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O RURAL E AS DINÂMICAS POLÍTICAS E CULTURAIS ENTRE 1945 E

O conhecimento do contexto sócio-histórico de uma obra ou gênero literário não é, portanto, um “extra” a ser mantido à margem da análise retórica. Em geral, quer saiba ou não, este conhecimento constitui o ponto de partida da própria interpretação, fornecendo-lhe a hipótese inicial sem a qual os mecanismos retóricos seriam difíceis de entender ou, na verdade, nos diriam pouquíssimo.

Franco Moretti, 2007

A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Ela criou cidades enormes, aumentou o número da população urbana, em face da rural, em alta escala e, assim, arrancou do idiotismo da vida rural uma parcela significativa da população. Da mesma forma como torna o campo dependente da cidade, ela torna os países bárbaros e semibárbaros dependentes dos civilizados, os povos agrários dependentes dos povos burgueses, o Oriente dependente do Ocidente.

Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista

O período da história brasileira compreendido entre meados da década de 1940 e o golpe militar de 1964 concentra inúmeros processos de mutação, que são expressivos do modelo de modernização conservadora que se verifica no país. A tendência de consolidação do padrão urbano-industrial confluiu em fortes alterações no mundo rural-agrário. No plano político, a incipiente experiência democrática trouxe diversas mobilizações sociais e fomentou disputas político-ideológicas que ganham contornos ainda mais dicotômicos. Estas condições têm fortes relações com as

esferas intelectuais e culturais, que também vivem mudanças importantes.

Nesse contexto, o mercado de bens simbólicos passa por significativas ampliações (ORTIZ, 1985). No campo literário, evidencia-se a prevalência cada vez maior das narrativas com foco no mundo urbano e do experimentalismo na poesia (MOISÉS, 1995). Cabe apontar a participação destacada dos intelectuais, artistas e escritores nestas atividades, como construtores das imagens e formas de interpretar os processos, assim como se localizando politicamente frente às transformações. Além disso, o campo intelectual pós-1945 amplia os espaços de participação e atuação, fato que deriva da maior diferenciação e institucionalização das esferas intelectuais, a partir da emergência de jornais, revistas, partidos políticos, institutos de pesquisa, Universidades.

Neste sentido, a presença da universidade também passa aos poucos a aprofundar os processos de autonomização e diferenciação das profissões intelectuais (MICELI, 2001b). Nas décadas anteriores, o trânsito entre a literatura, o jornalismo e a política era comum a muitos dos escritores brasileiros. Tal situação não desapareceu, mas passou a contar com novos concorrentes na produção de uma auto-consciência nacional. Cada vez mais a “interpretação” cabia ao discurso legítimo da academia, em oposição ao “ensaismo”, ou à tradição literária do pensamento nas décadas anteriores.

A diferenciação das atividades intelectuais não extraiu do campo literário a noção de engajamento ou a perspectiva de compor uma arte social. A situação do país lançava todos na busca de explicações e alternativas para a sociedade brasileira. Diversos segmentos compartilhavam o senso de missão, por vezes (auto)atribuído, no sentido de provocar mudanças e apontar caminhos, ou denunciar. Neste momento histórico os produtores de bens simbólicos das mais diversas orientações e esferas se deparavam com uma realidade objetiva desigual e marcada por tensões que ganhavam certa projeção no interregno ditatorial, sobretudo em função dos alguns movimentos políticos urbanos e agrários que despontavam. Os escritores e intelectuais conviviam dialeticamente com a consciência amena e a trágica de nosso atraso, parafraseando a célebre fórmula de Antonio Candido.

transformações políticas e econômicas incompreensíveis sem o entendimento das dimensões culturais dos processos. Estas, por sua vez, tornam-se inaudíveis e deslocadas quando não localizadas no conjunto das modificações que se projetavam na sociedade brasileira. O próprio rural (ou rurais) narrado em romances é parte deste processo, haja vista compor, por um lado, o pólo visto como não dinâmico das transformações, pois era entendido como o lócus do atraso, não apenas na esfera literária, mas em outros espaços como o cinema (TOLENTINO, 2001), ou também como ponto de onde poderia emergir a transformação social.

