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Reformas pombalinas na Amazónia: um enquadramento

O Brasil era, neste período, o foco da atenção das elites políticas da corte portuguesa, particularmente depois do descobrimento das regiões auríferas, ocorrido nos territórios de Minas Gerais em finais do século XVII e depois em Mato Grosso.5

À centralidade da América portuguesa não é também estranha a aproximação política ocorrida entre as duas cortes peninsulares em meados de Setecentos, um clima de boas relações políticas que foi fortalecido pelos casamentos dos herdeiros de cada reino ibérico com as infantas do outro país: Fernando, príncipe das Astúrias (futuro Fernando VI), casou com D. Maria Bárbara de Bragança, e D. José, príncipe do Brasil (futuro D. José I), desposou D. Mariana Vitória. Este processo é designado por “troca das infantas”.

Foi neste clima de entente cordiale entre os dois países peninsulares que se

celebrou o Tratado de Madrid (1750), que viria a substituir o Tratado de Tordesilhas (1494) e o acordo de paz e amizade assinado pelas duas coroas em Utrecht (1715) na fixação dos limites territoriais peninsulares na América do Sul. Este acordo diplomático, celebrado em 13 de Janeiro de 1750, dominaria a agenda política dos primeiros anos do reinado de D. José I, tal como dominaria a do futuro marquês de Pombal na Secretaria de Estado do Reino de Portugal, e teve particular impacto nas regiões onde as fronteiras coloniais eram mais indefinidas. Foi também nestes espaços que as reformas pombalinas se fizeram sentir com grande intensidade, como é o caso da Amazónia e de Mato Grosso.6 Nestas regiões, o processo de

demarcação da fronteira, após 1750, acontece exatamente quando em Portugal, e igualmente nos vários espaços imperiais lusitanos, aconteceu uma reorientação política que visou a aplicação de um programa de reformas destinado a alterar a ordem política e social e a fortalecer a autoridade da coroa portuguesa.

Se, como afirma Nuno Gonçalo Monteiro, até cerca de 1755, Sebastião José de Carvalho e Melo não teve controlo político em relação às iniciativas reformistas tomadas para o Brasil, a partir desta data, e sobretudo depois da nomeação de seu 5 Lucídio 2013.

irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, como governador e capitão-general do estado do Grão-Pará em 1751, esta situação seria alterada de forma clara.

Mendonça Furtado estabeleceu, no estado do Grão-Pará, um processo de revitalização e de reordenamento administrativo destinado a viabilizar o controlo físico de espaços que, até então, eram considerados como “franjas” do Império Português e tinham uma importância marginal no contexto da presença portuguesa na América do Sul. A presença física e a ação colonizadora luso-brasileiras eram, com

efeito, ténues nestas paragens do norte brasileiro, que, no período em análise, eram também regiões alvo da concorrência entre as monarquias ibéricas.7 Ora a atuação

de Mendonça Furtado visava alterar esta situação, assentando um domínio soberano sobre a natureza, vista como exótica, grandiosa e de potencialidades económicas incomensuráveis; e sobre a humanidade, que se considerava selvagem, bárbara e civilizacionalmente inferior. Era sobre este espaço que as reformas desencadeadas a partir de meados do século XVIII tencionaram implantar uma identidade nacional, católica e ocidental.

Sob o signo de Pombal e de Mendonça Furtado, o estado do Grão-Pará, independente do vice-reinado do Brasil desde 1621 e em comunicação direta com Lisboa, tornou-se num dos territórios mais afetados pela intervenção da política reformista pombalina na América do Sul. Tenha-se em consideração que sobre este território se aplica, conforme já mencionei, o Tratado de Madrid (1750), negociado por Alexandre de Gusmão e D. José de Carvajal y Lancastre.8

O acordo foi implementado no terreno por Mendonça Furtado, nomeado “ministro plenipotenciário” das expedições que, a norte, deviam proceder às demarcações de limites entre a América espanhola e a América portuguesa, destinadas a validar o acordo celebrado nos gabinetes da política e da diplomacia ibéricas.

