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OS MITOS: AS HISTÓRIAS DOS ANTIGOS

Tal como já mencionado anteriormente, pedir para as pessoas falarem do passado e de sua trajetória de vida desencadeou a narrativa de lembranças ligadas à casa de rezas e à vivência com os “antigos” (histórias ouvidas quando crianças, episódios envolvendo os antigos rezadores, etc.). Por sua vez, foram essas lembranças ligadas aos rituais que trouxeram à tona os temas da cosmologia e dos mitos. Assim, a idéia que norteia a forma de apresentação dos dados neste capítulo é a afirmação de Nimuendaju (1987) de que mito/cosmologia e ritual formam um conjunto indissociável dentro da cultura Guarani.

Ao usar a expressão “tempo dos antigos” ou “antigamente”, os Guarani podem estar se referindo tanto a um tempo mítico (quando os deuses ainda viviam na terra, ou os animais falavam, por exemplo), quanto a uma época onde se falava na linguagem, os rituais aconteciam regularmente e os rezadores eram pessoas de grande poder (referindo-se, nesses casos, a eventos que envolvem os pais e avôs da geração mais velha do grupo). A intenção desse capítulo, então, é situar certas narrativas dentro do pano de fundo da cosmologia guarani, bem como abordar mais a fundo os rituais de canto e reza e noções como a de pessoa (que de certa forma sintetiza/relaciona os conceitos de cultura, natureza e sobrenatureza, além de remeter para a questão do perspectivismo).

5.1 OS RITUAIS DE CANTO E REZA

Conforme aponta Schaden (1962), existe uma grande variabilidade nas práticas e concepções ligadas aos rituais guarani. Segundo ele, estas diferenças seriam decorrentes de dois fatores principais: o caráter individual da religião guarani, pois ainda que a importância social e comunitária das cerimônias religiosas se destaque, não menos importante é a vivência religiosa individual, que manifesta- se nas diferentes circunstâncias do cotidiano, onde uma pessoa pode receber consolação, conselhos e revelações das divindades; e o fato de que essa multiplicidade de idéias e crenças reflete os contatos com a religião cristã, de um lado, e a fusão das diferentes doutrinas subgrupais produzida pelas migrações, que levaram à formação de aldeias em que se reúnem, em uma mesma comunidade de vida e de culto, famílias de diferentes subgrupos (como é o caso, justamente, das aldeias da região aqui tratada).

Assim, nas diferentes etnografias produzidas sobre os Guarani, as descrições sobre os rituais de canto e reza – ainda que remetendo para pontos gerais em comum, descortinam diferentes e criativas elaborações feitas pelos grupos a partir de seu contexto165.

Em meu trabalho anterior (2003) compus, a partir da fala de diferentes pessoas do grupo, um relato do que seriam os rituais de canto e reza realizados na TI Laranjinha até o início da década de 1990. Na ocasião dessa pesquisa anterior, o grupo estava bastante envolvido com a CCB, de forma que os relatos sobre as experiências vivenciadas na “igreja guarani” foram bastante evasivos/superficiais (“era bom”, “todo mundo participava”, etc.). Ao realizar as entrevistas, claro que eu explicava às pessoas que o objetivo de minha pesquisa era entender a conversão do grupo. Mas, além de pedir para que as pessoas falassem sobre como tinha acontecido sua conversão à CCB, eu pedia também para que elas falassem de suas experiências anteriores, ligadas à casa de rezas. Mas, justamente, a grande maioria dos entrevistados conduziu sua fala dando ênfase quase que exclusivamente à sua conversão e ao que aconteceu depois dela – e não antes.

Das falas coletadas naquela ocasião e nas diferentes fases da pesquisa atual, emerge o seguinte quadro descritivo: anteriormente, todos os membros do grupo participavam dos rituais que aconteciam na casa de rezas. A freqüência dos rituais166, bem como sua finalidade, eram

variáveis. Pequenos rituais envolvendo uma família e pessoas mais próximas podiam ser realizados diariamente, à noite ou ao amanhecer, no espaço doméstico. Os rituais envolvendo o grupo como um todo eram realizados semanalmente, podendo essa freqüência ser mais espaçada ou se intensificar em momentos críticos – tais como uma seca prolongada ou chuva muito intensa (que potencialmente poderiam afetar o ciclo ecológico/da agricultura, sendo portanto um risco para a

165 Um exemplo interessante desse tipo elaboração ( individual e coletiva) pode ser encontrado

no trabalho de Rose (2010), onde a autora analisa o processo de apropriação da bebida comumente conhecida como ayahuasca pelos Guarani Mbya da TI Mbiguaçu, no litoral de Santa Catarina, bem como a incorporação dessa bebida aos rituais de canto e reza praticados pelo referido grupo.

166 Algumas pessoas mencionaram que, nos últimos anos em que a “casa grande” ainda estava

ativa, a participação do grupo já não era tão significativa (não só por conta das conversões, que começavam a acontecer, mas porque muitos deixaram de participar mesmo, dados os problemas com alcoolismo e outros já mencionados anteriormente). “Alguns ainda acreditavam, e outros já nem tanto”. Lica contou que algumas vezes ia para a casa de rezas sozinha, ajudada por Rita, mas que “ninguém aparecia. Só quando precisava. Aí eles vinham pedir favor prá gente”.

sobrevivência/manutenção do grupo)167. Havia também rituais que só

eram realizados de tempos em tempos, como o nimongaraí. Segundo a fala de um informante: “antigamente a tribo não se lembrava de

Ñanderú apenas em tempos difíceis. O mboraí [canto/reza] era um ato

de agradecimento pela vida, pelas colheitas e pelos livramentos de toda espécie de mal”.

