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As fontes jurídicas que proporcionam uma imagem destes acontecimentos nem sempre são do tipo mais convencional produzido pelas burocracias judiciais oficiais. Um bom exemplo disso é a documentação resultante de uma devassa geral levada a cabo pelo vice-rei Vasconcelos e Sousa, que tinha em vista averiguar se se confirmavam os rumores acerca das atividades de contrabando.6 Localizadas

fora do alcance dos juízes, dos oficiais urbanos e rurais incumbidos de aplicar a lei e, ainda, dos burocratas da Coroa, as regiões remotas, pela sua própria natureza, tendiam a produzir esse tipo de fontes mais idiossincráticas. Além disso, e como nos lembrou recentemente Tamar Herzog, a lei escrita, a normativa formal, “não explica ou determina necessariamente a evolução dos acontecimentos no plano do real” em áreas em disputa ao longo da América portuguesa ou espanhola. O controlo efetivo sobre o território dependia da “interação humana” nos diversos contextos locais, muito mais do que de declarações oficiais ou ordens emitidas do outro lado do oceano. A jurisprudência colonial nunca se limitou à legislação – nem assim foi concebida – ou às instituições régias que a formulavam. Em vez disso, a justiça 6 Superintendente das Minas para a Secretaria Colonial, Rio de Janeiro, 16 de Julho de 1781 (BNRJ,

constituía uma matéria muito mais fluida e dependia fortemente daquilo que era o entendimento específico, em determinadas circunstâncias locais, da normativa régia ou eclesiástica, sendo também muito dependente do que ditava a prática costumeira. No que diz respeito a assuntos territoriais, estes preceitos orientadores adquiriam uma forte dimensão concreta, ao se materializarem em múltiplas e conflituantes reivindicações de posse de terra, baseadas na descoberta primordial, na ocupação, no uso e no aproveitamento da terra.7 Por isso, uma inspeção regional, do tipo

daquela que o vice-rei Vasconcelos e Sousa levou a cabo fornece muito mais informação sobre a práxis jurídica do que qualquer norma régia ou decisão judicial considerada de uma forma descontextualizada. Como veremos, os resultados desta investigação não só aprofundaram as preocupações das autoridades a respeito da dimensão do tráfico ilegal de ouro, mas também as suspeitas de que muitos índios estavam a participar nesse tráfico como intermediários.

Os oficiais locais informaram o vice‑rei Vasconcelos e Sousa de que os garimpeiros se dirigiam para as montanhas, primeiro para estabelecerem contacto com os índios e, depois, para atingirem uma zona de mineração clandestina. Sobre esse lugar, criado pelo Mão de Luva e por outros contrabandistas que tinham

atravessado a fronteira entre as capitanias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, dizia‑se que tinha crescido significativamente, ao ponto de ter chegado a formar uma pequena vila. A única forma de chegar a esse lugar, a partir da costa, era seguindo as trilhas usadas pelos indígenas. As autoridades tentaram impedir o contrabando através da criação de um posto de vigilância situado perto de uma aldeia de “índios mansos”, bem acima do último assentamento colonial no Alto Paraíba, mas esse posto de vigilância foi colocado em risco quando um grupo de guerreiros descritos – por um sargento-mor – como “gentio bravo” soou uma corneta e, armado de arcos e flechas, desceu o rio em sete canoas. A violência só foi evitada pela intervenção dos líderes de “huma aldeia de gentio manso” que ficava nas proximidades, os quais conseguiram fazer fracassar o ataque- surpresa. O sargento-mor mostrou-se agastado pelo combate contra esses inimigos, que, quando perseguidos, fugiam para a floresta. Os índios 7 Herzog 2015, 262‑267.

com quem conseguiu entabular alguma comunicação declararam que receavam que essa insipiente presença militar colocasse em risco o seu controlo sobre as suas terras ancestrais.8

