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Confrontando os poderes do mal

No último capítulo tentei descrever as atitudes ou situações que parecem atrair o mal, segundo os contos de fada: embriaguez, solidão física ou psíquica, ser um estranho ou se isolar demais. Estas não são condições necessárias, mas existem no início de alguns contos de fada. Outras situações iniciais também merecem atenção. Na estória do Curupira que comeu todos os caçadores, estes tinham tido uma sorte extraordinária, pois o acampamento estava repleto de macacos que haviam caçado. No dia seguinte foram caçar novamente mas à noite o Curupira e seus animais selvagens vieram e comeram a todos.

Isso parece insinuar que tendo matado animais além da conta, os caçadores aborreceram o Curupira, o Senhor da Floresta. Talvez, apesar da estória não dizê-lo expressis verbis, o que do ponto de vista humano é tido como boa sorte, na caça tenham ido um pouco longe demais, além da medida usual, ultrapassando os limites naturais, e assim possivelmente os caçadores atraíram o mal. Ou ficaram secretamente inflados devido a sua boa sorte, ou simplificando, irritaram o Senhor da Floresta Por lhe tirarem demais. Isto não seria nada surpreendente» pois na maioria das sociedades primitivas existem certas regras de caça. Não se podem matar animais em demasia, de uma só vez. Existem tabus.

Um certo numero de animais deve ser poupado se o homem não quiser perturbar o equilíbrio natural das coisas e assim atrair para si o mal, ou a vingança do espírito que protege os animais em geral.

Nós agora estamos ficando conscientes de que o homem é capaz de perturbar a economia biológica de seu meio-ambiente, atraindo assim o mal como reação. Começamos a acordar para o fato de que temos aborrecido demais o Curupira, numa extensão tal que provavelmente todos os nossos ossos serão logo quebrados. Ao contaminar as águas, destruímos os animais e o equilíbrio biológico da natureza. Isto parece ter suas raízes em dias muito longínquos.

Quando começou a usar armas, o homem pôs em prática uma artimanha ilegítima. Ele deixou de lutar com os animais num nível de igualdade e honestidade. Desde o início isso lhe deve ter pesado na consciência, dando origem a um sentimento de que deveria ser sábio e poupar alguns animais. Por exemplo, na velha China a regra de caça era a de que os animais fossem levados juntos por um homem para três cantos do horizonte, mas o quarto deveria ficar aberto para lhes dar uma chance; Deus os inspiraria para escaparem na direção certa, caso sua hora ainda não tivesse chegado. Eu li nos jornais que acabamos de promulgar uma lei semelhante. Quando os homens caçarem em grupos, com batedores que espantam os animais para fora do mato, devem deixar aberta uma das quatro direções do horizonte para que alguns deles possam escapar; não se pode formar um círculo e acabar com todos eles. A Suíça, com suas novas leis de caça publicadas nos jornais há umas quatro semanas, retomou um antigo hábito chinês, provavelmente sem o saber, pois trata-se simplesmente de uma sabedoria natural.

Assim, vemos que o problema do mal no campo do folclore, problema que agora estou discutindo, é distinto do problema religioso, diferenciado ou específico, do mal. O que chamamos de mal nesse nível inclusive difere da ideia teológica, pois se encontra na esfera de fenómenos puramente naturais. Isto é tremendamente importante em psicologia, pois acho que não sou otimista se disser que em noventa por cento dos casos em que uma pessoa tem que lidar com o mal, ela se confrontará com esse

mal natural num nível psicológico, e só muito raramente com um fenómeno mais absoluto e profundo do mal. Oitenta ou oitenta e cinco por cento dos fenómenos são apenas o Curupira, a Dona Trude e criaturas semelhantes que ainda existem em nossa natureza psicológica.

É por essa razão que os contos de fada são tão im- portantes. Neles encontramos regras de comportamento de como lidar com essas coisas. Muito frequentemente não se trata de um assunto ético muito claro, mas de como se encontrar um caminho de sabedoria natural. Isso não quer dizer que às vezes esses poderes não sejam extremamente perigosos.

Eu gostaria de entrar em ilustrações mais específicas, mostrando de que forma os seres humanos confrontam esses poderes. Vimos que não infringir tabus e observar as regras da tribo parece ser uma das formas mais usuais de tentar evitar o mal. Mas para detalhes mais específicos gostaria de lhes apresentar um conto de fada russo, chamado "A Bela Wassilissa". É um paralelo mais elaborado da estória da Dona Trude, exceto pelo fato de que aqui a menina não é devorada mas encontra uma saída para o problema.

Era uma vez um reino muito distante onde viviam um mercador e sua mulher. Eles tinham apenas uma filha chamada a Bela Wassilissa (a palavra Wassilissa quer dizer rainha, mas é somente um nome comum). Quando a menina estava com oito anos, a esposa do mercador chamou a filha dizendo que ela, sua mãe, logo morreria mas que lhe deixaria sua bênção maternal e uma boneca. Wassilissa deveria sempre guardar a boneca junto a si, sem mostrá-la a ninguém; se estivesse em dificuldades, deveria aconselhar-se com a boneca. Tendo dito isto, a esposa do mercador morreu.

Posteriormente o mercador casou-se com uma viúva que tinha duas filhas, mais ou menos da idade de Wassilissa. Aos poucos a madrasta foi fican-

do hostil a Wassilissa, mas sempre sua boneca a confortava. Um dia o mercador teve que sair do país por muito tempo. Durante sua ausência a madrasta mudou-se com suas três filhas para outra casa, perto da floresta. Numa clareira dessa floresta ficava a casa de Baba-Yaga (a grande bruxa dos contos de fada russos). A ninguém era permitido aproximar-se dela, e qualquer um que caísse em suas mãos era comido como se fosse uma galinha. A situação con- vinha à madrasta, pois ela tinha esperanças de que um dia Wassilissa cruzasse o caminho de Baba-Yaga.

Uma noite a madrasta deu três velas às filhas, ordenou-lhes que bordassem, tricotassem e fiassem, e foi dormir. Com o passar das horas as velas queimaram. Uma das meninas pegou sua agulha de tricô para limpar os pavios mas propositadamente acabou fazendo com que a vela se apagasse. Aí ela disse que não se importava, pois podia fazer o seu bordado sem luz; a outra disse que podia tricotar sem luz, mas você, as duas meninas disseram a Wassilissa, deve ir à casa de Baba-Yaga arrumar fogo para que a gente possa ter luz novamente e a empurraram para fora. A menina foi até seu quarto e perguntou à boneca o que deveria fazer. A boneca lhe disse para não ter medo e ir aonde as outras a tinham mandado, levando-a consigo pois a ajudaria.

Wassilissa andou durante toda a noite. Aí en- controu um cavaleiro vestido de branco, montado num lindo cavalo coberto de branco e no momento em que ele passou por ela, o dia nasceu. Pouco depois encontrou um segundo cavaleiro vestido de vermelho, montado num cavalo coberto de vermelho e nesse momento o sol surgiu.

Tendo já andado toda a noite, Wassilissa andou durante todo o dia seguinte. À tarde chegou à clareira onde ficava a casa de Baba-Yaga. A casa era rodeada por uma cerca feita de ossos humanos intercalados de caveiras. As trancas das portas eram

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