• Nenhum resultado encontrado

Compreensão da experiência do sofrimento de mulheres na relação amorosa

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Compreensão da experiência do sofrimento de mulheres na relação amorosa"

Copied!
195
0
0

Texto

(1)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

COMPREENSÃO DA

EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE MULHERES NA RELAÇÃO

AMOROSA

Ana Regina de Lima Moreira

(2)

Ana Regina de Lima Moreira

COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE MULHERES

NA RELAÇÃO AMOROSA

Dissertação de mestrado elaborada sob a orientação da Profª. Drª. Elza Dutra e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Natal

(3)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação Compreensão da experiência do sofrimento de mulheres na relação amorosa, elaborada por Ana Regina de Lima Moreira, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, RN, dezessete de junho de 2004

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Elza Dutra _____________________________ Profª. Drª. Denise Dantas _____________________________

Profª. Drª. Virgínia Moreira _____________________________

(4)

Para as mulheres que permanecem no sofrimento amoroso, na crença de que a compreensão possibilita a

construção de novas maneiras de existir.

(5)

Agradecimentos

À Elza Dutra, pelos preciosos momentos de orientação bem como por sempre me incentivar e acreditar no meu potencial.

A todas as participantes que colaboraram na realização deste trabalho, pois sem o testemunho delas não seria possível esta produção.

Aos meus queridos pais, pelo apoio, carinho e dedicação que sempre dispensaram ao longo da minha vida.

Aos meus irmãos, pela força e incentivo constantes.

A Cleudo, cuja presença foi fundamental neste percurso, com sua sensibilidade, inteligência e capacidade de entrega.

À Sílvia, Jordana e Candice, pela amizade sincera e acolhimento nos momentos difíceis.

À Denise Dantas, pelo modo competente e cuidadoso com o qual contribuiu para a melhoria deste trabalho nos seminários de dissertação, bem como pela participação na banca examinadora.

À Virgínia Moreira, pela honra de tê-la como participante da banca examinadora. Aos professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN, pela agradável convivência nesta jornada.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por viabilizar o desenvolvimento do Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

(6)

Sumário

Resumo ... vii

Abstract ... viii

1. Introdução ... 9

2. Sobre gênero, amor e sofrimento... 17

2.1 Entendendo o conceito gênero... 17

2.2 Breves considerações sobre a mulher na história... 19

2.3 Amar é sofrer ? Sofrer é amar ? ... 24

2.4 O amor romântico e seus ideais... 28

3. O enfoque centrado na pessoa: uma abordagem humanista-existencial da subje- tividade... 38

3.1 Um olhar crítico sobre o conceito de subjetividade na perspectiva de Ro- gers... 39

3.2 Entendendo o self ou autoconceito... 45

4. O caminho escolhido para a compreensão da questão... 56

4.1 O método fenomenológico de Heidegger... 57

4.2 As narrativas e o percurso metodológico ... 64

5. Conhecendo o sentido atribuído pelas mulheres às suas experiências de sofri- mento amoroso ... 71

6. Considerações Finais... 103

Referências Bibliográficas ... 109

Anexos

Apêndices

(7)

Resumo

Em nosso cotidiano profissional, como psicóloga, deparamo-nos, freqüentemente, com a narração feita por mulheres de uma experiência de sofrimento permanente, na relação amorosa. Essa constatação gerou indagações que apontavam para a singularidade da experiência em questão, considerando-se os aspectos culturais e históricos (gênero e amor-romântico) que pareciam permear tal experiência. O encaminhamento dado a esta pesquisa foi norteado pela seguinte questão: como é para a mulher a experiência de permanecer sofrendo na relação amorosa? O objetivo, portanto, foi compreender essa experiência. Foram realizadas entrevistas semi-abertas com seis mulheres que estavam vivendo a experiência que buscamos investigar. A narrativa, tal como proposta por Walter Benjamin foi o instrumento de acesso à experiência. A análise das narrativas evidencia a singularidade da experiência de sofrimento constante na relação amorosa bem como aspectos comuns. É marcante a presença de questões relativas à dimensão de gênero e do amor-romântico, influenciando a forma como as mulheres entrevistadas se percebem na existência e dão sentido ao sofrimento amoroso que vivenciam. As mulheres revelam diversas formas de expressar e perceber o sofrimento amoroso, sendo comum a manifestação de vários sintomas físicos e psíquicos. Várias participantes tiveram experiências de convívio familiar favorecedor do desenvolvimento de sentimentos de baixa auto-estima, incapacidade, insegurança e medo. Entendemos que o sofrimento das mulheres entrevistadas, na relação amorosa, revela, sobretudo, um modo de estar no mundo, de perceber-se, marcado pelo medo da solidão, do desamor, de empunhar a própria vida, dando origem a um modo de viver e de amar realmente novos. Salientamos assim a importância de haver maior empenho dos profissionais e instituições que lidam com a temática desta pesquisa, no sentido de desenvolver ações que considerem sua complexidade. Também enfatizamos a necessidade de novas reflexões sobre o sofrimento amoroso, a fim de que diferentes possibilidades de sentido possam emergir, propiciando uma maior compreensão da subjetividade humana.

Palavras-chave: sofrimento; gênero; relação amorosa; self ou autoconceito.

(8)

Abstract

Our professional everyday life, as a psychologist, we often come across the narrative made by women of a permanent suffering experience in loving and sexual relation. This checking created questions which indicated to the questioned experience singularity, taking into account the historic and cultural aspects (genre and romantic love) that seemed to permeate such an experience. The conduction given to this research was guided by the following question: how is to the woman the experience of going on suffering on loving and sexual relation? Therefore, the objective was to understand that experience. Were carried out with six women that were living the experience which intend to investigate. The narrative, in according to the purposal by Walter Benjamin was the access tool to the experience. The narrative analysis shows the singularity of constant suffering experience on loving relation as well as common aspects. It is remarkable the presence of relative questions to the genre and romantic loving dimension, influencing the way as the interviewed women perceive themselves on the existence and realize the loving suffering which experience. Women reveal several ways of expressing and perceiving to the loving suffering which is common the manifestation of several physical and psychic symptoms. The most participants had experiences of protected familiar contact of feeling development of low self-esteem, disability, unstableness and fear. We realize that the suffering of interviewed women, on loving relation, it revels, above all, a way of being in the world, perveiving themselves, marked by solitude fear, lovelessness, leading the life itself giving origin to the lifestyle and of really new loving. Thus, we emphasize the importance of greater engagement of professionals and institutions which deal with the thematic this research in order to develop actions that consider its complexity. We also emphasize new reflections about the loving suffering so that different sense possibilities can emerge propitiating a greater comprehension of human subjectivity.

Key-words: suffering; genre; loving and sexual relation; self or selfconcept.

(9)

1. Introdução

Em nossa atuação clínica em consultório privado e em um centro de saúde da rede pública, observamos que o número de mulheres que buscam atendimento psicológico é significativamente superior ao de homens. No contato com essas mulheres, individualmente ou em grupo, através de aconselhamento psicológico, orientações, psicoterapia e em visitas domiciliares, deparamo-nos, freqüentemente, com a narração feita por elas de uma experiência de sofrimento. Esse sofrimento refere-se, muitas vezes, aos relacionamentos amorosos com o sexo oposto e as queixas costumam girar em torno de um homem ciumento, incompreensivo, infiel, possessivo, viciado, agressivo etc. Elas revelam, ainda, a dificuldade que sentem em continuar ao lado de alguém que não as valoriza, não dialoga, não se entrega afetivamente, às vezes também despreza e maltrata os próprios filhos e, em alguns casos, não contribui financeiramente - ou o faz de maneira insuficiente - para as despesas do casal, ou da família.

(10)

freqüentemente, com algumas mulheres que revelaram ter tentado suicídio e/ou pensavam na possibilidade de cometer homicídio contra a amante do parceiro. Esses são apenas alguns exemplos de situações que envolvem a experiência que estamos buscando compreender neste trabalho.

Como se pode perceber, o sofrimento se faz presente em todos os casos relatados anteriormente. Entendemos que o sofrimento é uma experiência inerente à condição humana e, por isso, acreditamos que sempre será um tema atual para os estudos de várias disciplinas, dentre as quais a Psicologia Clínica. Atualmente, observamos que tal assunto tem sido amplamente discutido por profissionais da área “psi”, diante do surgimento das novas formas de sofrimento do homem contemporâneo, num mundo marcado por mudanças sociais e políticas, tais como a globalização e o neoliberalismo.

