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Conseqüências da restrição do espaço, movimentos de evasão e

4- FRAGMENTOS DE NARRATIVAS: TRAJETÓRIAS DE

4.2 MEMÓRIAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE

4.2.3 Conseqüências da restrição do espaço, movimentos de evasão e

Tal como já mencionado acima, Laranjinha, Pinhalzinho e Posto Velho foram criados inicialmente como postos de atração/pacificação para os Kaingang. De certa forma, os Guarani não eram vistos pelas autoridades como um “problema”, pois eram um grupo “civilizado” e “praticamente” integrado à sociedade branca. Assim, quando os aldeamentos como o de São Pedro de Alcântara foram desativados, no início do século XX, o Estado não reservou nenhuma parcela de terra para os Guarani, e os grupos que ali estavam se espalharam pela região, estabelecendo-se nos poucos espaços ainda disponíveis, longe do controle dos órgãos oficiais. No entanto, tal como colocado no capítulo 2, estes espaços iriam diminuir cada vez mais ao longo do século XX, pois que a região em questão (o norte do Paraná) começava a ser alvo de intensa ocupação.

Nimuendaju (1954) indica a presença dos Guarani nos vales dos rios Verde e Cinzas, onde, em 1908 teria encontrado aldeias nos referidos rios e seus afluentes, como

no rio Laranjinha. Menciona a existência de uma aldeia próxima à cidade de Tomasina, na confluência do rio Itapeva com o Barra Grande, a pequena distância da embocadura deste último no rio das Cinzas (um local próximo à atual TI Pinhalzinho); indica a presença de um outro grupo guarani, que inicialmente estabelecera-se nas proximidades da atual cidade de Santo Antônio da Platina, no Ribeirão do Boi Pintado,

mas que depois se deslocou para a margem esquerda do rio das Cinzas, em frente à embocadura do rio Jacarezinho; por fim, menciona uma aldeia situada na margem direita da volta grande do rio Laranjinha (ou seja, no local da atual TI Yvyporã-Laranjinha).

Mas muitos Guarani também engajaram-se como trabalhadores nas propriedades agrícolas da região ou em pequenas indústrias, como olarias.

E, quando da criação dos postos de atração, o próprio SPI procurou atrair para lá esses sujeitos/famílias guarani que estavam dispersas na região, para que elas cultivassem as roças dos postos de atração e ajudassem na pacificação dos grupos. Algumas famílias, uma vez lá instaladas, passaram a trazer outras. À medida que o século XX ia avançando, já não era mais uma possibilidade ocupar lugares fora dos que o Estado passou a designar para as populações indígenas – não havia mais interstícios.

Cecília Utida, por exemplo, conta que nasceu fora de terra indígena, em 1912, quando sua família trabalhava numa fazenda da região, numa colônia de japoneses. Seu pai foi convencido a ir para o Laranjinha, quando ela tinha por volta de seis anos, por um outro Guarani que lá estava morando e que durante uma visita à sua família fez o convite. Então um dos encarregados do posto teria ido buscar a família com um caminhão. Assim como a família de Cecília, outras foram chegando e estabelecendo-se no Posto Velho e no aldeamento do ribeirão Água da Onça (atual TI Laranjinha).

A essas famílias se juntaram as que vieram, por exemplo, do Araribá, de forma que estes locais acabaram se transformando em áreas guarani (os Kaingang estabelecendo-se em outros locais da região em questão, a saber: as atuais TIs São Jerônimo, Barão de Antonina e Apucaraninha).

No entanto, após algum tempo vivendo nas áreas indígenas, os depoimentos recolhidos durante a pesquisa apontam para uma evasão do grupo, iniciada no final da década de 1940 e que continuaria na década seguinte, causada por vários fatores, entre eles a situação de miséria nas reservas (tal como já foi dito, a restrição do grupo a um espaço determinado afetou as formas tradicionais de organização da economia/subsistência dos grupos, gerando situações/demandas difíceis de serem geridas pelo SPI) e a situação de exploração a que muitas vezes eram expostos por parte dos próprios agentes do órgão indigenista. Muitas pessoas afirmam que, na época, os administradores faziam os índios de “escravos”, empregando sua mão-de-obra conforme

seus interesses pessoais. Belmiro, que nessa época tinha por volta de vinte anos, relata que ele seu pai foram amarrados e presos pelo chefe de posto em uma ocasião, por se negarem a fazer certos serviços. “Naquela época ia mudando muito de chefe. Vinha um, já tirava alguma coisa da aldeia e ia embora. Vinha outro, já tirava o que podia e ia embora”.

