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Conhecendo o sentido atribuído pelas mulheres às suas experiências de sofri-

As narrativas desta pesquisa revelam o modo como cada entrevistada vivencia o sofrimento constante na relação amorosa, evidenciando particularidades bem como aspectos comuns. Assim, tomamos conhecimento das queixas dirigidas ao parceiro amoroso, dos motivos alegados para a continuidade na relação amorosa, das idealizações que as mulheres tinham referentes à relação, das percepções acerca dos potenciais e limitações, de aspectos significativos de suas histórias de vida, dos projetos e da própria existência. Adentramos na vida e nas experiências dessas mulheres, compartilhando momentos de intensa emoção, numa relação intersubjetiva, em que nos colocamos na condição de acompanhante, ao invés de guia, de uma jornada que pretendíamos pudesse existir na forma de um verdadeiro encontro.

Começamos essa etapa do trabalho ancorada no entendimento de que o sofrimento permanente na relação amorosa revela um modo de estar no mundo, de perceber-se na relação com os outros e consigo. Ao falarem sobre a experiência aqui tratada, constatamos que várias participantes cresceram em um ambiente carente de afeto, de liberdade para a auto-expressão, de aceitação e respeito aos seus sentimentos, valores e atitudes, como podemos perceber nas falas a seguir:

“(...) tenho mágoa de não ter tido carinho da minha mãe... Assim, porque ela não costumava dar um abraço, ela nunca me deu um beijo... Às vezes, eu tenho vontade. Falar nisso me deixa triste... Então, eu fico assim pensando... Para que eu lutar? Se esse é o meu destino...”

“(...) eu lembro que a minha mãe me batia todo dia, tinha vez que chegava a dar três surras em mim. Eu era a filha mais velha das mulheres, e dos filhos, eu era a quarta... Tudo o que eu fazia dentro de casa, minha mãe colocava defeito, me batia. Ela mandava meu irmão mais velho me bater também. A minha mãe me batia de pau mesmo; quando ela me batia... Engraçado... Por exemplo: hoje tinha missa lá na rua, aí se minha mãe me desse uma surra, ela tinha prazer de me levar para a rua e as pessoas verem que ela tinha me batido, porque ela não queria que eu namorasse aquele rapaz, que ele era filho de“esmolé”. Ela dizia que, no dia que aparecesse um rapaz certo para eu namorar, era para eu pedir a ela, porque filha de fazendeiro tinha que casar com filho de fazendeiro” (Isaura).

“(...) mamãe sempre foi muito chantagista comigo”.

“Quando eu era adolescente e ia sair para algum lugar que ela não queria, ela sempre dizia que, se alguma coisa acontecesse com ela, a culpa seria minha; então isso acaba ficando na memória” (Sofia).

Falando dos pais: “(...) eu nunca tinha direito a nada, porque eles me viam sempre como

uma criança. Não tinha direito a sair só, pois eles me viam sempre pequena. Está entendendo como é?”

Falando da infância: “A minha vida era muito jogada (...) fui muito só!”

“Quando meus pais me criticavam, eu só reagia dessa forma, me isolando, passando o dia fora. O lugar para onde eu podia ir era a escola, pois eu morava perto. Eu não podia reagir de outra forma porque meu pai batia, era daqueles que batia com aquele mesmo chicote de bater nos cavalos. Aí eu já temia era o chicote!”.

“(...) eu me sentia revoltada porque meus pais não explicavam o motivo, só faziam dizer:’ - Não faça isso!’ Entendeu? Ao invés de dizer porque não ia dar certo, que eu não tinha maturidade para isso...” (Vera).

“Mas minha mãe e meu pai nunca foram de chegar e fazer um carinho... Era só: bênção mãe, bênção pai, e pronto; eles nunca tiveram aquele aconchego com a gente (...)”.

“É uma falta de carinho que a gente fica sentindo, entendeu? E hoje, o meu relacionamento é a mesma coisa (...)” (Elisa).