Pensamos que o sofrimento está presente em diferentes momentos da existência, colocando o ser humano diante dos seus limites e potencialidades e convocando-o a entrar em contato com o sentido da sua existência e, assim, a comprometer-se com uma escolha. Consideramos ter um caráter subjetivo, singular aquilo que é vivenciado como sofrimento. Imersa na vida humana, tal experiência é vivenciada no âmbito dos relacionamentos em geral, inclusive nas relações amorosas. No presente trabalho, estamos nos referindo ao sofrimento que é vivido pela mulher, de forma constante, predominando sobre as suas vivências de prazer e bem-estar, na esfera da relação amorosa heterossexual. Tal relação está sendo considerada como de natureza afetivo-sexual, na perspectiva da mulher e que se refere à sua vida amorosa, não implicando o critério de coabitação da díade.

(11)

nosso convívio social afirmarem conhecer alguma mulher que vivencia ou já vivenciou uma experiência desse tipo. Na verdade, percebemos, cada vez mais claramente, que o nosso cotidiano está repleto de exemplos de situações, as mais variadas, que demonstram a presença do sofrimento constante vivido pelas mulheres na sua relação amorosa. Nesse sentido, vale ressaltar a literatura de auto-ajuda, as telenovelas e os grupos de apoio à mulher, tal como o MADA (Mulheres que Amam Demais Anônimas), que existe tanto no Brasil como no exterior. Apesar de não termos a pretensão de enfocar, neste estudo, o fenômeno da violência doméstica, interessa-nos mencioná-lo, pelo fato de ele contribuir e, freqüentemente, fazer parte do sofrimento, no contexto da relação amorosa, vivenciado por um grande número de mulheres em todo o mundo, sem distinção de nível sócio e econômico, raça ou credo. No que se refere especificamente à cidade do Natal, Teixeira & Grossi (2000) revelam a existência de uma importante pesquisa, a qual constatou que, ao longo de dez anos (1986 a 1996), mais de 90% das queixas da Delegacia Especializada em Defesa da Mulher referiam-se a conflitos conjugais envolvendo agressões físicas. De acordo com as autoras, mesmo sendo agredidas fisicamente, as mulheres permanecem durante muito tempo em relacionamentos violentos, alegando, para isso, motivos tais como a prevalência do machismo masculino e a falta de independência financeira.

Surpreende-nos a constatação de que o sofrimento permanente da mulher na relação amorosa é um fenômeno presente no mundo e bem próximo da nossa experiência, ou melhor, impregnado em nossa existência. Esse tema nos convida, agora, para lançar-lhe um novo olhar, a fim de iluminá-lo, dar-lhe um sentido, fazendo-nos ir, portanto, ao seu encontro.

(12)
(13)

Vale salientar que, conforme o nosso entendimento, a experiência subjetiva diz respeito ao mundo interior do ser humano, àquilo que ele sente como particular, único, genuíno e que se expressa através do self ou autoconceito. Nesse sentido, adotamos a perspectiva teórica da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), representada pelo seu criador, Carl R. Rogers. Tal opção justifica-se pelo fato de utilizarmos o referencial humanista-existencial desde o início da nossa atuação profissional, encontrando, em vários aspectos do pensamento desse autor respaldo para a compreensão da subjetividade humana. A Abordagem Centrada na Pessoa considera o homem como possuidor de uma tendência e uma capacidade inerentes para o crescimento em termos gerais. Nessa concepção, destacamos o constructo de self, ou autoconceito, definido por Rogers (1959), após as contribuições de Eugene Gendlin (1962), como a configuração perceptual do indivíduo sobre o seu estar no mundo, a cada momento da existência, de acordo com a abertura ao fluxo de experiências que se processam. É esse entendimento do self que adotaremos neste trabalho.

(14)

na coexistência de diferentes fluxos (sociais, históricos e culturais), que atravessam o self ou autoconceito, possibilitando o seu contínuo fazer e refazer, o seu constante devir. Tal pensamento nos faz acreditar que a compreensão do nosso objeto de estudo deve alicerçar-se em um entendimento mais ampliado das relações do alicerçar-self ao qual somam aspectos da realidade cultural e histórica. Nesse sentido, é importante esclarecer que não pretendemos fazer uma reformulação teórica do constructo self, mas contribuir para uma ampliação do entendimento do uso desse constructo, ressaltando aspectos do horizonte histórico e cultural, ainda pouco considerados na abordagem teórica em questão.

Portanto este trabalho não envolve a união de abordagens diferentes, dos pontos de vista teórico, epistemológico e metodológico, tais como a ACP e a Psicologia Sócio-histórica, mas lança luz sobre alguns aspectos da dimensão social e histórica do ser humano que, no nosso entendimento, compõem o viver da mulher que permanece sofrendo na relação amorosa. Tais aspectos são, neste trabalho, a questão de gênero e do amor romântico, pois pensamos, como já dissemos, que têm estreita relação com o objeto de estudo aqui tratado. Nessa perspectiva, apoiar-nos-emos em outros suportes teóricos para iluminar o self, revelando mais amplamente o fenômeno estudado.

Seguiremos o nosso trajeto, ancorada em uma perspectiva humanista-existencial, de inspiração fenomenológica, representada por Carl Rogers, dialogando com outros autores que possam contribuir para ampliar a nossa compreensão do sofrimento da mulher na relação amorosa.

(15)

expectativas sociais, modos de pensar, sentir e agir característicos do contexto no qual o ser humano se situa. Tratando-se especificamente da mulher, observamos que, historicamente, lhe têm sido reservados modos de existência muito específicos.

Baseando-nos, então, nos questionamentos expostos, pretendemos, neste estudo, compreender a experiência da mulher que permanece no sofrimento, na relação amorosa.

Com este estudo, entendemos que os profissionais que atuam no campo da clínica poderão beneficiar-se, encontrando nele uma melhor fundamentação e instrumentalização para sua intervenção dirigida à clientela que apresenta queixas dessa natureza. Além disso, podemos estar contribuindo para o aprofundamento das teorias psicológicas sobre a mulher. Este trabalho está estruturado de forma que o leitor possa, através do segundo capítulo (Sobre gênero, amor e sofrimento), conhecer a contextualização do objeto aqui tratado, refletindo sobre o significado da palavra gênero, aspectos da trajetória histórica da mulher, a relação entre amor e sofrimento e os ideais do romantismo amoroso.

O terceiro capítulo (O enfoque centrado na pessoa: uma perspectiva humanista-existencial da subjetividade) inicia-se com uma breve exposição das principais idéias de Carl Rogers, no intuito de ampliar o nosso entendimento acerca da sua concepção de subjetividade, a partir do olhar de alguns teóricos das abordagens sócio-histórica e fenomenológico-existencial. Em seqüência, é realizada uma análise do constructo de self segundo a perspectiva desse mesmo autor, acrescida pelas contribuições de Eugene Gendlin.

(16)

No quinto capítulo (Conhecendo o sentido atribuído pelas mulheres às suas experiências de sofrimento amoroso), evidenciam-se os dados obtidos, articulando-os com o referencial teórico que alicerçou este trabalho.

(17)

2. Sobre gênero, amor e sofrimento

O presente capítulo apóia-se em suportes teóricos que, no nosso entendimento, contribuem para ampliar o uso do conceito de self em Rogers, desvelando o objeto de estudo em questão.

2.1 Entendendo o conceito de gênero

Ao enfocarmos o sofrimento na relação amorosa sob o ponto de vista da mulher, estamos trazendo, como um dos eixos de reflexão teórica deste estudo, a concepção de gênero. Este não se define pelo sexo biológico, pois os padrões de comportamento, as experiências, o modo de ser considerados como masculino ou feminino não são determinados pela carga genética, hormonal ou biológica, mas constituem aquisições feitas na vida social e cultural, desde o nascimento, estabelecendo uma hierarquia na relação homem/mulher. Matamala, Bergaloscky e Núñez (1995) esclarecem:

O processo de socialização de gênero, ao condicionar de maneira premente as identidades feminina e masculina, estabelece as bases de uma desigualdade de poder. A interiorização do papel sexual “correspondente” inunda a subjetividade de cada pessoa e a instala no lugar designado ao seu gênero, isto é, o espaço de poder é ocupado pelo homem e o espaço de não poder é ocupado pela mulher. A família, a escola, os meios de comunicação, a linguagem, os símbolos e mitos, o sistema jurídico-político, a divisão social do trabalho, as doutrinas, o sistema de parentesco, as instituições, cumprem seu papel socializador tanto na “educação” como na organização e regulação das relações de gênero (p. 08).