A casa de rezas era (e é até hoje) uma construção ao estilo dos antigos “ranchos”, feita de lascas de madeira e sapé. Antigamente, ficava num descampado grande e plano, e no terreiro existente diante dela, de frente para sua entrada e há cerca de dez metros dela, estavam colocadas três cruzes de madeira, uma maior em meio a outras duas menores, todas cobertas por colares cerimoniais. Dentro da casa de rezas, outras três cruzes, sendo uma de um metro de altura em meio a outras duas de cinqüenta centímetros, igualmente ornamentadas, estavam dispostas ao lado de um recipiente de cedro168, apoiado numa

espécie de forquilha. Dentro da casa de rezas e no pátio/terreiro em frente a ela, estacas de madeira de cerca de um metro de altura serviam como suporte para as velas de jity169 usadas na ocasião do ritual de

nominação. Os colares, diademas170 e instrumentos usados nos rituais

permaneciam guardados na casa de rezas, geralmente depositados numa espécie de mesa ou suporte.

Essa descrição se refere à última oyguatsu em atividade no Laranjinha. À medida que várias pessoas do grupo converteram-se ao pentecostalismo, apenas um pequeno grupo de pessoas continuou participando dos rituais de canto e reza, e uma “igreja” similar à que foi acima descrita, mas de proporções bem menores, foi construída próxima à casa de uma das famílias ainda ligadas ao xamanismo (no caso, a família de Cecília Utida).

167 A visão de mundo guarani, conforme apontado por Nimuendaju (1987) e outros autores,

está impregnada da idéia de uma “fragilidade” e “instabilidade” ligada a uma possível destruição do mundo. Inundações, secas e outras catástrofes naturais anunciariam a proximidade dessa destruição e, assim, a prática ritual guarani asseguraria, através dos cantos e danças, a sustentação do mundo e a contenção do “mal”.

168 Esse recipiente, uma gamela em forma de canoa, entalhado num pedaço de tronco de cedro,

é chamado por Nimuendaju (1987:79) de “pia batismal”, justamente porque, na ocasião dos rituais de nominação, nele são colocadas lascas da mesma árvore de que são feitos e deixadas em infusão com água. Essa água perfumada com a casca de cedro era jogada pelo rezador na cabeça dos que recebiam seus nomes.

169 Velas confeccionadas pelos Guarani com cera de abelha jataí.

170 Segundo meus informantes, tais objetos não eram simples adornos, mas uma “proteção”

para os rezadores. Podiam ser usados não apenas durante os rituais, mas em incursões à mata, por exemplo.

Quando estive lá em 2002, também essa pequena casa de rezas estava desativada, mas nela estavam guardados todos os instrumentos, objetos e enfeites utilizados anteriormente nos rituais: mbaracás, os instrumentos femininos (tacuapú), os recipientes de cedro, colares e cocares cerimoniais. Com o tempo ela foi se deteriorando, sem ser novamente refeita. Mas em 2006, quando estive novamente em campo, uma pequena casa de rezas estava de pé, próxima à casa de Dito Matias, filho de Cecília. Ela havia sido construída no final de 2003, período em que o grupo retomava os rituais de canto e reza coletivos (ainda que, claro, numa proporção bem menor, dado que muitos permaneciam ligados à CCB). Com os atritos que antecederam a cisão do grupo e a posterior saída de várias famílias para o Posto Velho, ela ficou abandonada e em seu interior já não havia nenhum tipo de objeto.

Em 2006 visitei as aldeias das TIs Laranjinha, Posto Velho e Pinhalzinho. No Posto Velho (ou Yvyporã/Laranjinha), o grupo que para lá se transferiu começava a construir uma oyguatsu próxima ao local onde estavam acampados. A necessidade de construí-la e sua localização tinham sido reveladas em sonho para um dos homens do grupo que ali estava.

E na TI Pinhalzinho, uma casa de rezas havia sido recém- construída. Ainda que não haja, nesse grupo, a presença de religiões ocidentais (não existem igrejas atuando dentro da TI, como no Laranjinha), há muito que os rituais coletivos ligados ao xamanismo tradicional não eram ali realizados. Nos conflitos internos que ocorreram na TI Laranjinha, o grupo do Pinhalzinho apoiou as famílias que se retiraram para o Posto Velho. E quando estas, ainda no Laranjinha, começaram a retomar os rituais de canto e reza, isso teve grande impacto no grupo do Pinhalzinho, que também os retomou171

(pelo menos àquela época).

Esses dados indicam então que, ao longo do tempo, a localização dessas “casas de reza” era variável – não existindo um local fixo –, e dependia, entre outras coisas, do(a) rezador(a) que estava a frente dos rituais (pois muitas vezes ela era construída perto da casa onde ele(a) vivia com sua família, ou em locais por ele(a)s indicados). Além disso, como todas as construções em estilo “tradicional”, essa também precisava ser refeita periodicamente, por conta mesmo do tipo de matéria-prima empregada, que com o tempo ia se deteriorando. E isso também contribuía para que ela fosse mudando de lugar, pois, à 171 É importante ressaltar que quando falo em “retomada”, refiro-me ao âmbito coletivo dos