Fica evidente a existência, na experiência de vida dessas mulheres, de um ambiente familiar pouco acolhedor, desfavorável à construção de um self caracterizado pela confiança, segurança e auto-estima necessárias ao crescimento em direção à autonomia e à auto-realização, denotando um modo de estar com o outro na relação amorosa que vem se

configurando ao longo do tempo. Podemos compreender a permanência no sofrimento amoroso como a expressão de um modo de ser e de se perceber constituído ao longo do tempo, especialmente na dinâmica familiar dessas mulheres, cujo clima psicológico parece não ter contribuído para a formação de um self receptivo ao livre fluir dos sentimentos.

De acordo com tal entendimento, recorremos a Rogers (1974), ao falar sobre a tendência que muitas pessoas têm de adotar um modo de vida baseadas em referências externas, ficando distantes de suas experiências reais, em virtude de na infância terem buscado fugir da sensação de ameaça da perda do amor dos pais. Segundo esse autor, as atitudes avaliativas e pouco receptivas dos pais podem levar a criança a negar ou distorcer suas experiências reais. Ela busca, então, corresponder às expectativas alheias, preservando sua auto-imagem bem como o apreço das pessoas que lhe são significativas. Dessa forma, a criança internaliza valores e atitudes de outrem como se fossem dela própria, aspecto este que dificulta a formação de um self maduro e saudável. Na situação em análise, podemos pensar que uma experiência dessa natureza poderá dificultar a construção, por tais mulheres, de uma relação amorosa ancorada na valorização da alteridade, na fluidez, na criatividade e no prazer.

Sofia percebe claramente a influência que os valores, normas e atitudes de sua mãe assim como os “(...) dogmas espirituais (pecado, castigo de Deus, o que é certo ou errado) (...)”

exercem até hoje sobre o seu modo de ser, identificando-os como obstáculos à sua decisão de separar-se do marido:

“Se hoje eu me separasse, ela (se referindo à mãe) seria uma pessoa que não iria saber. Eu iria fazer o impossível para não contar nada a ela. Ela não iria saber, porque eu sei que ela é uma pessoa que não aceita. Para ela, é aquela história: o que Deus uniu na Terra ninguém separa, e eu assimilei isso muito bem. Isso em mim é muito forte, muito forte! Lá em casa são cinco mulheres; eu acho que só a minha irmã mais velha e eu absorvemos toda a criação da minha mãe. São conceitos difíceis demais. Eu sinto que isso contribui muito para que eu sinta essa dificuldade de me separar”.

Ela demonstra que, de certo modo, continua agindo como na adolescência, pois, segundo revela em sua narrativa, evitava contar à mãe que iria para algum lugar, a fim de não contrariá-la e, assim, esta adoecer. Assim, Sofia continua sentindo-se ameaçada pelo sentimento de culpa decorrente de um possível rompimento com os referenciais estabelecidos pela mãe:

“(...) tenho medo que ela vá para o hospital, que ela adoeça e aí o sentimento de culpa é muito ruim”.

Além disso, ao dar-se conta de que, já no início, o casamento não ia bem, Sofia sentiu-se culpada, acreditando que a falta de desejo sexual do marido, que persistia até aquele momento, era um problema dela:

“Fiz tratamento espírita, tudo no mundo eu fiz para saber o que estava acontecendo. No início, eu achava que a culpa era minha; alguma coisa estava errada, mas eu sempre achava que esse erro estava em mim, não estava nele, não estava no relacionamento. Então, durante muito tempo eu fiquei com isso, por isso que eu busquei muitas alternativas: tratamento espírita, sexólogo... Eu perguntava o motivo a ele, mas ele me respondia que era o cansaço. Isso não me convencia, porque eu trabalhava o dia todo, ainda arrumava a casa, fazia comida... Então, não me convencia” (Sofia).

Esse dado nos faz lembrar do que Biasoli-Alves (2000) discute, em seu estudo sobre as mudanças e continuidades no papel da mulher:

Nessas rupturas com o passado, ao fazer face a um processo consolidado em muitas décadas, sobrou para a mulher, ainda, o “sentimento de culpa” que aparece a cada vez que “ a criança fica doente...” , “os pais precisam de seus cuidados...”, “ o casamento vai mal...”