Muitos falam que trabalhar nas propriedades não era bom. Segundo um informante, “o trabalho era duro. E na hora de comer, que eles traziam a comida para quem estava na lida, só sujavam o fundo do prato. E como minha mãe tinha morrido, meu pai me levava junto com ele, mesmo pequeno, e aquele pouco de comida que ele recebia, ele ainda dividia comigo”. Mas era melhor do que estar sujeito às arbitrariedades dos administradores. “Se não dava certo em uma fazenda a gente ia trabalhar em outra, e assim ia levando a vida”.

Claro que, também, não podemos descartar que algumas pessoas, de fato, tenham saído espontaneamente, por conta de motivações pessoais as mais variadas, já que, como muitos disseram, “os índios andavam muito”, principalmente os rapazes solteiros.

Tal como colocado acima, as pessoas que hoje são a geração mais velha do grupo se lembram de sua infância como uma época de fartura (além das roças familiares, as pessoas podiam coletar produtos/frutas na mata, bem como caçar e pescar). No entanto, a situação do Laranjinha (principalmente, já que ele possui uma área menor que o Pinhalzinho e sempre foi mais populoso – mas de qualquer forma, isso vale para todas as TIs da região) foi se deteriorando ao longo do século XX, pois que o desaparecimento dos ecossistemas originais no entorno da TI impossibilitaria a manutenção do antigo padrão de subsistência. A própria TI teria seus recursos florestais devastados pela exploração de madeira por parte da administração e pelos arrendatários que ali se instalaram. Tudo isso levou o grupo a uma situação de pauperização e dependência cada vez maior.

Sobre sua saída da aldeia, em meados da década de 1940, e a vivência fora desse espaço, Laura fala o seguinte: “Quando eu fui

trabalhar em Jacarezinho, eu passei um momento difícil. Eu... Porque naquela época os índios não levavam muito os seus filhos na cidade, e quando levava a gente tinha um objetivo só: tomar sorvete, tomar guaraná e comer pão, aquelas coisinhas né... Eu pelo menos era assim. Mas quando eu saí daqui, eu tinha o que... treze anos... saí com a Lurdes, viu. Nós saímos juntas, para trabalhar. E ela ficou em Santo Antônio da Platina e eu passei para Jacarezinho. Só que trabalhando para a mesma família. E chegando ali... nós fomos de caminhão, e não

era asfaltado ainda, era muita poeira, muita coisa... Chegando lá a minha patroa falou: ‘olha Laura, você veio da aldeia, meu filho trouxe você para trabalhar comigo, mas primeiro você vai tomar um banho’. Meu cabelo estava até vermelho de poeira. ‘Você vai tomar um banho e depois você troca a roupa, bem bonitinho e vem tomar os combinados, como é que você vai trabalhar, o seu salário, vou fazer um salário para você, onde você vai morar, onde você vai dormir, enfim... arrumar todas essas coisas’ [...]. Aí eu entrei no banheiro e vi tudo branquinho, mas eu não sabia... eu nunca tinha visto chuveiro, né. Aí eu falei: ‘mas tomar banho de que jeito aqui. Onde que eu vou tomar banho? Não sei, né’. Aí sentei assim num canto e comecei a chorar. Aí passou, passou, passou [bate na mesa]... ‘Pronto Laura, já tomou banho?’ Ela já estava preocupada, né. E eu estava do mesmo jeito. ‘Laura, mas por quê não me chamou, para eu poder abrir o chuveiro, tem que abrir para você tomar banho’. Quer dizer: todas aquelas coisas eu enfrentei lá fora. A adaptação minha foi difícil naquela época. Hoje não, você vê, tem casa de material dentro da aldeia, tem torneiras, chuveiro, eletricidade... enfim, tem tudo. Naquela época não tinha nada. A gente tomava banho no rio, a gente andava de pezinho no chão. Então era totalmente diferente. E a minha adaptação foi difícil, não foi fácil. Só que daí eu me adaptei e gostei. Gostei muito. Tanto é que dali eu fui para São Paulo e lá fiquei, trabalhando. E depois já no final dos tempos... um pouco antes de eu vir para cá, que eu sentia aquele desejo ardente de vir embora, porque queria ficar com o meu povo... Agora eu já tinha casado, já tinha minha filha, tinha um filho que faleceu, também. Eu falei: eu vou embora, eu não vou ficar aqui não. Assim que o sr. Alberto, meu patrão [...] ele era dono de um frigorífico ali em Osasco... Eu falei: assim que ele casar, (que ele era solteirão), eu vou embora. Não agüento mais, estou com muita saudade. Eu tinha... a gente vai ficando mais de idade vai voltando aquela coisa. [...]. Então eu fiquei muito tempo trabalhando ali. Ele se casou e mudou para Denver, nos EUA, e queria me levar. Disse que eu ia conhecer o grand canyon, e que lá também tinha índios, que eu ia conhecer outros índios. Mas eu não quis. Coisa minha, né. Coisa de raiz. Eu não vou trocar o meu pelas coisas que eu nem conheço. Jamais. Então a minha adaptação lá fora foi muito boa. Foi maravilhosa. Por quê? Porque eu conheci coisas novas, aquilo que só tinha na aldeia... lá fora era muito gostoso. Então eu fico muito contente. Sou agradecida por tudo que eu aprendi lá fora. Então daí eu falo sempre para esse cooperador [pessoa responsável por celebrar os cultos nos templos da Congregação Cristã no Brasil] que