Entre outros testemunhos recolhidos, o sargento-mor conseguiu extrair uma confissão de um indivíduo de ascendência indígena que tinha sido capturado por alguns dos principais exploradores das terras altas. Apresentando-se com o nome cristão de Domingos, foi identificado como índio ou mestiço, como um guia e tradutor, e como um morador numa aldeia de índios classificados, pelos portugueses, como “mansos”, situada bastante a montante do rio Macaé. Domingos descreveu a sua aldeia como a porta de acesso a um caminho que a ligava, por trilhas e rios, a outras aldeias indígenas mais distantes. Outras trilhas ligavam-na a assentamentos indígenas na costa, antigas missões jesuítas. Domingos admitiu que tinha guiado quatro garimpeiros até à área de mineração ilegal. Servindo como intérprete pago, ajudou-os a atravessar – em segurança – as aldeias que ficavam a montante do rio. E quando atingiram as minas de aluvião, os garimpeiros viram-se perante “um homem alto . . . com uma mão de luva”, ou seja, era o próprio contrabandista, empunhando “uma pistola debaixo do braço e uma catana na mão”. Domingos calculou que aproximadamente 20 homens, brancos e negros, muitos deles armados, trabalhavam nesse campo de mineração. A carência de mantimentos naquela área tinha obrigado o grupo a descer até Cachoeiras de Macacu, a vila mais próxima dali, em busca de farinha de mandioca, o que demonstra que existia uma ampla rede comercial por detrás destas atividades clandestinas. Nesse ponto, e três semanas depois de ter iniciado a sua jornada, Domingos reclamou que não tinha ainda recebido nada pelos seus serviços. Regressou por isso para o litoral, onde acabaria por ser preso, interrogado e enviado para o Rio de Janeiro para aí ser questionado.9

8 Oliveira 2008, 109-23. Conselho Municipal para o vice-rei, Santo António de Sá, 26 de abril de 1779 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 132); Manoel Pereira da Silva para o vice-rei, São Salvador [dos Campos dos Goytacazes] com a confissão anexada, 28 de novembro de 1779 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 137). O superintendente das Minas, Manoel Pinto da Cunha e Souza, resumiu essas e outras obtidas dos distritos periféricos para o vice-rei. Ver Superintendente das Minas para o vice‑rei, Rio de Janeiro, 24 de dezembro de 1779 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 137). Sobre as rotas indígenas que levavam ao local, ver Miguel Antunes Ferreira para o vice-rei, Rio de Janeiro, 22 de junho de 1773 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 135).

9 Superintendente das Minas para o vice‑rei, Rio de Janeiro, 24 de dezembro 1779 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 137); Manoel Pereira da Silva para o vice‑rei, São Salvador [dos

A despeito da natureza evidentemente precária das atividades de mineração, os oficiais régios concluíram que o relato de Domingos corroborava a informação mais encorajadora recolhida anteriormente a partir de outros testemunhos indígenas. Pouco tempo depois de ter tomado posse, por exemplo, o vice-rei Vasconcelos e Sousa ouviu um testemunho do oficial‑de‑campo Miguel Antunes Ferreira, o qual, anos antes, tinha liderado um pequeno grupo que atravessou as montanhas a fim de inspecionar aquela mesma área. Contou Antunes Ferreira que, pouco depois de ter dado início à sua jornada, convenceu dois indígenas a guiá‑lo para zonas mais no interior da cordilheira. Seguindo por uma “picada do gentio,” que seria a única forma de atravessar uma área cercada por “uma impenetrável serrania” e “perigosas cachoeiras,” o grupo avançou ao longo de mais de 12 dias até se aproximar do rio Grande, um afluente o sul do rio Paraíba. Ferreira reiterou que os índios lhe tinham dito que, para lá do rio, havia montanhas com as “maiores riquezas.” Durante os dias finais da sua expedição, Ferreira conseguiu recolher ainda mais informação promissora. Explorou a área a jusante do rio, usando uma trilha indígena pouco visível, e deparou-se com um “índio bárbaro” que o informou, presumivelmente através dos seus guias indígenas, que, ao norte, a três dias de distância, existiam várias aldeias ameríndias. O oficial régio ofereceu roupas quentes ao informador e deu presentes ao “cacique governador” e à sua mulher, e mandou depois um grupo de batedores à frente do seu próprio grupo. Os batedores regressaram com um “um copioso número de gentios bárbaros”, incluindo cinco principais. Apesar de parecerem “soberbos e formidáveis,” Ferreira considerou que eram “flexíveis e domáveis”.10

A sua descrição da região alimentou as fantasias dos oficiais régios e dos colonos portugueses. Não temos como saber se Ferreira exagerou no seu relato, embora saibamos que existia sempre o incentivo da Coroa, e do seu insaciável apetite por preciosidades metálicas e minerais, sempre pronta a recompensar aqueles que descobriam essas riquezas. Quanto aos índios – e pelo menos um deles falava português –, informaram que a região, em ambos os lados da capitania, era Campos dos Goytacazes] com a confissão em anexo, 28 de Novembro de 1779 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 137).