Essa última fala de Sofia nos remete, ainda, à visão de Costa (1999), que chama a atenção para a transmissão cultural do romantismo amoroso, o qual é tido como atributo essencial de felicidade, gerando sentimento de culpa e de desvalorização pessoal, quando o ideal imaginário do amor parece não se realizar. Nesse sentido, percebe-se claramente, na narrativa de Sofia, que, mesmo queixando-se da falta de iniciativa sexual do marido, assim como de sua indisponibilidade para o diálogo e para compartilhar dos acontecimentos diários, ela permanece, durante um longo período da relação, sentindo-se a única responsável pelo fracasso amoroso.

Ainda com relação ao sentimento de culpa, temos o depoimento de Laura, que fez algumas tentativas de sair do seu relacionamento amoroso, mandando o parceiro, que é alcoolista, ir embora. Contudo, como ela mesma afirma, sempre

“(...) ficava assim, com pena dele, sem ter quem cuidasse dele; até me sentia culpada (...)”.

É também o que se constata na fala de Vera:

“Com o meu marido mesmo, se eu não fizer uma coisa para o meu marido, eu me sinto assim... culpada”.

Essas falas parecem denotar a existência de um self estruturado em função do outro, de seus valores, necessidades e expectativas. Como se percebe nas narrativas dessas mulheres, parece ser mais fácil sacrificar-se, assumir as dificuldades oriundas do relacionamento, abrir mão de projetos, enfim prejudicar-se, a ver o outro sofrer. Esse aspecto também é verificado na narrativa de Elisa, que desde criança parece buscar proteger

e preservar a mãe de alguma contrariedade, fazendo uma seleção dos sentimentos e emoções que julga poder expressar em seus relacionamentos:

“Isso vem de muito tempo. Nunca quero magoar os outros. Quando eu era criança que me

sentia mal e não podia fazer nada, eu só me vingava em chorar (...)”.

Enquanto não toma a decisão de romper com o marido, Elisa considera que está agindo como a mãe, ou seja, aceitando a situação que vive em sua relação amorosa, pois o marido mantém uma vida pessoal fora de casa, ausentando-se com freqüência do convívio familiar.

Temos, ainda, a experiência de vida de Isaura, que conviveu, quando criança, com uma mãe opressora e dominadora, a qual não estabeleceu com ela uma relação baseada em afeto, respeito e aceitação, atribuindo-lhe, prematuramente, uma sobrecarga de responsabilidades. Isso fez com que ela interrompesse os estudos aos dez anos de idade:

“Minha mãe nunca fez nada! Minha mãe nunca cuidou da casa, minha mãe nunca cuidou dos filhos, ela só tinha filho para eu cuidar. Fui eu quem criou meus irmãos, fazia o café para o meu pai...”

Sua experiência de vida deixa claro que ela não foi tratada como uma criança, que precisa de amor e proteção, ao invés de ameaças, castigos e humilhações, para desenvolver positivamente a auto-estima e adquirir confiança nas suas próprias experiências, assumindo escolhas e reconhecendo-se como ser singular. Em seu relacionamento amoroso, que começou há quinze anos, Isaura buscou adequar seus sentimentos, desejos, pensamentos e ações à maneira de ser do parceiro, revelando um modo de relacionar-se amorosamente

subserviente e extremamente dependente, como se a sua existência não tivesse sentido sem o parceiro amoroso:

“Eu tinha vergonha que ele conhecesse minha casa, mas ele foi um dia de surpresa... E pronto, então ali ele começou a me ensinar tudo o que ele achava que deveria, do jeito dele. Eu vivi para ele, a minha vida inteira eu me dediquei para ele, de corpo e alma. Era como se eu fosse a filha mais velha dele, pois eu só fazia o que ele queria... tudo! Tudo, tudo! Ele era o meu mestre, até hoje ainda é, continua; já foi muito mais, porque hoje eu já respondo a ele, hoje, eu já grito ele, hoje eu já... saio”.

“Eu nunca digo’não’ para ele, em nada na minha vida. Não é que eu não tenha vontade, é que eu não posso, ele não permite que eu lhe diga ‘não’. Eu o obedeço, na minha casa a gente (se referindo aos filhos dela e a si própria) obedece a A mais do que os filhos dele.

Então desde que eu fui criada, que eu baixo minha cabeça, e hoje faço pior”.