esteve aqui outro dia, o Melquíades. Eu falei: ‘olha Melquíades, eu sou preparada para qualquer um... se for para eu dormir lá num ranchinho, na beira do fogo, eu durmo tranquilamente. Se for para eu dormir num apartamento, num lugar chique, servir uma refeição para as pessoas de nível mais... eu também estou preparada’. Eu estou preparada. Então para mim foi ótimo. Foi gratificante essa minha saída. [...] E foi essa experiência que fez com que eu tivesse facilidade, capacidade, digamos... capacidade não, mas condições um pouco, para trabalhar como monitora. Porque na época que surgiram os monitores, ninguém queria ser monitor. Meu irmão, o Belmiro falou: ‘eu não vou não, eu tenho dor de estômago, não vou ficar longe da minha velha...’ Não foi. O outro, um sobrinho que já faleceu, falou: ‘não vou, eu não sei falar...’ Aí o Mário [Jacinto] e a Neide, que era professora na época falaram assim: ‘olha, eu sei quem pode fazer isso’. Aí a minha filha falou:’ se vocês estiverem pensando na mãe não’. ‘Mas é justamente a Laura. Ela vai. Vamos mandar o nome dela para Brasília. Ela vai ser a monitora. De hoje em diante vai ser ela’. Chegaram aqui, nem me consultaram. Chegaram me avisando: ‘daqui há uns quinze dias a senhora está indo para [a TI] Rio das Cobras, fazer um curso’. Eu falei: ‘não acredito. Vocês não falaram nada comigo’. ‘Pois é, mas é a senhora’. A única que tinha condições. Foi a minha adaptação... preparação lá fora. Conviver com os brancos. Foi isso. Senão eu não ia ter [condições] também. Ia ser igual eles, tímidos, tal... Eu falei: ‘eu vou, mas se eu não conseguir nada, não me queiram mal por isso’. E eu me esforcei. Fiquei três meses lá [...]. Quando voltei já vim com o livrinho embaixo do braço já para dar aulas para as crianças [...]. Porque... eu não tinha estudo nenhum... porque quando eu cheguei em Jacarezinho, que eu era bem assim... e o menino dela mora em Bandeirantes, doutor Antônio de Souza, filho da minha patroa. Ele estava estudando em Juiz de Fora [...], daí ele falou: ‘mas de onde que veio esse bichinho do mato?’ Aí a minha patroa dizia: ‘ela veio lá do Laranjinha, da aldeia. Diz que tem uma aldeia lá e o teu irmão trouxe e... nós vamos ajudar ela’. E ele disse: ‘nós vamos mesmo. [...]. Eu estou indo agora para Minas Gerais e já vou deixar você matriculada no Rui Barbosa. Você vai estudar’. [...]. E eu fui mesmo estudar no Rui Barbosa, lá em Jacarezinho. E estudei um ano só ali, porque depois já fui para São Paulo. [...]. Então veja bem: foi muito bom para mim a saída da aldeia. Mas eu saí por quê? Eu nem ia sair. Eu não ia sair. Eu saí porque entrou a fome. Porque a mãe da Elizete é que me criava, que minha mãe morreu. Então ela [Rita] fazia peneira, fazia balaio... Daí ela falava assim [...]:

