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2 SEGUNDA PARTE

2.2 PAJÉ ESMERINDA TRINDADE DA SILVA

2.2.3 Conhecendo os brancos e outros indígenas

Antes de aprender a falar a língua dos brancos, a Pajé, menina pré-púbere, só falava Tukano/Yepamahsã e Piratapuia. O interesse por relacionar-se com moças que falavam outro idioma fez a Pajé aprender a língua geral. Suas amigas banhavam-se num igarapé próximo onde ela estava. A menina aprende a falar língua geral para conversar com as moças que se tornaram suas amigas de banho de rio.

A emergência de novas circunstâncias sociais é associada pela Pajé à emergência de novas línguas, a partir das novas redes de relações sociais que surgiram em sua vida, sendo a elaboração de novas estratégias marcadas pela apreensão das diferentes línguas. Compreendi essa perspectiva de apreensão das línguas como receptividade para as negociações em pesquisa, considerando que a tese significa o trânsito de suas palavras ditas para suas palavras escritas e, portanto, a presença de suas reflexões em outros campos de negociações entre grupos sociais diversos66.

Seguindo essa perspectiva, para a Pajé as línguas são estratégias para o compartilhamento de referências sociais, ou seja, acesso e poder de interação em múltiplas esferas da vida social que se constitui a partir das diversas línguas, quer seja a partir de diferentes línguas faladas, ou da diferença entre oralidade e escrita67.

As transformações na vida social da Pajé são marcadas por mudanças na ordem das relações econômicas, linguísticas e políticas. As diferenças entre línguas influenciam a escolha de seu marido. De modo contrário à expectativa exolinguística68, em que a diferença linguística é ressaltada como condição para os casamentos somada à abertura da jovem para o aprendizado de línguas desconhecidas, conforme explicitado no subtítulo anterior, a jovem mulher decide não casar com um homem branco com quem poderia ter filhos brancos, argumentando a diferença marcada pela língua. Argumenta que poderia querer lhe

66 Nesse sentido, lembro que durante o mestrado Gabriel Gentil apresentava conflito com alguns parentes que, segundo ele, apontavam o fato de ele escrever e tornar público os mitos como desrespeito ao sagrado. Segundo ele, alguns parentes diziam que ele estava desrespeitando os mitos ao escrevê-los e torná-los públicos. Contrariando a opinião destes parentes, ele afirmava que era necessário publicar os mitos para que a “cultura Tukano não morresse”.

67 Ver também a discussão antropológica clássica sobre as diferenças entre o uso da palavra escrita e o uso oralidade apresentada por Pierre Castres 2003: 167-172, 205-234.

68 As etnografias clássicas explicitam de modo objetivo a presença de diversas línguas no cotidiano das relações sociais, ver Jackson, 1983; Christine Hugh-Jones, 1988; Stephen Hugh- Jones, 1979.

dizer algo, ou compreender algo, e eles não se entenderiam, e ela sofreria, e ele também. Assim, o casamento da moça que ia aos bailes exclusivamente para dançar, acontece com um jovem indígena que falava língua geral e português, um jovem Kũmu que sabia ler e escrever e era músico, tocava acordeom e violão, o Kũmu Roque da Silva.

É interessante notar que mesmo tendo nascido numa família que se constituiu a partir do exolinguísmo, a Pajé rejeita a idéia de casar com um homem que falasse a língua portuguesa. A Pajé reafirma, portanto, conforme podemos ver na bibliografia, que as mulheres na sociedade exolinguística precisavam previamente compreender a língua do marido para casarem com ele e este lugar poliglota, parece ser responsabilidade das mulheres69.

A limitação para a língua, é colocada pela Pajé como sendo de ambas as partes, como um desdobramento equitativo para a diferença. Ou seja, eu não falo a língua dele, e ele não fala a minha, nós não nos entenderemos. Neste caso, a marca da diferença para as línguas é fixa, não existe a possibilidade de reciprocamente os dois aprenderem a língua um do outro. É interessante notar, por outro lado, que esta posição não é uma posição da Pajé em relação a sua abertura para o parendizado de outras línguas, considerando a abertura dela para aprender a língua geral, como vimos junto das moças que falavam língua geral. Portanto, se por um lado, a Pajé aponta para a responsabilidade da mulher enquanto poliglota, por outro, tomo esta análise da Pajé como uma crítica aos homens brancos que não aprendiam a falar as línguas de suas esposas indígenas70, pois a crítica se dá como sendo uma insuficiência sua, porém, uma insuficiência que não interessa superar. Ou seja, ela não sabia a língua dos não-indígenas, mas também não interessava aprender, pois não a interessava um marido branco. Assim sendo, se a responsabilidade do domínio das línguas é

69 Entre os homens indígenas com os quais trabalhei, a língua de suas mulheres nunca foi apontada como facilitadora nem como obstáculo para a relação, ou seja, não ouve ênfase nesse sentido, o que difere da posição das mulheres, não só da Pajé, mas também das mulheres filhas de homens Tuyuka e casadas com homens Tukano/Yepoamahsã do clã Ұremirï Sararó, enfatizam o conhecimento da língua dos maridos. Por outro lado, o Kũmu Ovídio Lemos Barreto enfatiza a comunicação com sua falecida mulher através da música, especialmente o uso da flauta ao aproximar-se de casa, como uma forma de sinalizar sua chegada. A relação entre homens e mulheres mediada pela música pode ser vista entre os Waúja no ritual Imamurikuma, onde o canto das mulheres é apresentado em relação à música das flautas tocadas pelos homens (Mello, 2005).

70 É difícil compreender que a Pajé estava criticando os brancos por não aprenderem a língua de suas mulheres indígenas, pois ela não diz isso desde que não visualizemos o contexto de onde sua fala emerge em relação a outras falas e contextos.

importante para ela como mulher, as limitações de um marido branco para compreender a importância de suas qualidades esgotam suas possibilidades de interesse.