(18)

social, simbólica e material baseada nessa diferença (Schaiber & d’Oliveira, 1999). Nesse sentido, não podemos falar em uma natureza feminina ou masculina, pois o masculino e o feminino são constructos sociais; portanto presentes em cada época e lugar, de distintas maneiras.

Segundo Muraro (2001), a categoria “gênero” foi conceitualmente desenvolvida nos anos 80 por mulheres intelectuais, fomentando, no mundo inteiro, discussões e críticas relacionadas ao patriarcado e à sociedade de classes. Essa autora esclarece:

A nova categoria gênero, criada pelas mulheres a fim de dar conta do seu papel na história e na condição humana do fim do século XX, vem acrescentar e complementar a categoria classe social, para dar conta da existência da opressão de diversas naturezas postas na história (p. 09).

Portanto, apesar de ter surgido recentemente, o conceito de gênero é representativo de uma realidade vivida pelos seres humanos ao longo da história, realidade essa caracterizada por dicotomias e desigualdades na relação homem/mulher - evidenciada pela restrição, às mulheres, de oportunidades de sociabilidade e produtividade na esfera pública da vida - bem como pelo papel de submissão e obediência destas perante os homens (pais e/ou maridos). Assim, o conceito de gênero compreende as relações de poder que se estabelecem socialmente entre homens e mulheres, evidenciando, segundo Soihet (1997), que não se pode compreender o homem ou a mulher, “(...) através de um estudo que os considere totalmente em separado” (p.101).

(19)

gostaríamos de enfatizar que, “(...) como categoria relacional, o gênero permite identificar e diferenciar o sexo biológico da construção social do masculino e do feminino” (Silva, 2000, p.40). Acreditamos que, assumindo a categoria de gênero como perspectiva relacional, ampliamos a nossa compreensão das diversas expressões do sofrimento das mulheres na sua vida amorosa, pois entendemos que o sentido atribuído por elas a tal experiência está permeado pelos significados do contexto sócio-histórico. Nessa perspectiva, pensamos, como Biasoli-Alves (2000), que, mesmo diante das mudanças e rupturas na imagem e no papel da mulher, presentes ao longo da história, os valores e expectativas cultivados continuam existindo, embora com outros contornos, influenciando o modo feminino de estar no mundo.

2.2 Breves considerações sobre a mulher na história

No que diz respeito ao mundo ocidental observa-se, nitidamente, que, na história da humanidade, a condição das mulheres tem “(...) refletido categoricamente a perspectiva da ocupação do espaço público e privado, a partir dos papéis socialmente construídos como de homens e de mulheres” (Silva, 2000). Desse modo, Silva (2000) esclarece que o mundo do lar é tido, por excelência, como feminino, devendo ser revestido do amor materno, do amor conjugal e do sentimento doméstico da intimidade. Ele está em oposição ao mundo público, da rua, ambiente de relacionamento, inteligência e poder, reservado exclusivamente aos homens.

(20)

realização de atividades domésticas. Quanto a essa divisão sexual do trabalho, Coutinho (1995) assinala que a dedicação exclusiva das mulheres aos trabalhos domésticos criou uma barreira para sua participação autônoma no domínio da vida pública, ou mesmo impossibilitou essa participação. A vida pública era destinada aos homens e a eles cabia a função de provedores e de protetores do lar, além de possuírem o direito de tomar decisões em nome de todos os que estavam sob sua tutela.

Assim, vemos uma cultura familiar, no mundo ocidental, pautada em polaridades, tais como masculino/feminino, público/privado, dominação/submissão, razão/emoção, legitimando, por vários séculos, a exclusão das mulheres do convívio na esfera pública e limitando as possibilidades de emergirem novas configurações de convivência entre os sexos.

As derradeiras décadas do século XX evidenciaram um modo diferente de a mulher estar no mundo, ou seja, ela passou a participar ativamente dos acontecimentos de ordem política, econômica e social. Vale salientar que, em menos de trinta anos, as mulheres passaram a constituir a metade da população economicamente ativa em todo o mundo (Muraro, 2001). É interessante observar tal mudança de postura, após inúmeros anos em que a mulher esteve à margem das decisões e amplas transformações que afetaram a vida humana. Hoje, podemos afirmar que ela se distanciou, significativamente, do papel que lhe foi reservado através dos tempos, buscando novas formas para a sua existência, integrando-se ao domínio da vida pública, antes destinada apenas aos homens, em uma sociedade marcada pela estrutura do patriarcado.

(21)

foi destaque. Além disso, vale lembrar que, em nosso país, as mulheres já representam 40,4% da população economicamente ativa. Porém não podemos omitir que as desigualdades no tocante à remuneração ainda persistem, evidenciando uma desvalorização do salário da mulher. De acordo com o Censo do IBGE, de 2002, houve um crescimento do ingresso das mulheres no mercado de trabalho, estas superando em 45% o número de homens: as estatísticas apontam para a existência, na atualidade, de um percentual maior de mulheres, nas faixas etárias de 25 a 59 anos, inseridas no mercado de trabalho. Por outro lado, esse mesmo censo indica que os homens continuam a ter uma remuneração maior do que a das mulheres: em 2002, o rendimento médio da mulher foi equivalente a 70,2% da renda do homem, o que significa quase um terço a menos. A pesquisa também revela que a tendência parece ser de aproximação, pois em 1992 uma mulher ganhava, em média, 61% da renda de um homem.

É importante destacar, conforme expõe Badinter (1986), que, no final do século XX, a possibilidade de igualdade entre os sexos passou efetivamente a existir, graças ao abalo dos fundamentos da ideologia patriarcal, sistema de representações que favorecia aos homens o exercício do poder sobre as mulheres. De acordo com essa autora, os papéis sexuais eram bem delimitados até então, o que leva a crer que essa era a principal causa da desigualdade. Ela esclarece ainda que, por tal motivo, a já consolidada distinção sexual das tarefas foi substituída pela não-distinção sexual, gerando rupturas nas certezas relacionadas aos padrões de comportamento feminino e masculino.

(22)

restringir-se ao desempenho exclusivo dos papéis de mãe e esposa, o que possibilitou o estabelecimento de uma relação menos desigual com os homens.

Por outro lado, concordamos com a posição de Goldberg (citado por Giddens, 1993), quando diz que “as mulheres ainda são as principais agentes da criação dos filhos e das tarefas domésticas” (p.172). Vaitsman (2001), no contexto brasileiro, ratifica essa afirmação, ao constatar que, mesmo diante das inúmeras conquistas obtidas pelas mulheres, elas continuam sendo as “(...) principais responsáveis pela procriação e pela esfera de reprodução doméstica” (p.20). Essa situação pode significar, segundo o ponto de vista dessa autora, sobrecarga de trabalho, em vez de emancipação, principalmente se a mulher não divide as tarefas e despesas com o seu parceiro amoroso. De acordo com Badinter (1986), pesquisas realizadas sobre o dia-a-dia dos casais demonstraram que a partilha de tarefas domésticas não é eqüitativa entre os sexos, evidenciando a existência de um maior número de atividades exercidas pela mulher. Uma das conclusões apresentadas por Medeiros (2003), em sua pesquisa realizada na cidade do Natal (RN), sobre a “doença dos nervos”, endossa tal posicionamento, pois revela que a submissão aos maridos e o excesso de responsabilidades domésticas (grifo nosso), “(...) contribuem para o desencadeamento dos sintomas de nervos” (p. 112).

(23)

Ainda no tocante à dimensão de gênero, vemos que, embora inexista, nos dias de hoje, uma rigidez nas identidades masculina e feminina, entendemos que a figura da mulher continua associada ao domínio do privado, da casa e aos afazeres que lhe são “próprios”. Juntamente com o papel conquistado de profissional, indicador da independência e autonomia femininas, permanece o tradicional papel de dona-de-casa ou “rainha do lar”. Não raramente constatamos tal realidade, em nossa experiência clínica, através de queixas de clientes do sexo feminino sobre as dificuldades de conciliar as tarefas domésticas, a educação dos filhos, o papel de esposa e o desempenho no emprego. De fato, tal situação parece ser desvantajosa para o plano de carreira de qualquer mulher.

