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O Espaço Como Critério da Horizontalização de Capacidades Militares

CONSEQÜÊNCIAS REGIONAIS E GLOBAIS.

Toda a máquina de guerra da Coréia do Norte era alicerçada em uma ofensiva fulminante. A do sul, em sobreviver a ela até a chegada das 690 mil tropas americanas. O Norte não tem mais condições de realizar sua EOD − sabem disso claramente, e por isso abandonaram sua “auto-suficiência” em beneficio da política do “fortalecimento da economia nacional”. Também abdicaram da estratégia ofensiva, passando a fortificar sua posição e preparar-se para enfrentar uma invasão da Coréia do Sul.

Vimos também como o armamentismo do Sul foi funcional para a industrialização, a construção de uma oligarquia de novo tipo (industrial) e a construção do pacto entre as famílias (Chaebols) para governar o país. Na transição para democracia, a lógica de aprofundar a abertura, impedir retrocesso e livrar-se da presença estadunidense, fez com o armamentismo fosse mantido. Foi o meio de suborno, de comprar os Chaebols e os militares para o regime democrático. Em 1997 converteu-se no meio de sair da crise econômica da Ásia. No centro desta continuidade, a digitalização, que permitiu a Coréia do Sul recuperar sua economia, mas também a levou a exceder os meios necessários para sua defesa e ter condições para invadir o Norte.

Ainda em 1994, devido ao seu enfraquecimento, os norte-coreanos foram para a negociação das 6 partes e firmaram um acordo. Sob supervisão internacional, desmantelaram os artefatos nucleares que tinham até 1995398. Apostaram em uma integração ampla e pacífica ao sul procurando, no entanto, preservar seu programa missilístico que seria de grande utilidade em uma Coréia unificada: a união poderosa de foguetes e computadores, a imagem do domínio do espaço real e virtual. Setenta milhões de habitantes, em processo de crescimento acelerado, certamente colocariam a Coréia Unificada em posição para a disputa de uma vaga no G-8; hoje a Coréia do Sul já é a 11ª economia mundial. Por isso, os norte- coreanos já desistiram de seu programa nuclear duas vezes (1995 e 2007). Mas nunca aceitaram rever o programa de mísseis.

398 CIA Nuclear Weapons FAS http://www.fas.org/nuke/guide/dprk/nuke/cia111902.html

(08/07/2006). The following document is an untitled estimate provided to Congress on November 19, 2002. Neste texto obtido pela FAS consta que a Coréia do Norte possui: “North has one or possibly two weapons using plutonium it produced prior to 1992.”

Enquanto a almejada unificação não vem, os coreanos do norte alicerçam sua capacidade de dissuasão em um único ponto: seu programa missilístico, tendo em vista constituir capacidade de ataque efetivo ao Japão. Em virtude do que consideraram o não cumprimento dos acordos pela parte estadunidense, os norte-coreanos retomaram seu programa nuclear, o que culminou no teste de 9 de outubro de 2006, quando a Coréia do Norte detonou um explosivo de baixo rendimento. Segundo a Cordesman, o rendimento, a julgar pelo abalo sísmico, ficou em torno de 550 toneladas de TNT, o que indica um teste falho ou, mais improvável, um alto domínio tecnológico, a capacidade de confeccionar uma arma nuclear de batalha faixa sub-quiloton399.

Há divergências sobre o rendimento400: Teerã reporta algo em torno de 5 a 15 quilotons, o que colocaria a explosão da Coréia do Norte na faixa da bomba de Hiroshima. As incertezas se encarregam de disseminar o medo e, com ele, o risco da erosão da estabilidade da região.

Daí as pressões que culminaram com o novo acordo de 2007. Os norte-coreanos foram longe demais. Perderam o apoio da China e da Rússia. Os dois países mantiveram uma postura pública sóbria. Explicitaram que não iriam aceitar uma solução de força. Entretanto, sua pressão nos bastidores foi firme e eficaz401 − ao contrário de suas manobras militares realizadas antes do teste, que foram feitas como alerta contra sua consecução402.

