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OS INDÍGENAS NOS AUDITÓRIOS ECLESIÁSTICOS

DO ESPAÇO LUSO-AMERICANO

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Jaime Ricardo Gouveia

CHSC – Universidade de Coimbra

A visão, não raro desfocada, que vigora na historiografia acerca das relações entre os indígenas e a justiça episcopal na colónia brasileira deve-se, creio, não apenas à escassez de estudos neste âmbito temático, que se explica pelo desaparecimento de grande parte dos fundos documentais desses tribunais, como também à tendência de generalização das conclusões reveladas pelos trabalhos que incidem sobre os auditórios hispano‑americanos, não obstante a organização jurídica novo‑hispânica menos conhecida seja a eclesiástica.2

Esse exercício generalizador é equívoco, sobretudo por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque não houve, no caso português, um “direito canónico indiano”, produzido na, ou para a, colónia brasileira, como existiu na América hispânica, não obstante, como se provará adiante, vários canonistas 1 Este artigo foi redigido no contexto do projeto PTDC/HAR-HIS/28719/2017, intitulado Religião, Administração e Justiça Eclesiástica no Império Português (1514-1750) – ReligionAJE –, aprovado no âmbito do concurso para financiamento de projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos – 2017 (H2020 e FCT). A versão final deste estudo é devedora da leitura crítica feita por Maria Leônia Chaves de Resende, a quem agradeço as pistas indicadas e as sugestões propostas. 2 Lara Cisneros 2010, 128-156.

castelhanos e respectivas obras jurídicas tenham sido utilizados nos auditórios do reino português e respetivo império. A segunda razão, que decorre da primeira, tem que ver com o facto de serem semelhantes as competências jurisdicionais entre os juízos eclesiásticos hispano‑americanos e os seus congéneres luso‑americanos, mas terem divergido no exercício das mesmas. Foi no terreno das heresias que mais dissemelhanças se verificaram. Enquanto os auditórios eclesiásticos da América hispânica julgavam os hereges indígenas, porquanto os bispos alcançaram jurisdição privativa sobre esse sector da população, os da colónia brasileira, por costume e não por direito, relegaram à Inquisição o conhecimento desses delitos.3 Nem os bispos

portugueses viram a sua jurisdição tolhida relativamente aos delitos de heresia, exceto no que concerne ao delito de solicitação, nem a Inquisição portuguesa viu limitada a sua jurisdição sobre nenhum grupo social.4

Tais diferenças, a que se junta um vazio historiográfico acerca da questão, configuram, portanto, um campo que, do ponto de vista analítico, é bastante pertinente, sobretudo para procurar perceber como um direito eminentemente casuístico ofereceu ou não soluções para as situações encontradas no Novo Mundo português, e como foram as práticas judiciais recebidas pela população indígena da Nova América. Mas não só. Uma reflexão mais alargada, neste contexto, poderá

contribuir para o desenvolvimento de várias áreas do conhecimento, designadamente a história do direito, a sociologia jurídica, a história da Igreja e das religiões e a antropologia cultural.

Apesar de nos últimos anos ter crescido o interesse pelo estudo da justiça eclesiástica diocesana, é no geral ainda bastante incipiente a atenção conferida a esse assunto por parte das historiografias portuguesa, brasileira, espanhola e italiana.5

Tão‑pouco as historiografias dos países latino‑americanos esquadrinharam o tema como era exigível. A escassez é ainda mais notória no que respeita à relação judicial que, do ponto de vista institucional, se estabeleceu entre a Igreja e as populações indígenas, importando reconhecer, no entanto, a existência de alguns estudos pioneiros relativos à América hispânica.6

3 Zaballa Beascoechea 2010a, 17-46; 2010b, 45-46. 4 Paiva 2011, 111-126; 2003, 43-76; Gouveia 2011, 97-124. 5 Gouveia 2014, 820-860; 2018.