Observa-se, atualmente, especialmente nos meios mais desfavorecidos economicamente, um elevado número de mulheres que exercem a função de provedoras da família (Giddens, 1993). Em nossa vida profissional, observamos com freqüência tal situação. Geralmente, elas demonstram insatisfação, cansaço ou mal-estar diante dessa sobrecarga e isso acaba sendo, muitas vezes, o principal motivo de suas queixas de permanência no sofrimento, na relação amorosa. Segundo o Censo do IBGE, de 2002, observa-se, no Brasil, um progressivo crescimento de lares chefiados por mulheres, sendo estas viúvas, separadas/divorciadas ou casadas. O censo mostra que, em 1991 a porcentagem de lares chefiados por mulheres era de 18,1%, contrastando com a situação no ano de 2000, quando esse índice aumentou para 24,9%.

(24)

2001), em consequência, talvez, dentre outros fatores, da dificuldade humana de lidar com a diferença.

Pensamos que as mudanças, quando muito intensas, ocorrem de maneira a deixar frestas, espaços vazios nos quais circulam os antigos modos de pensar, sentir e agir, em relação a determinadas questões. É como se certas mudanças precisassem de tempo para se acomodar, para se consolidar. Como assinala Biasoli-Alves (2000), “às vezes, práticas e atitudes parecem assumir apenas e tão somente uma outra roupagem, mostrando, numa análise mais aprofundada, que a maneira de pensar certas questões ainda se encontra presa aos padrões de outras épocas”.

2.3 Amar é sofrer ? Sofrer é amar ?

Amar é um fogo invisível Uma chaga agradável Um saboroso veneno Uma doce amargura Uma deleitável doença Um alegre tormento Uma doce e feroz ferida Uma morte branda

(Fernando de Rojas)

Acreditamos que, da mesma forma que as desigualdades de gênero presentes em nossa cultura influenciam a mulher na formação de um “self” que contribui para que ela sofra permanentemente em sua vida amorosa, a idealização do amor-romântico também influencia sua maneira de se perceber no mundo e, portanto, sua experiência de sofrimento.

(25)

Vale salientar que, ao considerarmos a mulher como foco deste estudo, não estamos menosprezando o sofrimento masculino, nem pretendemos criar dicotomias de qualquer espécie. Estamos apenas delimitando nosso olhar, tendo em vista que, em nossa atuação profissional, a freqüência de mulheres que apresentam queixas desta natureza tem sido consideravelmente maior do que a de homens.

A relação entre amor e sofrimento é apontada, freqüentemente, por poetas, compositores, filósofos, além de pensadores de outros campos do saber humano e pessoas comuns do nosso cotidiano.

A literatura de cordel também trata de tal relação, como mostram os seguintes versos:

A fonte da poesia Dá força ao pensamento Para que o trovador Dentro do conhecimento Possa narrar um romance De amor e sofrimento Se o amor nos faz viver Também pode nos matar O amor é como o sol De dia pode brilhar

Mas quando uma nuvem passa

Faz o coração penar (Cavalcante, s.d., p. 01). O incêndio que o amor agita

Só a morte mesmo apaga O amor é um veneno

Que o peito do amante rasga Um só momento de amor

(26)

Um poema de Dolores Duran (1959) cuja composição musical foi feita por Carlos Lyra expressa, de forma clara e direta, a relação entre amor e sofrimento, por intermédio do título Amar é sofrer. De modo semelhante, encontramos trechos na canção popular, tanto nacional como internacional, tais como: E assim vou vivendo/Sofrendo e querendo/Esse amor doentio (Leandro e Leonardo), Mora na filosofia/Pra que rimar amor e dor (Arnaldo Passos/Monsueto Menezes), Amor da minha vida/Você me magoou/Feriu meu coração (Queen).

É interessante destacar, como aponta Menezes (citada por Moura Filho), professora de Teoria Literária, da Universidade de São Paulo (USP), que “tradicionalmente, na literatura, amor e paixão são sinônimos de sofrimento”. Acrescenta essa autora que, “nos textos literários, principalmente nas canções de amor da Idade Média, é comum observar a busca amorosa. Neste sentido, a palavra grega pathos pode significar o amor como doença”.

(27)

doença, pois a relação entre esses dois grupos é pautada no paradigma da coexistência. Portanto não há uma negação da existência de sofrimento na relação de amor; o que realmente parece ser relevante quando amamos, segundo essa linha de pensamento, é a possibilidade de auto-abertura e de contato pleno consigo mesmo, com o outro e com o processo de viver, propiciados pela experiência do amor.

Em consonância com tal perspectiva, destacamos ainda Dantas de Araújo (2000), que, em sua tese de doutorado, trata da experiência do relacionamento amoroso, tomado do ponto de vista da mulher, não integrado à vida social como um todo. A autora aborda o amor numa perspectiva não-patológica, considerando, como afirma, que “(...) o amor assume lugar nas possibilidades humanas, dentro de um espaço de criação (...)” (p. 24). Desse modo, ela chama a atenção para a importância da criatividade no desenvolvimento pessoal saudável, a qual envolve as diversas vivências, dentre as quais o relacionamento amoroso heterossexual. Uma de suas conclusões aponta para a relevância do humor e da brincadeira no relacionamento amoroso significativo, bem como para a consideração de que amor é comunicação.

(28)

2.4 O amor romântico e seus ideais

E assim os dois amantes Juraram um eterno amor Carolina disse a Jorge Cheia de pejo e rubor: Serei fiel sempre a ti Disso não tenhas temor

(Athayde)

No presente estudo, optamos por tecer considerações mais extensas acerca do amor-romântico, pois pensamos que, mesmo tendo surgido há três séculos, ele continua presente em traços ainda mantidos, embora de maneira diferente de tempos atrás, tendo em vista o surgimento de novas configurações amorosas no mundo atual, afetando o modo como a mulher se relaciona amorosamente. De maneira mais específica, entendemos que a experiência de permanência no sofrimento, da mulher, nesse âmbito, parece estar intimamente relacionada aos ideais do amor romântico. Portanto este trabalho enfatiza o amor em sua forma apaixonada, ou amor-paixão romântico, ou simplesmente amor romântico tal como designado por Costa (1999).

(29)

que o amor romântico ainda constitui um ideal almejado por grande parte das mulheres em nossa cultura, podendo contribuir para que elas permaneçam em um relacionamento amoroso gerador de sofrimento.

Por outro lado, em estudo sobre o casamento contemporâneo e as tensões entre individualidade e conjugalidade, Féres-Carneiro (1986) defende a idéia de que a autonomia e a emancipação da mulher tendem a fragmentar os ideais do amor romântico, no âmbito do casamento contemporâneo. Segundo essa autora, “as categorias de ‘para sempre e único’ do amor romântico, não prevalecem na conjugalidade contemporânea” (p.384). O sociólogo Anthony Giddens (1993) também parece assumir esse posicionamento, ao destacar a inegável e crescente igualdade sexual entre homens e mulheres, que leva ambos “(...) a realizar mudanças fundamentais em seus pontos de vista e em seu comportamento, em relação um ao outro” (p.16). Ele aponta a existência, ao longo da modernidade, de transformações na intimidade conjugal e individual que levam os casais a repensarem, na atualidade, suas idealizações sobre o amor, a sexualidade e o casamento.

Pensamos, assim como esses dois autores, que as conquistas femininas foram fundamentais para a fragilização do amor romântico, favorecendo a emergência de novas configurações das relações amorosas. Contudo compreendemos que essas mudanças e os ideais românticos coexistem, gerando tensões que, muitas vezes, revelam a sobreposição da utopia do amor romântico.

(30)

nem ao indivíduo isolado nem à sociedade abstrata, mas à relação dinâmica entre a singularidade e a pluralidade concretas” (p. 39).

De acordo com Costa (1999), no decorrer da vida, interiorizamos regras comportamentais, sentimentais e cognitivas que nos levam a ter o amor-paixão romântico como o ideal amoroso a ser buscado, perseguido incessantemente e, quando, por algum motivo, nos vemos impossibilitados de realizar o ideal imaginário do amor, construímos narrativas para explicar a impossibilidade, buscando culpar a nós mesmos, aos outros ou ao mundo, pois aceitamos de forma acrítica as “regras do amor” interiorizadas ao longo do tempo. Para o autor, inventamos e compartilhamos um determinado modo de amar que, acreditamos, constitui o atributo essencial da felicidade pessoal que almejamos; não nos preocupamos em questionar esse ideal amoroso e sua prevalência no cenário da vida atual.