399 CORDESMAN. Anthony H. The Meaning of the North Korean Nuclear Weapons Test.

Washington, Center for Strategic and International Studies (CSIS). 09 de outubro de 2006. www.csis.org. (10/10/2006).

400 TEHRAN TIMES. Fear and tension in East Asia. Tehran, Tehran Times Opinion Column, 09 de

outubro de 2006. http://www.mehrnews.com/en/NewsDetail.aspx?NewsID=392067 (10/10/2006).

401 A China e a Coréia do Norte tiveram uma micro-guerra em 16/09/2006. Foi quando cinco

operacionais da inteligência norte-coreana entraram na China em trajes civis, para seqüestrar um oficial de inteligência chinês de uma base próxima à fronteira. Houve luta e troca de tiros. Ao menos um soldado chinês foi morto na tentativa frustrada de seqüestro. A China demandou a Coréia do Norte para que fossem entregues os incursores. Mas os coreanos recusaram. Generais do EPL ficaram furiosos e defenderam a revogação do pacto de defesa mútua entre a China e a Coréia do Norte. STRATEGYPAGE. North Korea Invades China. Strategypage Articles, 18/10/2006. (On-line): http://www.strategypage.com/htmw/htintel/articles/20061018.aspx (Acesso em 20/10/2006).

402Cf,: KHAN. PLA Maneuvers with Intervention to N. Korea in Mind? 09/11/06

http://news.khan.co.kr/kh_news/khan_art_view.html?artid=200609110744501&code=910302 (original em Coreano) http://www.freerepublic.com/focus/f-news/1699908/posts (em inglês).

Graças à gestão chinesa, mais uma vez norte-coreanos e estadunidenses chegaram a um acordo. E, mais uma vez, ele ameaça desfazer-se. De todo modo, os americanos pagaram à quantia reivindicada pelos norte-coreanos. Estes, de seu turno, desmantelaram o reator de Yongbyon. Todavia, as partes se recusaram a prosseguir além daí. Nenhuma surpresa, pois como se viu, o conflito é funcional a ambos.

Entretanto, desta vez existem complicações. O partido pró-japonês venceu as eleições na Coréia do Sul. O retorno da direita liberal ao poder foi surpreendente. A Coréia do Sul atualmente é governada por um indivíduo nascido no Japão. De outro lado, afirma-se que a Coréia do Norte, apesar de desmantelar o reator, reteve consigo dez bombas atômicas403.

Sabendo não poder contar com a colaboração de estadunidenses e norte-coreanos para pôr fim à um jogo perigoso que ameaça sua segurança, a China vê-se compelida a aprofundar sua parceria estratégica com a Rússia e manter a aliança tácita com a Coréia do Sul.

A modificação na doutrina militar japonesa já faz sentir seus efeitos na região. O Japão tem adotado um comportamento mais agressivo. Há anos o Japão reivindica pacificamente sua posse do arquipélago das Curilas, sob soberania russa. Agora, talvez também motivado por participar com os Estados Unidos da ocupação do Iraque, toma atitudes de força. Recentemente, mais de 40 aviões japoneses interceptaram dois Tu-95 russos no espaço aéreo reivindicado. Mais uma vez, os russos nada fizeram, limitando-se a protestar de que estavam nos limites de sua soberania. Tanto o Japão quanto a Rússia aderiram ao princípio da guerra preemptiva porque, em uma região como esta, o perímetro exterior da Sacalina e de Kamchatka não chega a ser tranqüilizador.

Quanto à Coréia do Sul, deve ser alarmante para Pequim a posse de um governante tão identificado com o Japão na Coréia do Sul. Nestas condições, a Coréia do Norte dificilmente poderá continuar seu jogo de alto risco, permitindo que o Japão e os EEUU prossigam com a defesa antimíssil − uma clara ameaça à paz mundial.

Ameaças, incidentes de fronteira e manobras: tudo tem se revelado ineficaz para o controle da faminta Coréia do Norte. Surgiram rumores sobre a saúde do grande líder. Ao mesmo tempo, aumenta o fluxo de refugiados da Coréia do Norte em direção à China.