A jurisdição dos auditórios no Atlântico português incidia sobre a pessoa (ratione personae) e sobre a matéria (ratione materiae). Quanto à pessoa, tinha

alçada sobre todo o clero secular, excetuando alguns crimes (como os de lesa- -majestade e disputas relativas a bens da Coroa) e leigos (membros da Capela Real e das ordens militares). Quanto à matéria, isto é, a natureza dos delitos, a sua competência era abrangente, compreendendo, não só, mas sobretudo, os pecados públicos, independentemente de os seus autores serem leigos ou eclesiásticos.7

As competências jurisdicionais dos auditórios portugueses eram, por conseguinte, mais limitadas do que as dos auditórios eclesiásticos da América hispânica, pois não tinham, como aqueles, em relação à pessoa e em relação à matéria, competência privativa para julgar as heresias indígenas. No que respeita aos outros delitos, o Juízo Eclesiástico tinha jurisdição sobre todos os indígenas que tivessem recebido as águas do batismo, desde que vivessem em paróquias sob sua jurisdição. É necessário não esquecer que, até à secularização das aldeias de missão protagonizada pelas políticas regalistas do século XVIII, e consequente transformação das missões em paróquias, estas estavam sob administração temporal e espiritual dos missionários e, portanto, mantinham uma autonomia face à administração diocesana.8

A conduta ideal exigida à cristandade portuguesa era igualmente imposta aos “índios coloniais”.9 A todos se requeriam virtudes cardeais (prudência,

fortaleza, temperança e justiça) e teologais (fé, esperança e caridade), cumprir com os mandamentos de Deus e da Igreja, e levar uma vida de acordo com as práticas litúrgicas, sacramentais e devocionais, cujo fim era a salvação eterna. O modelo de conduta requerido era, portanto, bastante rígido. Mas as possibilidades para alcançar essas virtudes eram muito mais díspares, bastando olhar as vidas dos santos para se perceber que não havia um, mas sim vários modelos de conduta para a consecução desses objetivos.

A Igreja apresentava-se, assim, rigorosa nos seus princípios doutrinários, mas, ao mesmo tempo, moderada e flexível. A relação entre a moral e o direito canónico era, portanto, dinâmica e complexa, pelo que análise da juridicidade das 7 Hespanha 1992, 43-44, 56-57; Almeida 1968-1971, 231-236.

8 Boschi 1998, 388-402. 9 Resende 2003.

relações sociais dentro da catolicidade faz perceber como a conduta transgressora definida pelo direito está associada à ideia de pecado, isto é, a uma ofensa contra os princípios divinos.10

Neste contexto, urge perguntar: a distância da metrópole, a extensão superlativa do território e a variedade racial exigiram uma adaptação dos tribunais diocesanos às novas circunstâncias? A distância de Roma e as dificuldades de comunicação com a Santa Sé resultaram, como aconteceu na América hispânica,11

na atribuição, aos bispos e arcebispos do Brasil, de competências que os bispos e arcebispos de Portugal não tinham, nomeadamente em relação à absolvição de penas e apelações de sentenças reservadas ao papado? Os estudos já produzidos não têm revelado diferenças entre os auditórios da metrópole e da colónia brasileira no que concerne às suas formas de atuação. Os modelos de governo episcopal foram, portanto, transplantados do reino para o outro lado do Atlântico com as mesmas atribuições e competências, e evidenciando formas semelhantes de estruturação.12

Sob o ponto de vista da trasladação para o Novo Mundo da religião católica,

do direito, da cultura, das formas de vida e instituições da metrópole portuguesa, o papel desempenhado pelas instituições judiciais diocesanas foi tão relevante na América portuguesa quanto o foi na América hispânica, muito embora, ali, esse enraizamento se tenha verificado de forma mais tardia. Os altos índices populacionais nos territórios indígenas, as necessidades de evangelização e a consolidação do cristianismo dos nativos, a que se opunham, em larga escala, a escassez de estruturas necessárias a esse exercício, exigiam responsabilidades mais amplas e, sobretudo, esforços mais profundos à ação dos mecanismos de catequização, vigilância e disciplinamento existentes na colónia, comparativamente com os da metrópole. Contudo, do ponto de vista legal, os indígenas não gozaram de um estatuto diferente dos demais réus nos tribunais episcopais.

Os processos judiciais decorriam com as mesmas formalidades da praxe, consoante os réus fossem ou não indígenas, e as penas aplicadas aos ameríndios eram similares às que o resto da população estava sujeita. Nesse sentido, o rigor 10 Traslosheros 2010, 14-16.