As formas dualistas de interpretar o país são recorrentes em diversos momentos de nossa história intelectual (LIMA, 1999; MAIA, 2008). A delimitação de pólos usada no pensamento da época sobre desenvolvimento, por exemplo, buscava estabelecer distinções entre níveis de atraso e progresso, ou melhor, entre “graus” de absorção das práticas e valores atribuídos à modernidade capitalista e os resquícios do passado colonial que permaneciam em mentalidades e grupos. Tal chave interpretativa irrompia em vários campos de produção discursiva, sobretudo na literatura e nas ciências sociais. Litoral e sertão, centro e periferia, cidade e campo são os conteúdos que a concepção dualista assume para produzir interpretações sobre a formação histórica do país (LIMA, 1999).33 Em diversos deles, é evidente e significativo que os espaços associados ao rural irrompem como os portadores do atraso. Mesmo quando é tomado numa romântica idealização bucólica, algo que indicaria uma visão positiva inicialmente, o rural é descrito como espaço de um mundo em vias de superação.

As questões acima elencadas ganham vulto nos processos de criação intelectual entre as décadas de 40 e 60, em virtude da radicalização do processo de urbanização do país e da projeção da questão agrária, fruto das reconfigurações do capital e dos movimentos sociais que emergem (MEDEIROS, 1989).

O momento histórico permitiu reflexões com eixo nas mobilizações sociais que colocavam diferentes reivindicações e permitiam a

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Na sociologia, tais categorizações sócio-históricas podem ser vislumbradas em clássicos como

Comunidade e Sociedade, de Tönnies; Tradição e Modernidade, em Weber; solidariedade mecânica e

emergência de novos atores políticos no quadro de debates. Esse rumo das idéias tem a ver, evidentemente, com a emergência de novas forças sociais, ou mais precisamente com seu rearranjo político (BASTOS, 2008, p. 28).

Para apreender tais dinâmicas, inicialmente propomos, amparados em bibliografia histórica e das ciências sociais, uma breve (re)apresentação das condições econômicas, políticas e sociais, de maneira geral, que caracterizaram o período compreendido entre a queda do primeiro governo Vargas, até as vésperas do golpe militar de 196434, buscando destacar a posição do mundo rural nos processos de transformação política. Na seqüência, realizamos uma incursão sobre as discussões travadas acerca da questão agrária no Brasil, concentrando-nos no debate das ciências sociais e na política. Por fim, delinearemos as conformações gerais do campo literário, buscando mapear genericamente as suas formas de diferenciação, marcos, temas predominantes etc., apontado a posição reservada ao mundo rural.

Este movimento nos parece interessante por permitir uma captação das experiências sociais correlacionadas com as dinâmicas de alteração da sociedade brasileira. Afinal, a presença do rural na literatura, sob formas e aspectos variados, é parte do processo de interpretação e de constituição desta sociedade. Além disso, é fundamental compreender as configurações da estrutura mais ampla onde se insere o campo literário, buscando compreender as diferenças, apropriações e distinções entre o mundo social e sua particularização na sistematização literária.

Cabe ressaltar que tal esforço de apreensão geral não resume a representação do rural nas obras, como uma sequência de fatos que tensiona do “exterior” para o “interior”. Ele apenas informa o tipo de leitura que optamos por efetivar.

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Tal corte não significa que a produção cultural e literária após 1964 tenha entrado em um período de trevas. Ao contrário. Segundo Roberto Schwarz, após o golpe, se instala o terror e a hegemonia política de direita, mas no campo da produção cultural é a esquerda que ocupa a posição hegemônica. “Apesar da ditadura de direita há hegemonia cultural da esquerda” (SCHWARZ, 2009, p. 8).

2.1 – Dinâmicas políticas e sociais no “intervalo democrático” (1945