(31)

seu papel no contexto sócio-histórico. Assim, Biasoli-Alves (2000) conclui, em sua pesquisa intitulada: Continuidades e rupturas no papel da mulher brasileira no século XX, que a mulher, atualmente, é um ser em construção, que busca desenvolver-se e realizar suas potencialidades, contudo “(...) os valores que os mais velhos cultivaram e buscaram imprimir nos seus filhos e netos estão presentes, hoje, mesmo que sob outras roupagens”, entranhados na cultura e resistentes a alterações radicais em curto período de tempo. Dito de outra forma, continuidades e rupturas exercem, em paralelo, a mesma força sobre a imagem da mulher no atual contexto brasileiro.

Essa convivência entre o antigo e o novo também é apontada por Nogueira (fevereiro/2004 – revista Época), em reportagem sobre o casamento neste início de milênio. A jornalista mostra que, atualmente, existe uma pluralidade de modelos de união entre homens e mulheres, porém continuam presentes, nas relações amorosas modernas, valores, normas e atitudes de tempos atrás.

(32)

como também, segundo o autor, uma continuidade do amor romântico como modelo de relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres. Diante disso, entendemos que o prosseguimento dessa forma de amar, em um contexto histórico-cultural marcado pelo consumismo, narcisismo e imediatismo, dificilmente alimentará a atração imaginária pela intimidade do sentimento, que caracteriza o amor-paixão romântico. No entanto a realidade com a qual nos defrontamos em nosso cotidiano profissional e social mostra que as pessoas, especialmente as mulheres, ainda estão acalentando essa forma de amar, tomando-a como o principal fator de felicidade e auto-realização, embora, em seus relacionamentos amorosos, vivenciem exatamente o contrário.

Considerar o amor como o ideal e a garantia da felicidade, talvez se relacione com o que Comte-Sponville (2001) afirma ao dizer que “(...) estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca” (p. 36). Para o autor, desejamos sempre aquilo que nos falta, por isso vivemos esperando ser felizes e não nos entregamos à plenitude do momento presente. Esclarece ele, ainda, que, assim como a felicidade, o amor só existe no presente, e apenas este é real; assim, o amor só se refere ao real. Desse modo, diz ainda Comte-Sponville (2001):

(...) o contrário de esperar é conhecer, agir e amar. É a única felicidade que não nos escapa. Não o desejo do que não temos ou do que não é (a falta, a esperança, a nostalgia), mas o conhecimento do que é, a vontade do que podemos, enfim o amor do que acontece e que, portanto, já nem precisamos possuir (p. 86).

Essa visão do amor aproxima-se da do amor espinosista, apresentada anteriormente, a qual tem a potência, e não a falta, como principal ingrediente.

(33)

o outro (...)” (p.10). O amor romântico precede a um modo de amar denominado por esse autor de “relacionamento puro” - ou seja, uma relação em que ambas as partes só permanecem juntas enquanto se sentem gratificadas individualmente - e permanece em tensão em relação a ele.

Além das características de monogamia, heterossexualidade e perenidade do amor romântico, o autor assinala outras, tais como a vinculação com a liberdade (descompromisso em relação à rotina e às obrigações habituais) e com a auto-realização. Segundo Giddens (1993), o amor romântico introduz a idéia de uma narrativa pessoal que envolve o eu e o outro, ignorando as questões sociais mais amplas. Como podemos entender, a díade amorosa desenvolve uma relação na qual se exalta a privacidade, o mundo íntimo e particular dos amantes, seus encontros e momentos de plenitude. Valoriza-se aqui a realização pessoal, possibilitada pelo envolvimento emocional duradouro com o outro.

(34)

transforma ao longo do tempo. Contudo essas mudanças podem ser percebidas negativamente quando, dentre outros motivos, se constrói uma imagem pouco realista de si mesmo e do parceiro que se ama; assim, estar-se-á mais suscetível a decepções, frustrações e solidão.

Silva (2002), no livro A paixão silenciosa, fruto de sua dissertação de mestrado, apresenta recortes de narrativas de duas mulheres que, assim como outras clientes, em sua experiência na clínica psicanalítica, “(...) expressam profundo sofrimento, um estado de aprisionamento psíquico ao objeto do desejo, reclusão no mundo da fantasia - forma de apaziguamento da falta” (p. 18).

(35)

É importante destacar o que Giddens (1993) afirma acerca da relação entre a mulher e o amor romântico, a saber, que o amor e seus ideais influenciaram, durante muito tempo, as aspirações femininas. Lembramos, porém, que nossa posição baseia-se na idéia de que essa influência continua presente, embora admitamos que, de maneira talvez menos intensa e generalizada, diferente de como existia há décadas.

Concordando com Giddens (1993), entendemos que o amor romântico era “(...) essencialmente um amor feminilizado” (p. 54). Para esse autor, é inconcebível não ligarmos o surgimento da idéia do amor romântico aos acontecimentos que incidiram sobre a vida das mulheres a partir do final do século XVIII, tais como a criação do lar, as mudanças na relação entre pais e filhos e a invenção da maternidade. Esclarece ainda Giddens (1993) que a idealização do papel de mãe alimentou alguns dos valores do amor romântico, e acrescenta que a divisão sexual das tarefas fez com que essa modalidade de amor fosse considerada como predominantemente feminina. Em outros termos, “(...) as idéias do amor romântico estavam claramente associadas à subordinação da mulher ao lar e ao seu relativo isolamento do mundo exterior” (p. 54). De fato, endossa Araújo (2002), “(...) os sonhos do amor romântico conduziram muitas mulheres a uma severa sujeição doméstica” (p. 76).

Como pudemos observar, diante de tudo o que expusemos, parece existir uma estreita vinculação entre sofrimento, gênero e amor romântico. Isso nos faz pensar na importância de considerarmos os processos culturais e históricos na compreensão do fenômeno em estudo, pois este não existe fora do tempo e do espaço.

(36)

(1999), ao defender a idéia de que os seres humanos precisam criar novas formas de vida bem c

omo aperfeiçoar suas convicções amorosas, considerando as atuais condições culturais. As pessoas, segundo ele, continuam insistindo em manter as regras de um jogo amoroso que a cada dia tendem a declinar, em virtude de se tornarem mais restritas “(...) aos episódios de êxtase sentimental e sexual” (p.218). O autor encerra sua argumentação dizendo:

Resta, portanto, como aconselha Solomon, procurar inventar um “neo-romantismo” mais comprometido com o mundo e, até lá, “ser humildes quanto ao nosso entusiasmo” pelo amor erótico. Sem isso, o declínio do amor-paixão pode deixar um vazio identitário que não sabemos como ocupar (p. 218).

Nessa perspectiva, também lembramos alguns pensadores contemporâneos, tal como Guatarri (1999), que propõe a reinvenção de modos de existência singulares, distanciados da reprodução de padrões comportamentais, enquadrados em referências pré-estabelecidas, avessos ao modo de existir que se permite ser afetado pelo fluxo contínuo de experiências e que acolhe o desconhecido, a incerteza criadora, o desassossego. Lembramos ainda Dantas de Araújo (2000), ao apostar na possibilidade de o par amoroso construir um relacionamento ancorado na criatividade, a qual é capaz de permitir “(...) a instalação da mudança, da descontinuidade que carrega, em sua metamorfose, elementos de continuidade e permanência” (p. 23).

(37)

parece distanciá-las do contato com o seu potencial de crescimento. Entendemos que é como se elas não estivessem abertas ao movimento incessante do devir, ou não se percebessem nesse movimento. Alheias ao seu próprio querer? Percebendo-se incapazes de se apropriar de sua própria existência? Quem sabe, prisioneiras de sua auto-imagem e do modo de vida previsível e “seguro” que construíram para si, inertes à capacidade de extrair prazer, satisfação e bem-estar do momento presente bem como de encarar a vida e suas vicissitudes com mais leveza e suavidade.

(38)

3. O enfoque centrado na pessoa: uma abordagem humanista-existencial

da subjetividade

Nossa ênfase é na singularidade da experiência de permanecer sofrendo na relação amorosa e no como tal experiência é vivenciada pelas mulheres participantes desta pesquisa.

