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4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1 Incentivos e barreiras para a realização do teste de HIV no nível

4.1.1 Incentivos ao teste de HIV no âmbito individual e social

4.1.1.1 Percepção de risco

4.1.1.1.2 Conhecimento da sorologia do (ex) parceiro

Doze entrevistados relataram que o conhecimento do seu envolvimento sexual com uma pessoa que vive com HIV foi a principal informação que os motivou para a realização do teste. A busca pelo teste foi mais rápida nesses casos, apesar dos medos e incertezas de qual seria o resultado do exame. A associação do HIV e da Aids com a morte ainda é muito presente nas falas dos participantes e saber que tiveram contato íntimo com alguém que vive com HIV, algumas vezes foi o suficiente para pensar que estava “morta”, ou seja, com a infecção, como demonstrado na fala:

Estava namorando e quando a gente terminou, eu descobri que ele tinha HIV e eu tinha transado algumas vezes com ele sem camisinha. Só que por não ter conhecimento, eu não sabia que uma pessoa com carga viral baixa não transmite HIV. Aí fiquei louco, pensei: ‘ai, estou morta’. Dizia que eu estava

morta, carimbada, estava baleada, estava com a “tia29” (MIGUEL, Gay, 21 anos, ensino médio completo, soronegativo).

A fala de Miguel está de acordo com Paicheler (1999) que mostra que conhecer alguém com HIV aumenta a percepção de risco, aproximando a possibilidade da infecção na vida. A falta de conhecimento sobre a transmissão do vírus e da evolução da doença, juntamente com a associação social da Aids com a morte fez com que o informante rapidamente buscasse o teste de HIV, pensando que já estava com Aids e consequentemente morto. Essas construções sociais estigmatizantes geram ainda mais sofrimento diante da possibilidade de uma enfermidade, deixando esse momento ainda mais aversivo.

As metáforas ‘carimbada’ e ‘baleada’ denotam a marca dos discursos sociais em relação à Aids que produzem tanto as normas de prevenção como a subjetividade dos indivíduos. Na fala de Miguel podemos observar a transposição para si desses termos, pois antes mesmo de realizar o teste de HIV e de receber o resultado, o indivíduo passa a se sentir, a se perceber e a se nomear do modo semelhante aos discursos construídos acerca do HIV e da Aids, conforme o que Foucault (1998) denomina de experiência.

Portanto, a associação da Aids com a morte aumenta a vulnerabilidade ao HIV, pois produz estigmas que acarretam em silenciamentos acerca da sua sorologia, em isolamento dos círculos sociais, falta de apoio psicológico, e algumas vezes, o distanciamento do serviço de saúde por achar que “já está morta”, antes mesmo de realizar o teste.

Outro critério relatado como motivador para o teste, após saber da sorologia do ex-parceiro, foi a possibilidade de estar infectado e transmitir para o parceiro atual, como declara o entrevistado:

A primeira vez que eu fiz o teste foi porque eu namorava um menino e ele transava com várias pessoas. Eu transei com ele sem camisinha, me ligaram e disseram que esse menino estava com ‘a tia’. Eu já tinha transado com meu outro namorado sem camisinha, aí me desesperei, porque além de eu estar em risco, coloquei a vida de outra pessoa em risco (LUIZ, bissexual, 23 anos, ensino superior incompleto, soronegativo).

Saber que o namorado possuía múltiplas parcerias também foi um motivo para que Luiz buscasse o teste, mostrando que possui a informação que a diversidade de

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“Tia” refere-se à “tia Sida”, uma das formas utilizadas por gays ou homossexuais para dizer que alguém tem HIV ou Aids sem citar diretamente o nome da doença.

parceiros pode aumentar sua vulnerabilidade em relação ao vírus. No entanto, percebemos que apesar de não ter havido fidelidade do relacionamento passado, que o fez se perceber com risco, no novo relacionamento ele também não utiliza preservativo. Nesse caso, parece que o participante só se percebeu com risco ao ponto de motiva-lo para a realização do teste após possuir o conhecimento de algum fato que signifique a possibilidade de estar infectado, como por exemplo, saber que o ex tinha múltipla parceria e que o mesmo estava positivo. Esse fato nos faz pensar que ter relações desprotegidas parece não ter o mesmo impacto como incentivo ao teste se comparado com o conhecimento do diagnóstico positivo do (ex)parceiro, apesar de as recomendações do Ministério da Saúde de quando se testar, presentes no sítio Fique Sabendo.

O cuidado com o outro presente na fala de Luiz também foi frequentemente relatado, principalmente entre os informantes soropositivos. Nesse estudo, um participante que vive com HIV revela de modo semelhante ao estudo de Reis e Gir (2005) que a desconfiança em relação à eficácia da camisinha e o medo de contaminar a esposa faz com que ele coloque mais de um preservativo no ato sexual: “nas últimas vezes que eu e minha esposa tivemos relação, eu usava duas camisinhas por prevenção. Porque se uma estourar, uma vai garantir, tá entendendo?” (José, vive com HIV desde 2006). O medo de infectar o parceiro e de se infectar associado à ideia do alto contágio do vírus pode fazer com as pessoas utilizem estratégias exageradas de prevenção acreditando que estão protegendo mais a si e ao outro quando na verdade ficam mais suscetíveis.