De igual modo, a vontade de Mendonça Furtado em centralizar e reestruturar a governação do território expressa-se administrativamente, em 1755, com a criação da capitania de São José do Rio Negro, subalterna à capitania do Pará. Esta divisão significava que a vasta região‑tampão do noroeste amazónico, alvo de investidas de espanhóis, passava a ter, a partir desta data, um representante direto 7 Moscoso 2008; Rodrigues 2015.

e efetivo do poder real: o governador da capitania, também ele afeto ao discurso político reformista e à Casa de Pombal. E ainda um centro administrativo e militar, Mariuá/Barcelos, onde também se centralizou o comando das demarcações de limites decorrentes do Tratado de Madrid. Embora subordinados à autoridade do governador do estado do Grão-Pará, os governadores da nova circunscrição deviam implementar a autoridade régia em zonas até aqui ocupadas de forma dispersa e irregular por missionários e particulares, cujos comportamentos eram considerados como exorbitantes e desrespeitadores das leis reais.

No exercício da administração, o governador e capitão-general da capitania do Rio Negro era coadjuvado por um aparelho institucional e administrativo – fiscal, jurídico e militar – que passava a ser, a partir da data da fundação da capitania, coordenado no âmbito das competências do governador da capitania subalterna.9

Pondere-se que é igualmente com Mendonça Furtado que se procede à promulgação e à aplicação de medidas legislativas que tiveram como finalidade promover os ameríndios em vassalos do Rei Fidelíssimo, equiparando-os juridicamente a qualquer outro súbdito do monarca português, fosse ele reinol ou luso-brasileiro. Deste corpo legislativo, quero sublinhar, devido à importância

e pelas consequências que esta legislação viria a ter na sociedade colonial, a lei da liberdade dos índios, das suas pessoas e bens (6 de Junho de 1755); o fim do governo temporal dos missionários, que deviam ser substituídos, nesta função de administrar os povoados e os índios que neles habitavam, por organismos e indivíduos laicos, ou seja, câmaras e diretores, mas mantinham, contudo, as suas funções de missionação e assistência religiosa (7 de Junho de 1755); a proteção social, profissional e financeira dada aos luso-brasileiros casados com mulheres

índias, que deviam ter prioridade nas nomeações para o exercício de ocupações civis e postos militares, de igual modo, os filhos mestiços deviam ser preferidos no exercício de funções e cargos administrativos (4 de Abril de 1755); e a proibição de chamar “negros da terra” aos indígenas .10

Na sequência da reação da sociedade colonial a estas medidas, que, aliás, só foram promulgadas pelo governador e capitão-general do estado do Grão-Pará 9 Vilaça 2008; Santos 2013, 14; 89.

em 1757, ocorre a dissolução da Companhia de Jesus, que tanto sucesso tinha tido na criação de missões em regiões de fronteira, como era o caso da Amazónia, bem como no controlo dos indígenas através de uma ação evangelizadora e ressocializadora que era amplamente reconhecida além‑Império. Na medida em que os jesuítas desenvolveram uma oposição explícita ao projeto pombalino de reformas e se denegaram a renunciar ao poder temporal e espiritual sobre os índios, bem como a abdicar do controlo pleno sobre as suas pessoas, almas e do seu valor enquanto mão de obra compulsória, tornaram-se num dos principais alvos da política de Mendonça Furtado e foram expulsos do território amazónico. A estas juntavam-se outras considerações, entre as quais pesavam as acusações de enriquecimento excessivo da Companhia, relacionado com as extensas propriedades rurais detidas pela ordem e o seu envolvimento em práticas comerciais ilícitas ou em lucrativas atividades económicas que estavam isentas do pagamento de impostos.11