11 Zaballa Beascoechea 2010a, 22-23.

de algumas sentenças, em regra, era incomum, não pode ser visto como próprio da crueldade da autoridade eclesiástica para com a população indígena, mas sim da crueldade da legislação da própria época. A única adaptabilidade que é possível captar do processo de instrução processual em sede de juízo tem que ver com a imposição de penas diferenciadas de acordo com a condição económica dos réus. O direito canónico era, ao mesmo tempo, “vis coactiva” e “vis directiva”, pelo

que as sentenças, em regra confinadas a penas pecuniárias, tinham em consideração a capacidade, ou não, de o réu as cumprir. Esta adaptabilidade coercitiva, fundada na condição de miserabilidade, era um privilégio jurisdicional do direito canónico,

com raízes na doutrina canónico‑medieval. A consideração dos indígenas como “pessoas miseráveis”, apreciação não raro extensiva a indivíduos brancos, não era uma ação pejorativa, mas a concessão de uma graça, de um privilégio.13

A partir da análise da documentação produzida pelos auditórios eclesiásticos brasileiros, raramente utilizada para estudar os indígenas, é possível refletir sobre a ideia, durante muito tempo veiculada pela historiografia, que os relegava a um papel passivo. Essa documentação demonstra inequivocamente a “soltura”, para utilizar uma expressão de Ana de Zaballa Beascoechea, com que os indígenas se moviam nos foros de justiça.14 Alguns estudos já revelaram casos concretos que comprovam

que, em toda a Ibero-América, os autóctones participaram de forma ativa na complexidade social a que pertenciam, como recetores, beneficiários e atores de uma tradição jurídica milenária.15 Neste contexto, além do óculo da repressão, importa

estudá-los como sujeitos ativos, ou seja, indivíduos envolvidos nas malhas da justiça eclesiástica não apenas como réus, mas também como autores de denúncias e causas processuais. Essa envolvência ativa demonstra como estavam informados acerca de alguns dos princípios mais basilares do catolicismo no que se refere, sobretudo, à conduta moral. Tanto no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, como no Juízo das Congregações Religiosas e nos auditórios eclesiásticos há eco documental de processos que tiveram origem em denúncias de indígenas. Apresentarei, de seguida, alguns deles.

13 Duve 2004, 3‑33; Castañeda 1971, 245‑335; Zaballa Beascoechea 2010a, 29‑31; Hespanha 2010. 14 Zaballa Beascoechea 2010b, 45-46.

Principie-se com o caso do inaciano frei Tomás Simões, que, em 7 de Janeiro de 1706, se autodelatou à Inquisição de Lisboa. Interessa apenas, neste contexto, o que o levou a apresentar-se espontaneamente ao Santo Ofício lisbonense. Na ocasião da denúncia, frei Tomás já tinha sido banido da sua religião, pelo que exercia o seu ministério em casa do meirinho-geral do bispado de Olinda, Feliciano Pinto de Vasconcelos. Segundo declarou, a expulsão devera-se a uma denúncia que lhe fora fulminada por algumas índias, a quem pegara nas mãos no decurso de algumas confissões que administrara quando estava em missão numa localidade pernambucana designada por Vratagui, a duas léguas de Goiânia. O padre Estanislau de Campos, missionário que apurara o caso, tratou de o encaminhar para o superior do acusado, motivando a sua expulsão da Companhia de Jesus. Frei Tomás declarava-se inocente. Porém, como as acusações das índias tinham surtido efeito noutra instância judicial, não obstante o caso fosse matéria do foro jurisdicional da Inquisição, autodelatou-se a este tribunal, alegando:

. . . Não duvido que estando‑as doutrinando e fazendo capazes de as absolver redusindo-as a que mostrassem algua dor e arrependimento de suas culpas lhes tocasse ou pegasse nas mãos, mas sem algua malícia, mas contudo para segurança de minha consciencia julguei como sacerdote catholico e christão ser conviniente acusar-me diante dese Santo Tribunal do caso assim como vay referido, pedindo mizericordia e absolvição como se estivera prezente dos senhores inquisidores . . . .16

Outro exemplo, ocorrido no mesmo bispado, é o de Sebastião Rodrigues, morador na Aldeia Nova de S. João de Carahy. Corria o dia de 11 de Julho de 1812, quando o promotor do Juízo Eclesiástico do Rio de Janeiro, José Caetano Ferreira de Aguiar, fez um auto de denúncia contra ele. Sebastião já estivera preso na cadeia da corte, por não haver aljube episcopal, depois de ter sido acusado por uma índia, chamada Maria Joaquina, com quem havia casado. De acordo com o depoimento desta, o cônjuge tê-la-ia abandonado para casar com outra moça, chamada Ana Francisca. No seguimento do episódio ambos se desentenderam. Sebastião ameaçou-a de morte e acabou encarcerado pelo tribunal episcopal, depois de ter sido acusado pela índia.17

16 ANTT, TSO, Caderno dos Solicitantes. Liv. 759, fols. 211-217. 17 ACRJ, Livro de Denúncias e Querelas contra Padres 1794-1818, fols. 219-221.