Apesar de o cuidado para não infectar o outro, relatado pelos informantes que vivem com HIV, alguns indivíduos soronegativos acreditam que estes “fazem a linha louca, de sair espalhando pra todo mundo, de dizer “ah, porque estou carimbada, não tem mais jeito, vou atrás do resto do povo e vou sair matando todo mundo” (Aaron, 22 anos, gay, ensino médico completo, soronegativo)”. Esse pensamento está de acordo com a explanação de Mott (2002) acerca do modo como as autoridades e a sociedade, nas primeiras décadas da Aids, enxergavam as pessoas que viviam com HIV/Aids como seres revoltados e vingativos dispostos a propagar a epidemia intencionalmente.

Embora possa haver pessoas que transmitam o HIV intencionalmente, essa ideia não deve ser generalizada, mas sim vista com cautela, pois ela contribui para aumentar a vulnerabilidade das pessoas com HIV, uma vez que eleva o estigma e o preconceito em relação a elas, bem como retarda o diagnóstico precoce e o acesso ao

tratamento (GUIMARÃES, 2011). Além disso, esse pensamento transpõe a responsabilidade da prevenção apenas ao parceiro soropositivo, colocando o outro na posição de vítima, caso seja infectado. Uma das dificuldades de se colocar como sujeito ativo para cuidar da sua saúde pode ser devido à interpretação do HIV como uma infecção distante de si, ainda mais por ser imperceptível pela aparência.

Um dos participantes realizou o teste de HIV após a revelação do parceiro de que era soropositivo. Segundo ele, as relações sempre ocorriam com camisinha, mas uma vez ele retirou o preservativo durante a relação sexual devido à influência do álcool. Quarenta dias após, o parceiro revelou o diagnóstico positivo e ele realizou o teste novamente. O fato de o parceiro conhecer o seu estado sorológico e não ter revelado e ter permitido que a relação continuasse mesmo sem preservativo fez com que o relacionamento se rompesse, pois o participante se sentiu desrespeitado em seu direito de escolha, como mostra a fala a seguir:

Depois que ele disse que era soropositivo e não me deu direito de optar se eu queria ou não me expor, aí pronto, acabou. Acabou o desejo, acabou o respeito, a admiração, acabou tudo. Eu fui irresponsável porque tirei a camisinha, mas poderia não ter acontecido, porque ele tinha a consciência que vivia com HIV (FÁBIO, 35 anos, homossexual, superior incompleto, vive com HIV há duas semanas).

Esse trecho pode exemplificar a complexidade do tema HIV/Aids ao envolver também aspectos éticos e do direito penal diante da transmissão do vírus para outrem. Felismino, Costa e Soares (2009) mostram que as pessoas que vivem com HIV sabem que tem o dever de assegurar a saúde do outro e esse cuidado é visto como essencial pelos mesmos. Por outro lado, devido à estigmatização da Aids, a revelação do diagnóstico positivo para o parceiro é um momento bastante difícil, uma vez que sinaliza prejuízos morais, discriminação e marginalização contribuindo para que o silêncio prevaleça nesses casos. Os autores argumentam que os profissionais da saúde devem motivar o usuário que revele ao seu parceiro a sua sorologia em um momento propício, ao mesmo tempo em que devem valorizá-lo como pessoa e respeitar os seus direitos.

No Brasil não há uma lei específica que verse sobre a questão da transmissão intencional do HIV, mas desde 2000 os juristas e legisladores tendem a interpretar a questão como ofensa à integridade corporal ou a saúde de outrem, resultando em enfermidade incurável, podendo a sanção ser de crime doloso (intencional) ou culposo (não intencional, mas há displicência), sendo dever da pessoa

que vive com HIV utilizar medidas de prevenção para evitar infeccionar seu parceiro (FELISMINO, COSTA E SOARES, 2009). No entanto, o movimento nacional de AIDS refuga que a transmissão sexual do HIV seja criminalizada e defende que essa questão deve ser tratada pela saúde pública e não pela justiça (GUIMARÃES, 2011).

Acreditamos que a transmissão sexual do vírus entre os casais sorodiscordantes deve ser analisada com cautela, levando em consideração os aspectos éticos de ambos os indivíduos, bem como aqueles que compõem o quadro da vulnerabilidade ao HIV. Ainda, é de suma importância que a saúde pública esteja preparada para lidar com casos semelhantes, uma vez que o estigma relacionado ao HIV diminui a chance do indivíduo revelar sua sorologia, havendo interferência na busca do diagnóstico precoce e acesso ao tratamento de ambas as partes.