possui graus distintos de politização, oscilando entre a constatação do patriarcalismo e do tradicionalismo na política local e certo prognóstico reformista, como bem denota Vila dos Confins, de Mário Palmério. Ele comporta também os elementos e os agentes da revolução, como indica a narrativa de Maria Alice, em Os Posseiros. Na obra de Jorge Amado, a ambientação é vasta e o rural é, sobretudo, um dos espaços marcados pela exploração e a luta contra ela.

Seara Vermelha70, publicado em 1946, é um romance feito de múltiplos

personagens e histórias que se definem a partir da conexão que existe entre as diversas narrativas e o mundo sertanejo-rural, tomado pela miséria e pela violência, mas que funciona como fermento para a revolta. A vida dos personagens é umbilicalmente ligada ao rural/sertão. O romance se concentra na família de Jerônimo, sua esposa Jacundina e seus diversos parentes. É dessa família que emergem os personagens que seguirão caminhos distintos e que incorporam os múltiplos destinos reservados para os pobres da terra, segundo o narrador de Seara

Vermelha.

Os intentos do romance, em sua parte inicial, são documentar os processos de produção de migrantes nordestinos, do cangaço, do coronelismo e do messianismo, todos vinculados à miséria rural produzida pelo latifúndio. Esses grupos sociais se nutrem e irrompem na narrativa de Amado como produtos da miséria material e de seus efeitos diluidores. Como efeito desta condição emerge a violência brutal e o misticismo, que só podem ser substituídos pela politização comunista, como o caminho emancipador, tal como revelará a narrativa em seu desfecho “orientador”.

Nesse sentido, Seara Vermelha ilustra uma vertente do romance brasileiro que

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A edição utilizada para análise é a 30ª, publicada pela Editora Record. Para fins de agilizar a citação de trechos do romance utilizamos a abreviatura SV para nos referirmos a esta edição de Seara Vermelha.

ocuparia posição de destaque no campo literário a partir de meados da década de 40. O romance incorpora o engajamento socialista como horizonte e busca orientar para tal finalidade os rumos da narrativa. Sintomático disto é que a obra é dedicada ao líder comunista brasileiro Luis Carlos Prestes, “amigo dos camponeses” e também para outra liderança comunista, João Amazonas. Por meio da obra, Jorge Amado revela uma adesão explícita ao PCB.

A tonalidade política e de denúncia que o romance busca desenvolver é reforçada nas três citações que antecedem a narrativa. Uma de F. Engels: “a liberdade é o conhecimento da necessidade”. Somada a esta, um poema de Castro Alves e uma afirmativa de Luís Carlos Prestes: “está no latifúndio, na má distribuição da propriedade territorial, no monopólio da terra, a causa fundamental do atraso, da miséria e da ignorância do nosso povo”. Neste ponto, a obra revela também uma interpretação dominante no discurso do PCB: a revolução é nacional-democrática, do “povo” contra o “atraso” do latifúndio, não dos trabalhadores contra o capitalismo.

A adesão ao PCB cumpre também uma função de mão dupla. Em certa medida, não se trata apenas de uma relação em que o artista subordinava sua criação aos ditames do partido. Existia uma dinâmica de reciprocidade, de trocas simbólicas entre os agentes: o autor emprestava prestígio e o Partido permitia as relações sociais. Isto foi comum na relação entre comunismo e artistas no Brasil.

Jorge Amado teve sua capacidade e talento potencializados pela adesão ao PCB, cuja rede de contatos internacionais facilitou a publicação de seus romances em países nos quatro cantos do mundo e lhe deu acesso a uma ampla gama de relações com artistas de todos os países [...]. As portas também se abriam para receber uma série de premiações internacionais, notadamente nos países comunistas, como o então prestigioso Prêmio Stálin Internacional da Paz, que amado ganhou em 1951.

Por sua vez, Jorge Amado emprestava seu prestígio de escritor ao PCB – tanto que foi eleito deputado pelo Partido na Constituinte de 1946. Nos maus momentos que se seguiram à proibição do PCB no fim da década de 1940, Amado encontraria abrigo no exílio, onde a rede de relações comunistas o acolheu por cerca de cinco anos (RIDENTI, 2008, p. 177).