10 Miguel Antunes Ferreira para o vice-rei, Rio de Janeiro, 10 de Agosto de 1779 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 135).

“abundantíssima de ouro, em qualquer parte se procura”. Asseguraram que não era sequer necessário escavar à procura do metal, pois os cursos de água da região apresentavam “folhetas infinitas” que eram facilmente recolhidas. Além disso, os índios falaram a Ferreira de um grande lago, onde se “descobrem infinitas pedras preciosas”, garantindo que as pedras eram “tão resplandecentes que perturbam a vista quando lhes dá o sol”. O potencial para a lavoura e para a criação de gado era igualmente promissor. O único impedimento à exploração da região, de acordo com Ferreira, era o facto de o território ser “habitado e possuído por inumerável gentio bárbaro de diversas nações todos lastimosamente na mesma desgraça, ignorância, e miséria”. Apesar de nunca ter chegado a confirmar ou a produzir algum relatório onde dissesse que os habitantes indígenas estavam envolvidos no contrabando, Ferreira acabaria por ser chamado para reproduzir o que tinha ouvido, transmitindo essa informação a uma série de autoridades, todas elas desejosas de perceber melhor a configuração das terras altas que se situavam além das zonas costeiras, tendo em vista impor o controlo régio sobre essa região.11

Outra fonte de informação jurídica que levou à mobilização militar do tenente-coronel Coimbra veio de um testemunho secreto, obtido de maneira coerciva, do sertanejo José Gomes, um dos garimpeiros que tinham sido guiados até às minas pelo índio Domingos.12 Durante seis meses, Gomes foi mantido

prisioneiro no Rio de Janeiro, até que foi mandado para Lisboa, para ser julgado pela Inquisição. Acabaria por ser condenado por sacrilégio e por conspirar com os mineiros das terras altas. Procurando proteção contra os perigos das suas viagens no sertão, pouco depois de receber a comunhão, fugiu apressadamente com a hóstia. Regressou à floresta, convencido de que a hóstia consagrada o iria proteger enquanto trabalhava com o Mão de Luva. Quando os soldados prenderam Gomes,

encontraram a hóstia que tinha sido roubada, juntamente com pedaços de ouro e 11 Miguel Antunes Ferreira para o vice-rei, Rio de Janeiro, 10 de Agosto de 1779 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 135). Ferreira relatou suas descobertas não só para o vice-rei Cunha, que ordenara a missão, como também para o marquês de Lavradio, entre 1769 e 1778, e, posteriormente, ao vice-rei Vasconcelos de Souza, em 1779. Não fica claro se ele também compartilhou a informação com o vice‑rei António Rolim de Moura Tavares, conde de Azambuja (1767‑1769).

12 Vice-rei para o secretário colonial, Rio de Janeiro, 25 de Agosto de 1781 (BNRJ, Correspondência do Vice-Reinado para a Corte. Cód. 68, vol. 4, fol. 183v). Acerca da ligação entre Domingos e José Gomes, ver Manoel Pereira da Silva para o vice‑rei, São Salvador [dos Campos dos Goytacazes] com a confissão em anexo, 28 de Novembro de 1779 (BNRJ, Correspondências e Documentos… cód. 9, 3, 17, doc. 137).

um grande diamante. Gomes alegou que o Mão de Luva o tinha incitado a cometer

esse crime. Na sua confissão, forneceu detalhes fundamentais acerca do modus operandi do contrabandista, e o seu testemunho foi considerado tão relevante que

o superintendente do vice‑rei para a mineração fez questão de ele próprio o copiar – em vez de recorrer a um escrivão – no relatório que enviou para Lisboa.13