“Mas eu não me imagino sem ele, porque eu sofro muito! Em nenhum momento eu posso pensar nisso... Isso não pode entrar na minha cabeça, porque eu fico muito triste mesmo! Por enquanto não posso... Não posso, não posso, não posso, não posso! Nenhum segundo na minha vida, eu posso pensar sem ele...”

Essas falas de Isaura mostram, com nitidez, um modo de estar no mundo baseado em referências externas, que toma o outro como a principal razão de viver, permitindo ser como ele espera ou exige. Observamos aqui o alto grau de submissão de Isaura em relação ao seu parceiro amoroso, em quem ela parece depositar toda a responsabilidade por suas escolhas e ações, demonstrando uma forte necessidade de ser “guiada” na vida, pois não se apropria da sua existência. Essa ênfase dada ao outro também pode ser demonstrada na fala de Vera e, novamente, na de Sofia:

“Eu estou sempre pensando nos outros, nos outros, nos outros, chegou a ponto de dar um circuito na minha cabeça. Aí pronto, o meu relacionamento conjugal está muito difícil...”

Falando do marido: “(...) porque quando está na hora dele chegar em casa e ele não

chega, fico... sabe? Eu fico de janela em janela olhando, entendeu? Fico doidinha quando ele não chega em casa, aí eu queria me libertar entendeu?” (Vera).

“Isso me faz sentir limitada. Eu me sinto presa, a minha vida é como se estivesse presa à vida dela (se referindo à mãe), à vida de outras pessoas. Aí eu acabo não resolvendo as

coisas porque eu fico pensando muito nos outros, no que pode acontecer. Aí, já não sou só por mim, sou pelo meu marido, sou pela minha mãe, sou por muita gente” (Sofia).

Esses depoimentos parecem sugerir que tais mulheres estão fora dos seus próprios sistemas de avaliação interna, sem distinguir com precisão o que lhes é próprio (necessidades, valores, sentimentos, atitudes) daquilo que pertence ao outro. Esse modo de estar no mundo pode dificultar a satisfação das próprias necessidades, comprometendo a direção da tendência atualizante, que não favorecerá o desenvolvimento de um self maduro, fluente, receptivo ao processo de experiências em curso. Os depoimentos também sugerem uma necessidade dessas mulheres de agirem segundo os seus próprios marcos de referência interna, o que poderia, segundo o nosso entendimento, lhes trazer mais autonomia e clareza na condução de suas próprias vidas. É o que também constatamos no depoimento de Laura, cuja relação amorosa, assim como a de Vera, é marcada pela delicada e conturbada situação do alcoolismo. Ao dar-se conta da gravidade de tal situação, Laura passou a assumir o papel de “cuidadora” do marido, considerando-se responsável por ele, conforme suas próprias palavras:

“(...) eu estou sendo a mãe dele também, não é? Do meu marido. Porque quando ele faz xixi, aí eu tenho que tirar a roupa, quando eu não posso dar um banho, aí eu passo um pano assim...”.

Esse é um papel já conhecido por Laura, que, em seus relacionamentos familiares e sociais, geralmente desempenha uma função maternal, tendo a necessidade de cuidar, de agradar, de ser “boazinha” e compreensiva com os outros, pois ela mesma admite:

“Eu tenho muita dificuldade de dizer’não’ para as pessoas. Eu acho que o ‘não’ para mim quase não existe. Eu sempre tive essa dificuldade, às vezes eu até resolvo uma situação para evitar dizer ‘não’, não é? Às vezes até me custa caro esse sacrifício, me sacrifico, agrado... Tenho a necessidade de agradar. Às vezes, isso nem me faz bem depois, mas outras vezes, me faz também, porque eu não faço nada com má vontade não. Falando nisso, muita gente assim, diz que eu sou uma pessoa boa e tudo, só sou ruim para mim”.

“Eu acho que cresci com a expectativa de agradar as pessoas, aos meus pais, é! (...) eu não levo mais meu marido para o interior, porque eles iam sofrer muito sabendo dessa minha situação... Aí é melhor sofrer sozinha, porque pelo menos é só uma pessoa. Eu dou meu jeito... Até resolver, não é?”

“O que eu passo, eu nunca dou muita importância, sempre acho que posso estar suportando. Eu digo a mim mesma assim... Não, eu... Não morro não... Passa!”