É oportuno destacar que a nossa visão de homem e do modo como a subjetividade é abordada e concebida, inicialmente muito próximas da visão de Rogers, distanciou-se um pouco dessa posição, pois passamos a questionar alguns limites teóricos, ao depararmo-nos com o fenômeno em investigação neste trabalho buscando compreendê-lo. Nessa alteração de perspectiva, vemos como imprescindível a consideração da dimensão histórico-cultural da subjetividade humana, aspecto que, ao nosso ver, não foi tratado satisfatoriamente por Rogers em sua abordagem teórica. Não temos a pretensão de formular novos conceitos teóricos, mas sim desejamos chamar a atenção para a configuração histórico-cultural do ser humano, a qual constitui o contexto da formação do self. Entretanto, cabe-nos interrogar a respeito da concepção de subjetividade tal como entendida por Rogers, confrontando-a com o pensamento de autores contemporâneos identificados com a perspectiva sócio-histórica, tais como Mancebo (2002), Rey (2003) e Miranda (2000). É importante salientar que o conceito de subjetividade não é abordado diretamente por Rogers, mas as idéias e pressupostos que compõem a sua teoria oferecem um entendimento do modo como a dimensão subjetiva é concebida por esse autor.

(39)

formularam um novo entendimento de alguns aspectos da perspectiva rogeriana. Estaremos, assim, exercitando o olhar crítico sobre a nossa posição teórica, o que consideramos de especial relevância neste trabalho. Prosseguiremos aprofundando o nosso entendimento acerca da subjetividade, segundo a perspectiva de Rogers, focalizando o self ou autoconceito, com o qual, como já esclarecemos, presumimos relacionar-se a experiência que buscamos compreender.

3.1 Um olhar crítico sobre o conceito de subjetividade na perspectiva de Rogers

O enfoque centrado na pessoa tem como criador o psicólogo Carl R. Rogers. Tal perspectiva considera, como centro de suas preocupações, a pessoa, concebendo-a como dotada de um potencial para o desenvolvimento em sentido pleno. Ressalta o respeito pelo ser humano bem como valoriza “(...) o papel dos sentimentos e da experiência como fator de crescimento” (Moreira, 2001, p. 41).

(40)

Nessa sucinta introdução ao pensamento de Rogers, observamos, de imediato, uma visão de subjetividade semelhante à das abordagens psicoterapêuticas em geral, cujos postulados enfatizam a constelação familiar do indivíduo e os aspectos intrapsíquicos. Com isso, os processos sócio-históricos mais amplos costumam ser negligenciados, parcialmente ou em sua totalidade. Há autores contemporâneos que, assim como Miranda (2000), defendem a idéia de que o reduto “psi” não dá conta da heterogeneidade da subjetividade contemporânea, sendo necessário recorrermos a disciplinas, tais como sociologia, economia, arte, antropologia, e outras.

(41)

subjetividade, destituída de seu caráter histórico e social. Essa autora conclui que, “na psicologia, o conceito de indivíduo muitas vezes apresenta-se como um a priori não problematizado, tanto nas suas formulações teóricas, quanto em seus desdobramentos prático-profissionais” (p. 101).

Concordamos com Dutra (2000), no seu entendimento de que a teoria psicológica de Rogers “(...) assume como prioridade o vivido, a experiência subjetiva do indivíduo, ou seja, o mundo interno da experiência” (p 19). Assim, vemos a subjetividade, na teoria rogeriana, situada no campo individual, concebida como dimensão interior, reduto intrapsíquico a partir do qual derivam as condutas humanas.

Em sua teoria da personalidade e da conduta, Rogers (1951), enfatiza que “a realidade é, fundamentalmente, o mundo particular das percepções do indivíduo” (p. 469). Ao ressaltar o valor atribuído ao mundo interno, o autor parece defender a existência de duas realidades: a interior e a exterior, sendo esta última dependente da primeira. Essa constatação é coerente com a assertiva de Domènech et al (2001) acerca da dificuldade da ciência psicológica em romper com a tradição cartesiana.

(42)

maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável” (pp. 68-69). Nesse sentido, tais autores não vêem o termo identidade como algo que se afirma pelo contraste, mas como um rótulo ou algo semelhante que aprisiona os potenciais de singularização.

A configuração cultural e histórica do ser humano também é valorizada por alguns autores de orientação fenomenológico-existencial, dentre os quais Dutra (2000) e Moreira (2001). Estas autoras buscaram ampliar a sua compreensão da teoria de Rogers, destacando e criticando alguns limites dessa abordagem, especialmente no que diz respeito à desconsideração do caráter histórico e mundano do ser humano. Nesse sentido, Moreira (2001) afirma que Rogers ignora a realidade concreta, o contexto sociocultural, em virtude de seu objetivo restringir-se “(...) a pensar em uma maneira mais adequada e efetiva de relacionar-se interpessoalmente” (p. 58). Acrescenta que a psicoterapia de Rogers precisa evoluir “(...) para uma concepção de homem enquanto ser-no-mundo e, como tal, como fenômeno em mútua constituição com o mundo” (p. 162).

(43)

Um aspecto, ao nosso ver, fundamental, a ser ressaltado na teoria de Rogers é a sua forte ênfase na dimensão processual do ser humano, expressando, segundo Dutra (2000), uma forma de ver a subjetividade ancorada na compreensão da “(...) existência humana como um processo que se pauta nas possibilidades de um poder-ser (grifo nosso) que se constrói a cada momento da experiência” (p. 32). A processualidade do sujeito, no curso de sua ação, também é defendida por autores da perspectiva sócio-histórica, dentre os quais aqueles que vimos citando neste capítulo. Isso nos leva a afirmar, de maneira, talvez, provocadora, que pensamos ser esse um fio condutor que parece aproximar essa perspectiva da teoria de Rogers. Nesse sentido, vale ressaltar o que Miranda (2000) afirma: que pensadores como Deleuze e Guatarri apontam para uma mudança de paradigma, rejeitando a constitutividade e adotando a processualidade, na abordagem dos fenômenos e da própria subjetividade. Em outros termos, podemos dizer que a constante abertura ao devir e a manutenção desse fluxo contínuo são primordiais para a construção de uma nova sensibilidade, de uma configuração existencial reveladora de singularidade. Urge, portanto, como destaca a autora, que o ser humano abra mão de referências identitárias, que aprisionam sua subjetividade. Assim, as abordagens teóricas referidas neste estudo, apesar de apresentarem concepções de subjetividade radicalmente distintas, demonstram a relevância de estarmos em constante devir, abertos ao processo de fluidez característico do viver. Elas parecem aproximar-se no que diz respeito à crença na possibilidade do ser humano existir como um processo, desencadeando mudanças construtivas em sua vida, em contato com os sentidos que vai dando à sua existência.

(44)

especialmente no contexto familiar do qual a pessoa faz parte. A subjetividade é, ainda, concebida como um mundo íntimo e privado, constituído por experiências que fluem constantemente, as quais só são acessíveis ao próprio indivíduo e, em sua maioria, constituem a base do campo perceptivo. Este fundamenta o autoconceito ou self, principal referência para as ações humanas. Tal concepção de subjetividade, no nosso entender, carece de contextualização histórico-cultural, de focalização na existência do mundo concreto, como bem sinalizam os humanistas que criticam essa abordagem.

Um parêntese aqui se faz necessário, em virtude de, por outro lado, acharmos pertinente que uma abordagem psicoterapêutica, oriunda do campo da clínica, tal como a que originou a teoria de Rogers, enfatize a constituição da subjetividade com grande ênfase na dinâmica familiar do indivíduo, pois observamos, em nossa prática profissional, que esse aspecto, embora não seja o único, como vimos sinalizando, parece afetar sobremaneira o modo como o indivíduo existe no mundo. Inclinamo-nos a pensar, ainda, que a diferença entre as perspectivas teóricas aqui abordadas diz respeito, sobretudo, à ênfase atribuída aos aspectos que constituem ou formam a subjetividade humana, o que nos faz ver que toda teoria possui suas limitações, constituindo formas apenas diferentes de olhar a realidade. Por fim, ainda no que se refere à concepção de subjetividade na teoria de Rogers, ressalta-se um pressuposto esressalta-sencial, que parece aproximar, como já vimos, tal abordagem da perspectiva sócio-histórica, a saber, o caráter processual e dinâmico da subjetividade, assim como o seu poder de construção e re-construção. Esse aspecto, apesar de, pelo que nos parece, ser comum a todas as teorias psicológicas, é significativamente valorizado pelas abordagens em questão.

(45)

como os que citamos até este ponto do capítulo. Apesar de concordarmos com uma parte dessas críticas, continuamos ancorada no pensamento de Rogers e na forma como ele concebe a subjetividade, respaldada pelas contribuições de Eugene Gendlin, apontadas adiante. Isso não implica, no entanto, correndo o risco de ser sermos repetitiva, fecharmos os olhos para a realidade social e histórica, na qual a subjetividade se constitui e que permeia os sentidos que o ser humano atribui às suas experiências.