Os oficiais eclesiásticos que dirigiram o interrogatório identificaram o sertanejo José Gomes como alguém que não era índio, mas que ainda assim seria útil para obterem informações sensíveis em posse dos indígenas. A partir dos muitos detalhes do seu testemunho, assim como da confissão extraída de Domingos, o guia indígena, foi possível estabelecer que ele comunicava regularmente com os nativos e que se movia entre eles com bastante facilidade. Viúvo, de poucos meios e quase analfabeto, Domingos foi descrito ora como um lavrador de subsistência, ora como um lenhador, ora como um mineiro ou como um rústico itinerante sem residência fixa ou posses. O seu delito ocorreu na Capela de São João da Barra, que enquadrava a população rural que residia no sopé das montanhas a nordeste do Rio de Janeiro. Entre os paroquianos, estavam os residentes na aldeia de Sacra Família de Ipuca, cujos habitantes indígenas eram suspeitos de manter laços com a atividade mineradora. No dia em que ele roubou a hóstia, colocando-a numa bolsa pendurada no pescoço, Gomes descreveu o seu novo tesouro como a “melhor coisa no mundo”.14 Ignorando os avisos dos seus amigos, cometeu o crime “de se livrar

de perigos, que receava lhe acontecem no sertão”.15

O seu cúmplice nesse crime, segundo José Gomes, era, nada mais, nada menos, o Mão de Luva, o qual usava uma bolsa semelhante e prometeu bolsas

similares a outras pessoas. Gomes disse que fora “obrigado” a trabalhar nas minas 13 Vicente Ferreira de Noronha para o vice-rei, antes de julho de 1781 (BNRJ, Correspondências e

Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 141); Bernardo de Vasconcelos para o vice-rei, n.p., antes de julho de 1781 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 142). Ver também Superintendente das Minas para o secretário colonial, Rio de Janeiro, 16 de julho de 1781 (BNRJ, Correspondências e Documentos… cód. 9, 3, 17, doc. 128); Secretário colonial para o vice-rei, Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 8 de janeiro de 1785 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 127, parag. 14). Três conjuntos de documentos formavam o caso contra José Gomes após a sua chegada em Lisboa, ver ANTT, Processo de José Gomes; ANTT, Correspondência de José Gomes; ANTT, Traslado incompleto de uns autos da justiça contra José Gomes.

14 Freire e Malheiros 1997, 61. ANTT, Traslado incompleto de uns autos da justiça contra José Gomes, fol. 1. Sobre as ligações que suspeitava existirem entre os indígenas da aldeia de Ipuca e a zona de mineração nas terras altas, ver Miguel Antunes Ferreira para o vice-rei, Rio de Janeiro, 22 de Junho de 1773 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 135).

clandestinas. Garantiu que esse famigerado contrabandista o tinha ameaçado de morte, caso ele não seguisse as suas detalhadas instruções acerca de como roubar um pedaço de hóstia sem ser apanhado. Na falta de mais informação, só nos resta especular sobre a possibilidade de o Mão de Luva estar envolvido não só no negócio

da mineração de ouro, mas também no tráfico de objetos que se acreditava serem mágicos, a fim de os distribuir ou vender entre os seus colaboradores. As acusações de Gomes fizeram com que a investigação relacionada com o seu processo saísse da prisão secreta da Inquisição de Lisboa e regressasse ao Brasil. Vários destacados clérigos deram seguimento ao processo, falando com testemunhas que tinham trabalhado com o Mão de Luva na sua atividades de mineração, as quais

confirmaram que o contrabandista tinha mesmo violado os preceitos da ortodoxia católica. Alguns disseram que um pacto com o Diabo era a explicação para os seus poderes sobrenaturais, incluindo a capacidade de cavalgar por cima de casas, escapar de uma caixa fechada, evitar perigos na floresta, enganar os seus inimigos e, ainda, exercer uma influência irresistível sobre aqueles que estavam sob o seu comando. A incapacidade da Igreja e das autoridades civis para o capturar apenas contribuiu para aumentar esta aura de mistério.16 Gomes, por sua vez,

era menos difícil de apanhar. Enviado acorrentado para Lisboa; depois de mais de um ano na prisão, acabou por ser sentenciado a ser açoitado, em público, até começar a sangrar, seguindo-se cinco anos de trabalho árduo nas galés régias. Esta punição levou‑o rapidamente a adoecer, sendo hospitalizado numa altura em que enfrentava a sua “última ruína”. Graças aos apelos dos médicos, acabou por ser libertado. Nos tempos que se seguiram, o seu percurso tornou-se mais incerto, como veremos adiante.17

Tendo em conta estas curiosas revelações sobre o que tinha ocorrido na floresta e sobre até onde as pessoas iam para se protegerem dos seus infortúnios, este caso ajuda a compreender como a Coroa e a Igreja costumavam unir esforços com o objetivo de projetar o seu poder sobre o território que estava além do seu efetivo alcance. Ao ser notificado da prisão de Gomes, o vice-rei Vasconcelos e 16 ANTT, Processo de José Gomes, fol. 20v, 31v, 63v‑64; ANTT, Processo de Agostinho [de Abreu Castelo Branco] e Manuel Henriques, fols. 11-19. Agradeço à Prof.ª Leônia Chaves de Resende por me ter disponibilizado a sua transcrição deste segundo caso.