Importa agora clarificar que as medidas reformistas relacionadas com os índios e com a defesa da sua liberdade eram de importância crucial na política definida pela geoestratégia do governador, irmão de Pombal, para o norte brasileiro e no período pós‑Tratado de Madrid. Uma das razões deste empenho institucional tinha que ver com a constatação lúcida de que o número de colonos luso-brasileiros

dispostos a ocupar efetivamente este vastíssimo espaço geográfico era reduzido e insuficiente. O governador dependia dos naturais da terra como elementos‑chave na ocupação tática do território. Este era, nalgumas regiões, disputado simultaneamente por hispano-americanos e luso-brasileiros, que, no processo de reconhecimento das

fronteiras coloniais ibéricas, ignoravam a existência das territorialidades indígenas. Para além disso, os luso-brasileiros eram acusados de ocuparem terras que

extrapolavam qualquer interpretação razoável do acordo político‑diplomático que, por um período de aproximadamente 300 anos, regulou a presença ibérica nestas partes do mundo: o Tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494. Consequentemente, a validade das pretensões portuguesas sobre esses territórios dependia da ocupação efetiva que sobre eles tivessem estabelecido. E isso só podia acontecer através da promoção – e também da desejada transformação – dos índios em verdadeiros vassalos, fiéis e úteis 11 Roller 2010.

perante a evocação do princípio jurídico de uti possidetis, ita possideatis, tal como estava

previsto no texto do Tratado de Madrid de 1750, dando-se assim legitimidade e consistência à soberania portuguesa.

Mas se o corpo legislativo acima mencionado era um passo significativo dado neste sentido, por si só era insuficiente: havia que transformar os índios em vassalos de pleno direito e fomentar junto dos indígenas sentimentos de autorreconhecimento enquanto súbditos do rei, enquanto parte integrante e constituinte do império português. O Directório que se Deve Observar nas Povoações de Índios do Pará e Maranhão enquanto Sua Majestade não Determinar o Contrário, publicado em 1758, é atribuído a

Mendonça Furtado e caracteriza‑se por pretender a ocidentalização e a ressocialização

dos índios amazónicos através de um programa complexo de medidas reformistas, tutelado por autoridades seculares: os diretores. Estas medidas visavam incentivar a realização de matrimónios mistos entre luso-brasileiros e índias; ensinar a língua

portuguesa e erradicar a “língua geral” falada comummente pelas populações na Amazónia;12 impor novas formas de organização governativa nas vilas e aldeias

estabelecidas ao longo dos rios amazónicos; estabelecer um sistema governativo que combinasse uma colaboração efetiva entre diretores seculares na administração temporal e párocos ou missionários no subministro da religião, com os índios a poderem ocupar postos camarários e integrar os corpos militares (sobretudo as ordenanças);13 transformar as missões com as suas denominações indígenas em

aldeamentos laicos, que posteriormente viriam a ser rebatizados com os nomes de povoações reinóis pertencentes à Casa do Rei, da Rainha, ao Infantado ou à Ordem de Cristo, para, assim, recriarem e reproduzirem um espaço reconhecidamente português fora de Portugal-reino. Óbidos, Santarém, Tomar, Vila Viçosa, Porto de Mós, Melgaço, Sousel, Alter do Chão são meros exemplos de muitos dos nomes que seriam facilmente reconhecíveis e surpreendentemente familiares tanto aos habitantes do reino como aos negociadores de processos diplomáticos internacionais. A partir desta altura, podiam ser reencontrados na toponímia dos povoados recém‑fundados ou na renomeação das missões da bacia hidrográfica amazónica. Com esta legislação, a pretendida laicização dos aldeamentos abria 12 Barros 2015.

ainda os núcleos urbanos indígenas, antes reservados aos missionários, à presença de colonos.

Uma outra medida que se pretendia que fosse coadjutora no cumprimento da lei da liberdade dos índios foi o estabelecimento da Companhia Geral de Comércio de Grão-Pará e Maranhão. A Companhia foi fundada com o objetivo de remover os obstáculos criados pela quebra sentida no fornecimento de indígenas após a promulgação da lei de 1755 e destinava-se a promover o desenvolvimento económico regional amazónico pelo envio de mão de obra escrava africana, canalizada através de ligações transatlânticas regulares entre África e a América. A chegada desta força de trabalho terá produzido significativas alterações, embora nesta apreciação se deva levar em conta que dos 25 365 escravos africanos que se estimam terem sido introduzidos pela Companhia no Pará, 8455 foram redirecionados para Mato Grosso.14

A inflexão do discurso governativo