No arquivo da Cúria de Mariana, é também possível encontrar várias denúncias efetuadas por índios contra clérigos que exerciam o seu ministério na capitania de Minas, vindo estas a ter consequências judiciais para os acusados. O padre Mateus Machado, vigário de Pousos Altos, foi um deles. A devassa da visita pastoral realizada, em 1738, à sua paróquia revelou uma torrente de denúncias contra si. Fora visitador, designado pelo bispo D. Frei António de Guadalupe, o doutor Francisco Pinheiro da Fonseca. Era comissário do Santo Ofício, beneficiado na colegiada de S. Pedro da cidade de Coimbra e na capela da Santíssima Trindade do bispado de Lamego. Primeiramente, os fregueses de Pousos Altos, entre os quais alguns indígenas, acusavam o vigário de se ausentar da paróquia por períodos longos, sucedendo um dia não ter administrado a extrema-unção a um mulato escravo que foi mordido por uma cobra, tendo permanecido dois ou três dias por enterrar. Depois, denunciavam-no por injuriar os fregueses, chamando-lhes “caboucos, malcriados, ladroes e judeos”, e por ter esbofeteado uma índia que não queria confessar‑se. Por fim, alegavam que andava amancebado com Catarina Ferreira, mulher casada com seu vizinho. O despacho do visitador foi claro: o sacerdote seria preso e remetido ao Rio de Janeiro, com treslado da culpa para se livrar ordinariamente no auditório eclesiástico.18

Episódios de violência para com os indígenas voltariam a ser alvo de denúncias no território mineiro. Na devassa da visita pastoral realizada no ano de 1743 à paróquia do Sumidouro, o padre José saiu acusado de ter agredido os índios com uma cana, daí resultando a sua fuga para o mato e consequente falta à doutrina. Admoestado para que se emendasse, o clérigo seria condenado ao pagamento de uma pena pecuniária. Não há eco documental de que tenha reincidido.19

As acusações mais comuns que envolviam clérigos e índios eram relativas ao pecado mortal de luxúria, cuja delação nem sempre era efetuada por estes. Dar-se-á como exemplo a acusação de que foi alvo André Pereira de Araújo, clérigo minorista, morador no Rio Preto, tido por revoltoso e difamador. Fora incriminado por estar amancebado com uma índia tapuia chamada Felizarda, que não deixava sair de casa a não ser para ir à missa e acompanhá-lo ao rio e à fonte.20

18 AEM, Devassas, Pousos Altos, 1737-1738, fol.136. 19 AEM, Devassas, Sumidouro, 1743 (fólio sem numeração). 20 AEM, Devassas, 1748-1749 (fólio sem numeração).

São também conhecidas diversas situações em que as próprias índias, alvo de propostas imorais, incriminaram missionários21 e párocos locais, tanto no

decurso das devassas das visitas pastorais, como requerendo causas no auditório eclesiástico ou mesmo fazendo queixa à Inquisição quando o sucedido era matéria sob jurisdição desse tribunal. Assim procedeu Laureana, uma das várias índias que o padre Ventura de Albuquerque, vigário de Arez, bispado de Pernambuco, solicitou:

. . . lhe meteo as mãons nos peitoz e ella lhe impurrou a mão para fora e lhe dice tire para lá a mão padre eu venho-me confessar e vossê quer-me meter no fogo, elle pos-se a rir e lhe tornou a meter a mão nos peitoz dizendo então que fosse de noite ao seo cubiculo fazer vilhacaria com elle que lhe daria saya timão e pentes e ella respondeo: eu padre venho‑me confessar e não venho pedir a vossê isso . . . .22