3.2 Entendendo o self ou autoconceito

Inicialmente, focalizaremos a concepção de self de acordo com as idéias e pressupostos formulados por Rogers e, mais adiante, apresentaremos tal constructo à luz das contribuições de Eugene Gendlin. Esclarecemos, no entanto, que optamos por articular teoricamente a questão da permanência no sofrimento com o self e outros aspectos da ACP, apenas no capítulo que trata da discussão deste trabalho.

A teoria da personalidade de Rogers é fruto da experiência clínica desse autor, que ouvia pacientemente as gravações das sessões com seus clientes, elaborando, assim, importantes hipóteses. Rogers (1974), tinha uma constante preocupação, com o rigor científico de suas formulações teóricas, haja vista que tinha como importante objetivo “(...) submeter a dinâmica e os resultados da terapia a rigorosas investigações experimentais”(p. 202). Esse aspecto evidencia um posicionamento crítico e ético daquele teórico, na formulação de pressupostos, produzindo uma das abordagens mais consistentes e coerentes no campo da psicologia.

(46)

imutáveis desta (Rogers, 1974). Esse autor considera sua teoria como sendo de natureza fenomenológica e existencial, apoiando-se nas teorias organísmicas da personalidade e nas idéias dos fenomenólogos Snygg e Combs (1949).

O conceito de si mesmo ou self é central na teoria da personalidade de Rogers. O self é um fator que orienta a conduta humana, ou seja, a configuração mutável das percepções que o indivíduo tem de si próprio fundamenta as suas ações no mundo. Essas percepções envolvem as qualidades e defeitos, valores, capacidades e limites, atributos, ideais e características que o indivíduo reconhece como parte de si mesmo, de sua identidade. Essa estrutura perceptual constitui a base de todas as percepções que envolvem o “experienciar” do indivíduo em cada momento de sua existência; ou seja, o mundo é percebido pelo indivíduo a partir da noção que este tem de si mesmo.

(47)

É importante esclarecer que o conceito de si mesmo se forma à medida que a criança interage com seu ambiente, em especial com as pessoas significativas presentes em seu meio. Nessa interação, o indivíduo, durante a infância, vai construindo “(...) conceitos acerca de si mesmo, acerca do ambiente, e acerca de si mesmo em relação com o ambiente” (Rezola, 1975, p. 152). A criança busca conservar o amor dos pais e, conseqüentemente, conservar sua própria estima. Em virtude das atitudes, muitas vezes, avaliativas e pouco receptivas dos pais, a criança, movida por tal impulso ou necessidade básica, introjeta valores alheios como se fossem próprios, e esses valores vão formando parte do seu campo perceptual. Assim, ela se distancia progressivamente de suas experiências reais, negando certas experiências e distorcendo outras, com o intuito de manter o apreço das pessoas socialmente significativas e a imagem de si mesma. Estabelece-se, dessa forma, uma incongruência entre a experiência e o conceito de si mesmo, de modo que o núcleo do conflito psíquico se dá justamente, conforme esclarece Rezola (1975), pela “(...) discrepância entre o que acontece em termos organísmicos e as percepções conscientes de si mesmo” (p. 154). Em virtude disso, acrescenta o autor, a conduta do indivíduo não se dirige para a satisfação das necessidades, mas para preservar a rígida estrutura do si mesmo, comprometendo a tendência atualizante.

(48)

de outros indivíduos, adotando uma maneira de agir conhecida ou valendo-se de um código de ação definido por um grupo ou uma instituição, fechando-se à sua experiência real, sentida, que poderia fundamentar as suas ações de modo a garantir um maior nível de correspondência entre a experiência e a consciência. Sobre isso, Rogers (1951) enfatiza que as atitudes dos pais costumam ser introjetadas e experimentadas pela criança, “(...) como se estivessem baseadas em conclusões alcançadas pelo próprio aparelho visceral e sensorial” (p. 483). Configura-se, assim, um autoconceito baseado parcialmente numa simbolização distorcida .

Ao debruçarmo-nos sobre a teoria da personalidade de Rogers, remetemo-nos ao fato de que em 1947, Rogers escreveu um artigo que representou o esboço de sua posterior teoria da personalidade, abordando a estreita relação existente entre o self e a conduta humana. Rogers adota uma perspectiva fenomenológica, enfatizando o ponto de vista subjetivo da pessoa. Uma das hipóteses apresentada por ele refere-se ao si mesmo (self), como sendo “(...) um fator básico na formação da personalidade e na determinação da conduta” (Rezola,1975, p.107). Isso denota que, para o autor, não devemos pensar a personalidade, o si mesmo e a conduta como aspectos independentes, mas inter-relacionados. A segunda hipótese apresenta a idéia de que a conduta é orientada pela percepção que o indivíduo tem da realidade. A última hipótese chama a atenção para a globalidade das percepções relativas ao próprio indivíduo, de modo que, quando em coerência com o conceito de si mesmo, a pessoa é considerada psiquicamente adaptada.

(49)

fenomênico, como esclarece o autor, é de fundamental importância na formação do self, pois este abrange as sensações sensoriais e viscerais que são simbolizadas ou experimentadas pela consciência.

O conceito de si mesmo abrange todas as percepções do indivíduo, as quais se organizam de modo fluido e mutável, possibilitando um processo de reorganização contínua da sua configuração. Como já assinalamos, a teoria da personalidade de Rogers concebe a adaptação psicológica como uma “(...) congruência ou coerência entre o organismo e o self” (Rezola, 1975, p.211). A congruência, nessa teoria da personalidade, refere-se ao “(...) acordo interno entre o conceito de si mesmo e a experiência” (p.213). Ela requer um contato constante do indivíduo com o fluxo de sentimentos e experiências que se processam a cada momento da existência.

(50)

contexto de relações no qual este se encontra inserido. Tais percepções compõem o autoconceito.

Moreira (2001) endossa esse aspecto da teoria da personalidade de Rogers, afirmando que este prioriza a dimensão subjetiva e individual da pessoa, referindo-se ao mundo no qual o indivíduo situa-se como sendo essencialmente subjetivo e pessoal. O próprio Rogers (1951), em sua teoria da personalidade e da conduta, marca mais claramente essa ênfase atribuída aos processos subjetivos e pessoais do indivíduo, ao afirmar que “o organismo reage ao campo perceptivo tal como este é experimentado e apreendido. Esse campo é, para o indivíduo, realidade” (p.468). Desse modo, entendemos que, para Rogers, o mundo não existe em si, pois depende da percepção que o ser humano tem dele. Dessa forma, a maneira como cada indivíduo existe no mundo, ou seja, as escolhas e ações realizadas no cotidiano, são orientadas pela percepção que ele tem dos seus valores, sentimentos, atitudes, emoções, limites, enfim das suas experiências. Tal percepção constitui o referencial de realidade que o ser humano possui.

(51)

Apesar de concordarmos com a relevância do self na orientação dada às ações humanas, percebemos uma lacuna no modo de abordagem desse constructo pela teoria rogeriana, o que nos sugere a seguinte indagação: como os aspectos sociais, históricos e culturais, de maneira ampla, atuam no desenvolvimento do autoconceito do indivíduo? Não temos a pretensão de responder a essa pergunta em toda a sua amplitude e complexidade, embora reconheçamos sua relevância e pertinência face às limitações relativas ao próprio constructo de self. Tal questionamento parece guardar relações com o que Dutra (2000), em seu estudo sobre a compreensão de tentativas de suicídio na adolescência, afirma sobre o self. Segundo essa autora, a noção de self, tal como apresentada por Rogers em sua teoria da personalidade, carece de uma perspectiva mais ampla, no que diz respeito ao seu desenvolvimento e à sua relação com o mundo concreto.

Diante dessas colocações, achamos pertinente destacar Rey (2003) - que, como já afirmamos, defende uma visão da subjetividade fundamentada na perspectiva sócio-histórica - expõe acerca do aspecto social na psicologia humanista, a saber: “que todos os autores humanistas são sensíveis à significação do social no desenvolvimento psíquico” (p.62), porém, como observa o autor, tendem em sua maioria a negligenciar o contexto histórico que dá sentido aos processos subjetivos além de, segundo observamos, enfatizarem o aspecto social em sua dimensão micro, ou seja, restrita ao núcleo familiar.