‘afilhada, vamos por aqui, pelo mato, vamos sair no rancho queimado, vamos sair lá por Abatiá... andando... e vamos vender tudo isso’. Descalça... ‘Vamos vender tudo isso e o que eles nos derem, nós trazemos’. Dinheiro geralmente não tinha, na época. E nós saíamos com aquele monte de coisas, peneiras nas costas. E um dava um pedaço de toucinho, outro dava pó de café, outro dava arroz, outro dava carne... aí via o que eles tinham... açúcar... naquele tempo era açúcar mascavo, não tinha branco. Aí a gente vinha... nós levávamos peso e trazíamos mais peso ainda. E quando a gente chegava, no ranchinho lá em cima na divisa... um monte de índios sentados, de cócoras. Aí eu pegava e falava: ‘mas o que eles estão fazendo aí?’ ‘Eles estão esperando a comida’. Eles também não tinham comida. Aí ela já pegava a panela, fazia arroz. Aquela carne já fritava, fazia um bule grande de café e dava para todo mundo. E todo mundo saía com a barriga cheia e ia embora. Aí quando chegava no dia seguinte eu falava para ela: ‘madrinha, faz café para nós tomarmos’. ‘Mas filha, já fiz tudo ontem, já dei. Acabou. Nós temos que vender de novo’. ‘Ah, não. Não agüento mais isso. Todo dia vendendo coisas, andando no sol quente e trazendo coisas para comer de uma vez só. Ah, não’. Aí foi quando eu saí. Mas porque a fome chegou. Porque daí começaram a por fogo nas matas, e já não tinha mais caça, muito pouco peixe no rio, não sei se por... não sei por quê. Acabou. [...] E assim foi acabando as nossas coisas, que nós comíamos. Eles iam na mata, caçavam veado para aquelas bandas do Laranjinha. Matavam, traziam, salgavam aquela carne e a gente comia. Mas foi indo e foi acabando. E eles não estavam preparados ainda para viver como agora, que faz a sua roça, tem o negócio do banco, faz empréstimo... Eles não tinham isso. Então eles estavam mais acostumados com aquela vida mesmo, de caça, entendeu. E aí foi entrando a fome. E eu falei: ‘não vou ficar não. Vou embora. Eu vou... pelo menos o meu arroz, o meu feijão, eu vou batalhar’. E foi o que eu fiz. Porque muitas vezes eu digo assim: se eu tivesse ido de outra forma, tivesse feito de outra forma, digamos... não tinha Brasília ainda, mas tinha o Rio de Janeiro, se eu chegasse lá e pedisse favor... porque eu era índia... a meu favor: ‘olha vocês me ajudam, na parte de estudo, eu quero me formar em alguma coisa’, eles tinham me ajudado. Ao invés de ir como doméstica. Mas eu não me arrependo [...], porque não tinha condição nenhuma mais, né. Então se eu tivesse procurado nessa parte talvez hoje eu era uma pessoa formada também. Mas não era assim. Deus não preparou assim. E eu gostei da maneira como o Senhor me tirou daqui e me trouxe de volta”.

Para Laura, a vivência dela fora da aldeia fez com que ela estivesse mais “preparada” que outros para lidar com certas situações. E, na verdade, essa é uma idéia recorrente entre as pessoas entrevistadas. As pessoas que assumiram cargos e posições de liderança na década de 1980, por exemplo, eram as que tinham vivido fora do espaço da TI durante alguns períodos de sua vida.