Diante da situação que vivencia e da qual se queixa, Laura segue sua trajetória de vida sentindo-se prejudicada, mas agüentando sozinha o peso desse relacionamento, estruturando a sua existência em torno do parceiro, pois revela em sua narrativa que a preocupação com ele a impede de realizar tranqüilamente as atividades diárias, além de privá-la de fazer coisas prazerosas, como estar com seus familiares, divertir-se com os amigos etc. Isso denota a existência de uma baixa auto-estima, de pouca consideração pelos seus próprios sentimentos, como verificamos nos trechos anteriores. A necessidade de cuidar e de agradar é acentuadamente presente não apenas no modo de ser de Laura, mas também no de Vera, que, além desse aspecto em comum com Laura, também convive com um homem alcoolista. Ambas acreditam ter o dever de não abandonar o parceiro, embora suas narrativas traduzam o desamparo e a solidão em que se encontram. Permanecem, então, sofrendo na relação amorosa, talvez, dentre outros fatores, pela dificuldade de romper com uma auto-imagem estruturada em torno da função de cuidar e se deparar com o sentimento de culpa decorrente dessa “transgressão”. Esse é um aspecto que consideramos importante na compreensão do nosso objeto, haja vista que as experiências dessas mulheres nos levam a pensar no papel que a cultura tem na transmissão desse valor

(o cuidado) na socialização das mulheres. Como podemos observar, nas narrativas desta pesquisa, quase todas as participantes, exercendo ou não um trabalho remunerado, têm como “obrigação” os cuidados com a casa e/ou com os filhos, embora costumem se queixar desse excesso de responsabilidades. No entanto Vera parece se contradizer; pois, se, por um lado, revela que se sente responsável pelo marido, no dever de cuidar dele, em outro momento da narrativa demonstra indignação com relação ao papel assumido em sua vida amorosa:

“Eu existo para ele como uma empregada, para fazer a comida, lavar tudo direitinho...”

E, mais adiante, acrescenta:

“Eu já disse a ele assim:’ - Menino, você me tirou da casa dos meus pais, casou comigo,

diz que me ama e depois me faz de empregada!’ Sim, porque eu faço as coisas todas direitinho para ele”.

Percebemos, ainda, em muitos relatos, o desamor existente em muitos lares, onde as crianças não recebem a devida atenção e cuidados essenciais para um desenvolvimento saudável. Muitas mulheres, tais como Isaura e Elisa, são incentivadas, ou mesmo obrigadas a exercer, ainda na infância, responsabilidades que implicam servir ao outro, enquanto suas necessidades de amor, atenção, cuidado e segurança permanecem insatisfeitas. Em alguns casos, entendemos que essa carência de cuidados pode levar a criança a assumir, na vida adulta, principalmente se for mulher, um papel servil, tendo sempre alguém com quem estabeleça uma relação de dependência, na ilusão de preenchimento de um vazio, de uma necessidade de amor não satisfeita. Talvez o que muitas mulheres esperam, ao valorizar mais os desejos e exigências do outro, é serem recompensadas com amor.

O sentimento de rejeição também é um aspecto ressaltado nos depoimentos das participantes deste estudo, abrangendo a existência como um todo de algumas delas e tendo destaque em seus modos de ser. Nessa perspectiva, ressaltamos novamente a experiência de vida de Vera, que apresenta uma tendência a se isolar, receosa de expor suas idéias, de incomodar o outro, sentindo-se mais segura em seu próprio mundo. Esse aspecto parece contraditório, pois ela também se queixa da falta de contato social. Vera percebe que essa tendência a se retrair é algo que a acompanha desde a infância. Sente-se desvalorizada e rejeitada pela sociedade e pela família, restando-lhe resgatar o amor que recebia do marido, demonstração de aceitação e acolhimento pela pessoa que é:

“Assim, eu procuro sempre fazer as coisas em casa, está entendendo? Sempre me trancando mais, porque eu acho que as pessoas não vão me aceitar como eu sou... Será que aceitam? Eu me sinto rejeitada, é, eu me sinto rejeitada sim, sabe? Eu me sinto rejeitada dentro de casa, me sinto rejeitada na sociedade, porque eu não sou ninguém, porque eu não tenho dinheiro, porque eu não tenho nada, eu não... Eu me sinto rejeitada por todo

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