(52)

perceptual e mutável; acolhe as características que o indivíduo considera como fazendo parte de si, formando o seu autoconceito. Este último pode estar em concordância com a experiência sentida pelo indivíduo ou em dissonância em relação a ela, neste caso, gerando uma conduta inautêntica (Rogers, 1977). Como afirma Dutra, de maneira esclarecedora,

A congruência passa a ser considerada por Rogers como um processo de comunicação interna, quando a experiência sentida é simbolizada corretamente na consciência. Funcionar de forma congruente significa contactar com a experiência sentida e poder representá-la na consciência, sem que seja preciso distorcê-la ou negá-la, em função de um autoconceito já organizado, ao qual determinadas experiências podem mostrar-se incompatíveis. Essa maneira de funcionar consistiria, então, num modo incongruente de ser que, na verdade, significa agir de forma inautêntica, fundada numa concepção de si não verdadeira; seria assumir valores de outros, seria alienar-se do seu si mesmo (p. 26).

Vale salientar que o conceito de congruência foi revisto e reformulado por Rogers, a partir da contribuição do filósofo Eugene Gendlin (1970), com a sua teoria da experienciação e da mudança de personalidade. Com sua teoria, Gendlin objetivava promover uma aproximação entre a filosofia e a psicoterapia de Rogers, contribuindo para um novo entendimento da teoria da personalidade deste último autor (Spiegelberg, 1972).

(53)

que a experienciação “(...) se refere ao sentido individual dos significados pessoais; é um processo de sensibilidade interna mais do que qualquer outra coisa” (p. 13). De acordo com o próprio Gendlin (1962), a experienciação diz respeito à “(...) experiência concreta, o funcionamento puro, presente e contínuo do que ordinariamente é chamado experiência” (p. 11). É ainda definida como “o processo do sentimento corporal concreto, o qual constitui a questão básica do fenômeno psicológico e da personalidade” (Gendlin, 1970, p.138). Adotando essa nova perspectiva, Rogers (1963) entende a experienciação como sendo o “(...) sentimento fluido de ter experiências (...)”, ou seja,

(...) essa corrente parcialmente informe de sentimentos que temos em todo momento. É pré-conceitual, contém significados implícitos; é algo basicamente prévio à simbolização ou conceitualização. Pode ser conhecido pelo indivíduo mediante a referência direta - isto é, atendendo interiormente a este fluxo de experiências. Esta referência direta é uma diferenciação fundamentada em uma atenção ou indicação subjetiva ao processo de experiência. Este processo fluente é suscetível de simbolização e esta pode estar baseada na referência direta (p. 126).

Partindo dessa perspectiva, estar em congruência implica a abertura ao fluxo de experiências que se processam a cada momento da existência. Isso vai além da mera consonância entre a experiência e a consciência. A congruência pode ainda ser entendida como a consciência plena do processo de experienciação, um novo modo de experienciar a si mesmo, não se tratando de uma consciência meramente intelectual do processo de sentimentos, pois se refere a “(...) um sentir profundo, concreto, pleno, o próprio processo de experiências do momento” (Rezola, 1975, p. 281).

(54)

à sua experiência possibilita que seus valores derivem de seu próprio organismo, sem que isso represente, contudo, que ela prescinda dos valores e significados sociais (Rezola, 1975).

Posto isso, concebe-se a congruência como um conceito fundamentalmente dinâmico e processual, um modo de existir caracterizado pelos próprios sentimentos, que fluem continuamente.

Ao ocupar um lugar central na teoria de Rogers, o conceito de experienciação possibilita um novo entendimento do self. Assim, tal constructo, após as contribuições de Gendlin, não se fundamenta mais no acordo ou desacordo entre o que o indivíduo pensa a respeito dele (como o indivíduo se vê) e as suas experiências, mas constitui o modo de existir e de perceber-se no fluxo da existência, a partir da sua abertura ao processo de experienciação. Sobre esta questão, Dutra (2000) conclui que “(...) o entendimento de Rogers sobre o que constitui o self poderia repousar numa compreensão filosófica que prioriza a experiência subjetiva; contudo, ao mesmo tempo, poderia também parecer contemplar o estar-no-mundo do indivíduo à medida em que coloca o campo fenomenal como parte dessa experiência” (p.32).

(55)

fenomenologia heideggeriana para ampliar o seu entendimento do self, a partir das contribuições fornecidas por Gendlin.

No caso de nossa pesquisa, presumimos que a experiência de sofrimento constante na relação amorosa relaciona-se com a maneira como a mulher se percebe, no fluxo da existência, em sua relação com os outros e consigo mesma, de acordo com o seu acesso ao processo subjetivo de referência interna (experienciação). Essa configuração perceptual indica o sentido que ela está dando à sua vida, o qual se vela e se desvela no fluxo contínuo da existência.

(56)

4. O caminho escolhido para a compreensão da questão

Entrar realmente no mundo do outro, com aceitação, cria um tipo de vínculo muito especial que não se compara a nenhuma outra coisa que eu conheça.

(Carl Rogers)

Acreditamos que as pessoas criam sentidos para as experiências que vivem no decorrer de suas vidas e que estes são uma expressão de singularidade, a qual se constitui e se insere em um contexto plural, social e histórico, sendo, portanto, perpassada pela presença do outro. Nessa perspectiva, entendemos que os sentidos atribuídos pelas mulheres à sua experiência de sofrimento permanente na relação amorosa, dizem respeito, em especial, ao mundo íntimo de sensações, idéias, emoções e percepções, construído ao longo de suas vidas. Assim, o self constitui um aspecto da subjetividade, com qual se relaciona, como já ressaltamos, a experiência que estamos investigando. Lembramos que, de acordo com o nosso entendimento, o self nas mulheres participantes deste estudo é constituído e permeado não apenas pela dinâmica familiar, mas também por aspectos da realidade histórica e cultural circunscritos (especialmente) à dimensão de gênero e aos ideais do amor romântico.

Esta pesquisa encaminhou-se, portanto, na direção da experiência, a qual buscamos compreender através da narrativa, que é uma das suas formas de expressão. Carl Rogers (1977) vincula a atividade de pesquisa à experiência:

(57)

minha opinião, a finalidade capital deste tipo de empreendimento é a organização coerente de experiências pessoais significativas. A pesquisa não me parece, pois, alguma atividade especial, quase esotérica, ou um meio de adquirir prestígio. Vejo a pesquisa e a teoria como um esforço constante e disciplinado visando descobrir a ordem inerente à experiência vivida (p.149).

Desse modo, esclarecemos que o caminho percorrido para obtermos a compreensão do fenômeno em investigação fundamentou-se na pesquisa qualitativa, modalidade de pesquisa que busca aprofundar e compreender, de forma detalhada, um determinado problema (Richardson, 1999). Um dos aspectos relevantes desse tipo de pesquisa diz respeito ao envolvimento do pesquisador com o(s) participante(s) da pesquisa, que, de acordo com Minayo (1993), “(...) em lugar de ser tomado como uma falha ou um risco comprometedor da objetividade, é pensado como condição de aprofundamento de uma relação intersubjetiva” (p. 124). Assim essa autora acrescenta que, na situação de entrevista, “assume-se que a inter-relação contempla o afetivo, o existencial, o contexto do dia-a-dia, as experiências, e a linguagem do senso comum, e é a condição ‘sine qua non’ do êxito da pesquisa qualitativa” (p. 124). Cabe salientar que, neste trabalho, tal modalidade de pesquisa está alicerçada na fenomenologia.

4.1 O método fenomenológico de Heidegger

Referências

Documentos relacionados

Para entender como se forma a imagem do slide sobre a tela, podemos usar dois raios luminosos que partem de um ponto P do dia- positivo (Figura 10).. Como foi feito anteriormente,

De fato, a aplicação das propriedades da regra variável aos estudos lingüísticos além da fonologia não constitui assunto tranqüilo, seja porque a variável passa a ser

Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.. A gente se acostuma a

Suspiro uma, duas, centenas de vezes… Levo as mãos à cabeça…Bagunço cabelo,  escorre uma lágrima… arrumo o cabelo e o travesseiro leva um tapa.. Estalo os dedos  mordisco

• Eu sigo a dieta direitinho, mas não consigo mais emagrecer (ou até ganho peso)!. • Consigo fazer a dieta por no máximo um mês, depois disso, se

E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a

— Mas se você decidir que não quer mais ficar com ele, minha porta está aberta..

E o Anjo do Senhor Jesus Cristo que é o profeta da Dispensação do Reino vem à Igreja de Jesus Cristo neste tempo final, enviado por Jesus Cristo para lhe dar testemunho