Apesar da grande maioria das pessoas/famílias terem vivido experiências em diferentes locais – buscando melhores condições de vida ou por conta da mobilidade característica dos Guarani, que circulam de forma significativa dentro da unidade mais ampla configurada pelos vários grupos locais unidos por laços de parentesco/afinidade – o que emerge das narrativas por mim coletadas é uma relação muito forte dos sujeitos com o espaço da aldeia. A trajetória de vida das pessoas está ligada a esse espaço concreto, pontuado/permeado de histórias e vivências – o espaço e sua marcação na memória dos sujeitos numa relação com os eventos ali vividos. “Já aconteceu muita coisa aqui”. Esse era sempre o mote de Teresa para me contar episódios que, do ponto de vista dela, foram marcantes dentro do espaço da TI – pois que ela os repetiu diversas vezes para mim, ao longo de nossa convivência nas diferentes fases da pesquisa que realizei junto ao grupo141. Os episódios que reproduzo a seguir referem-se a duas

mortes no interior do grupo, a primeira sendo um episódio antigo (ocorrido no início dos anos 1970), o segundo mais recente (ocorrido em 2001). Da mesma forma que uma expressão indicava o início da narração, uma outra a encerrava: “ficou por isso mesmo”.

Uma delas é a de Maria, a “linguará” que ajudou na pacificação dos Kaingang no Posto Velho. Ela também era Kaingang, “parente da

irmã Lurdes, acho que era tia do pai dela [Pedro Coroado]. Ela contava para nós a história lá do Posto Velho, [...] contava que levava bastante roupa, calçados, coisas de comer. Aí ela chegava e conversava com eles... eles ficavam lá do outro lado, com flechas. Ela conversava com eles e os atravessava para cá142. Daí mostrava as roupas que tinha levado para eles. Eles tinham feito a sede para amansar eles [os Kaingang] mesmo. Aí diz que eles pegavam aquela roupa assim e vestiam. Olhavam se tinha algum calçado e ela falava: então levem essas roupas para vocês. E eles atravessavam todos para lá. Quando eles olhavam [os Kaingang] estavam colocando fogo. Eles tiravam a

141 Teresa não foi a única a me falar de tais eventos: em meus cadernos de campo tenho várias

versões deles, contados por diferentes pessoas.

142 Tal como mencionado anteriormente, o rio Laranjinha era a “divisa” entre os índios já

roupa e punham fogo. Queimavam tudo. Daí ela contava que levavam pinga para eles. E foi indo até que amansaram parte dos índios [...] Ela tinha muita história para contar... mas depois morreu, foi morta aqui na aldeia. A polícia matou ela”.

Maria teria vindo da TI São Jerônimo, e tinha um filho chamado Estevão que, segundo Teresa, “não concordava com nada. [...] Era o tempo de um tal de Jonas, que era o chefe aqui. E ele era meio carrasco, queria se aproveitar dos índios. Ele fazia roça e os índios que tocavam para ele”. Os índios todos tinham que trabalhar na roça, e Estevão se recusava, de forma que, “por causar confusão dentro da área”, acabou sendo ameaçado pelo chefe do posto de expulsão. Mas por ele ter se rebelado contra a exploração do grupo, os índios tinham medo de que, no caso dele, a represália não ficasse apenas na expulsão, envolvendo também algum tipo de violência. Segundo Teresa, os índios então se revesavam para tomar conta da casa dele, impedindo que ele fosse retirado da TI. “Mas se descuidaram um pouco”, e o administrador, acompanhado da polícia, conseguiu surpreender a família em casa sozinha. “Daí diz que quando eles chegaram a mãe dele estava

fazendo um cigarrinho na palha – estava picando o fumo para fazer o cigarro e a polícia chegou. [...] Dizem que ele [Estevão] entrou para pegar uma camisa [...] para vestir para vir atendê-los, e ela saiu na porta com uma faca, que ela estava fazendo o cigarro... Quando ela saiu na porta a polícia achou decerto que ela ia agredir alguém e deram um tiro de fuzil [...]. Eu estava até lavando roupa com uma vizinha japonesa, que a gente sempre lavava roupa junto, e meu sogro chegou: ‘Mataram a Maria’. Foi um choque para nós. Daí a gente foi [até lá], ela estava bem no terreiro, na porta da casa dela, no ranchinho. Ela estava de bruços. No peito parecia que era um buraquinho de nada. Mas nas costas abriu aquele rombo [...]. Coisa muito terrível”.

Não consegui saber se, na época, foi aberto algum tipo de