Sousa ordenou aos clérigos que ampliassem o escopo do interrogatório e fossem além das questões relativas à Igreja. A sua correspondência demonstra que ele examinou imediatamente este testemunho, tendo em vista a segurança do Estado. O sertanejo José Gomes forneceu o mapa mais detalhado até então produzido das trilhas que saíam do litoral e levavam à mina clandestina, complementando o que as autoridades sabiam a respeito do acesso pelo norte, vindo de Minas Gerais. Ele atravessara os caminhos que subiam às minas, vindo da capital, pelo sudoeste, passando por Cachoeiras de Macacu. Gomes também conhecia as trilhas vindas do sudeste, partindo de Macaé, assentamento litoral e produtor de açúcar. Demonstrava um conhecimento ímpar da topografia dos ermos e parecia conhecer cada curva na trilha, cada subida e descida, cada acampamento indígena, cada lugar protegido para se passar a noite, cada cume falso, passagem, brejo e travessia de rio, além das distâncias entre todos eles. José Gomes sabia dos marcos geográficos mais obscuros, cujos nomes tinham origens tanto coloniais quanto indígenas: “Morro Queimado”, “Corgo de Santa Tereza”, “Rancho do Jequitibá”. Sabia identificar rochas, caveiras e cruzes talhadas em troncos, além de outros sinais deixados por índios e contrabandistas para se orientarem ao longo das suas jornadas.18 Os relatos

de Gomes deixavam claro que os ambientes hostis podiam ser dominados por aqueles que tivessem acesso ao conhecimento produzido pelos índios.

A familiaridade de José Gomes com as riquezas minerais e atividades mineradoras ilegais na região era igualmente impressionante. Relatou as quantidades de ouro em pó e de algo que ele descreveu como pepitas prateadas, do tamanho de “grãos de chumbo miúdo”, obtidas num dia normal de peneira nos vários riachos. Descreveu a quantidade, a cor e a forma de pedras encontradas na região, que iam de topázio a azul‑celeste e a cristalina. Durante a primeira meia hora de escavação, Gomes relatou, de acordo com o padre que o interrogou, que os mineiros tinham extraído uma libra (unidade de peso) de pedras preciosas, algumas delas diamantes. Um garimpeiro pardo “que anda aos vinte tantos anos neste sertão”, uma vez “tirou um diamante de trinta e três oitavas de peso” (117 gramas, ou 585 quilates 18 Vicente Ferreira de Noronha para o vice-rei, n.p., antes de julho de 1781 (BNRJ, Correspondências e Documentos… Cód. 9, 3, 17, doc. 141); vice-rei para a Secretaria Colonial, Rio de Janeiro, 25 de agosto de 1781 (BNRJ, Correspondência do Vice-Reinado para a Corte. Cód. 68, vol. 4, fol. 183v).

brutos). 19 O réu apontou os locais exatos de vários pontos de lavagem de minério,

incluindo o espaço que era exclusivo do Mão de Luva. Descreveu uma trilha que

levava a um terreno em Xopotó, Minas Gerais, onde o contrabandista vivia com a sua família, a cinco dias das minas ilegais. Ainda que somente 11 garimpeiros trabalhassem no local; durante a última visita de José Gomes, vários outros tinham abandonado a empreitada, graças a boatos sobre uma iminente batida oficial. Gomes admitiu ter trabalhado diretamente com o Mão de Luva durante um ano

inteiro, indo e voltando inúmeras vezes dos locais de lavagem.20

Estes relatos, obtidos dos índios locais, que eram vistos com cada vez mais desconfiança, aliados a histórias sobre riquezas inexploradas, estavam entre os mais importantes documentos que atravessaram o oceano Atlântico quando a Coroa decidiu enviar a expedição militar do tenente-coronel Manoel Soares Coimbra. Estas