Este caso deu origem a um processo passível de reconstituição detalhada. Porém, neste contexto, sublinharei apenas que o clérigo foi ilibado pelo facto de não se ter atribuído crédito aos testemunhos das índias acusantes. Apesar de nos códigos normativos inquisitoriais não existir nenhuma cláusula limitativa quanto à validade dos testemunhos feitos por índios, a verdade é que o processo de acreditação de testemunhas redundava frequentemente no seu descrédito.23 Esse processo

consistia na inquirição de terceiros, acerca da vida e dos costumes das testemunhas acusantes. Sendo a escolha dos indivíduos a inquirir uma tarefa geralmente confiada ao pároco local, ela recaía sobre os indivíduos mais próximos da Igreja e que, no seio da localidade, eram os que viviam mais intensamente o catolicismo, isto é, aqueles que mais facilmente opinariam de forma depreciativa relativamente ao comportamento religioso e profano dos índios. A questão é que, ao receberem e analisarem os resultados dessas diligências, realizadas pelos comissários a seu mando, os inquisidores faziam tábua rasa do seu conteúdo. Fazer depender a exclusão ou inclusão dos depoimentos das testemunhas de acusação da apreciação que era feita acerca da sua honra, fama e costumes, por parte de jurados leigos, que não só não eram agentes inquisitoriais, como nem sequer eram escolhidos por estes, tinha geralmente como desfecho a não atribuição de crédito aos testemunhos dos índios. 21 AHU_ACL_CU_009, Cx. 10, doc.1028.

22 ANTT, TSO, Processo do padre Ventura de Alburquerque, fol. 11v. 23 Gouveia 2015, 91-121; Silva 2016, 56-100.

Foi exatamente o que aconteceu no processo movido contra o padre Ventura, no decurso do qual foram inquiridas várias pessoas acerca da confiabilidade dos testemunhos das índias. Marinho de Carvalho, capitão, morador em Arez, de 61 anos de idade, foi um deles. Era o diretor dos índios, figura proeminente. Disse que elas eram:

. . . todaz indignas de credito, tanto em juízo como fora delle, e a rezão que tem para julgar o referido hé porque esta nazção de índios tanto homens como molherez sam costumadas a mentir e comummente faltar a verdade . . . .24

Evidentemente que a opinião do diretor dos índios era tida como razoável, pelo conhecimento que teoricamente tinha sobre a índole e o carácter das índias que haviam denunciado. Contudo, a apreciação negativa que delas fez, coerente aliás com a de outros indivíduos interrogados, não satisfez plenamente a Inquisição de Lisboa. Os inquisidores reuniram e declararam que às índias não se lhes podia retirar todo o crédito, havendo portanto que efetuar novas inquirições. Segue-se a alegação:

. . . nenhua tem defeito bastante a tirar-lhe todo o credito, serem nove de solicitação formal e duas de ouvirem contar à 4.ª o como fora solicitada logo depois do facto; deporem alguas com verosimilidade em pontos transcendentes à limitada esfera do seu juízo, pois como índias não tem conhecimento nem ardil capaz de urdirem, e maquinarem ao delato o delicto de que o acuzão.25

Depois de realizadas as sessões de inquirição requeridas, o comissário remeteu os autos para os inquisidores. Do resumo que escreveu acerca do que apurara, constava:

. . . na opiniam daquelles incapazes de se lhes dar credito, o fundamento dizem, hé por serem estez naturalmente inclinadoz a marandanças e pella balbuciencia e rusticidade em que ainda a mayor parte dellez vivem, faltando‑lhez o portuguez para se explicarem, costumão muitas vezes afirmar que o que deviam negar e negar o que deviam afirmar e pronunciando o falar pelo fazer são muito capazes de levantar falsos testemunhoz . . . .26

24 ANTT, TSO, Processo do padre Ventura de Albuquerque, fols. 46v-47. 25 ANTT, TSO, Processo do padre Ventura de Albuquerque, fols. 58-59v. 26 ANTT, TSO, Processo do padre Ventura de Albuquerque, fol. 78v.

O processo foi então arquivado, tendo-se revelado fundamental a presunção (e não a prova) de que os índios, de uma forma geral e não apenas aquelas que haviam deposto contra o sacerdote pernambucano, eram indivíduos não confiáveis. Os fatores que concorriam para a descredibilização dos testemunhos dos índios no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição eram exatamente os mesmos invocados no decurso dos processos movidos pelos auditórios eclesiásticos. A praxe judicial destes dois tipos de tribunais era diferente, assunto que não cabe aqui aprofundar, mas a argumentação invocada para anular os depoimentos indígenas era substancialmente igual em ambos. O exemplo que darei de seguida é bastante elucidativo.