403 AFP. China planning to secure North Korea's nuclear arsenal. 8 de janeiro de 2008

Em virtude disto, tem sido divulgada sistematicamente, em caráter extra-oficial e, negada com a mesma obstinação pelas fontes governamentais, a intenção da China de promover a “mãe de todas as intervenções humanitárias”404.

A declaração se refere aos relatórios sobre uma catástrofe humanitária na Coréia do Norte, situada pela Jane’s como factível nos próximos seis meses. Frente a isto, a China assumiu uma postura incomum. Para tranqüilizar os sul-coreanos, declarou que, “Se necessário, tropas do EPL poderiam ser despachadas para a Coréia”. Neste caso, “A China tem forte preferência por receber uma autorização formal e coordenar uma ação conjunta com a ONU em um caso de necessidade”. Mas, acrescenta: “Entretanto, se a comunidade internacional não reagir na hora certa, enquanto a ordem interna da Coréia do Norte se deteriora rapidamente, a China procurará tomar a iniciativa para restabelecer a estabilidade.”405

Com isto, o ciclo se fecha. O único país da região que até então não havia aderido à preempção era a RPC. Seus motivos são compreensíveis: trata-se de tranqüilizar a Coréia do Sul quanto às armas nucleares em posse da Coréia do Norte (“manter a salvo armas e materiais de fissão”). Além disso, evitar que, ao mesmo tempo, o Japão tire proveito de uma desintegração descontrolada do regime de Kim Jong-il. De todo modo, trata-se de algo inédito. A China havia se pautado em favor da autodeterminação dos povos e da inviolabilidade do princípio de soberania. Sempre foi reticente em relação às operações de estabelecimento de paz. As guerras que travou na região, de seu ponto de vista, foram em defesa de sua soberania e segurança (Índia, 1962 e Vietnã, 1979).

Neste caso, deve-se perceber que, confirmada a posição de Pequim, há uma reviravolta de 180º graus no que até então tem sido os princípios que têm pautado a diplomacia chinesa − baseados na carta da ONU e no Direito internacional muito antes mesmo de o país ter assento naquela organização. Seria tranqüilizador o pensamento de que a China estará se movendo apenas para salvaguardar sua segurança e de seus vizinhos próximos, na região onde sempre foi exercida a suserania chinesa. O fato de esta perspectiva estar correta não elide o problema de que, aos olhos da opinião pública mundial, a China estará agindo do mesmo modo que os Estados Unidos: avocando a si o direito de interpretar, julgar e executar o que considera imperativo para a segurança mundial.

404 “The mother of all humanitarian relief operations”. Cf.: JOHNSON, Reuben F. Clock ticking for

Kim's Korea. Jane's Defence Weekly, 30 de Janeiro de 2008.

405 AFP. China planning to secure North Korea's nuclear arsenal. 8 de janeiro de 2008

Poucos irão entender as razões mais profundas da diplomacia de Pequim. Trata-se de esconjurar o pesadelo de um Japão nuclear ou, ainda pior, de uma intervenção japonesa na Coréia do Norte. Esta foi a rota seguida por todos os invasores da China. O Japão não é uma ameaça para o futuro, e sim para o presente. O país possui material enriquecido para a produção de até 10.000 ogivas. Devido à este estoque, o Japão pode ter um teto de ogivas muito superior ao previsto nos acordos SALT/START como limites para a Rússia e os EEUU. Como este país já possui veículo lançador de satélite (VLS), a única dificuldade remanescente é o sistema de guiagem. Ora, a tecnologia para guiagem de um ABM é muito superior em suas especificações à necessária para a construção de um ICBM. Assim, os EEUU deliberadamente facultam ao Japão a violação do TNP e do MTCR. Esta percepção não passa ao largo do cálculo estratégico da Rússia e da China. Como aludem Lieber e Press406, o escudo antimíssil oculta propósitos inconfessáveis: a detenção do monopólio nuclear − a capacidade de, em um único golpe preemptivo, aniquilar os arsenais nucleares da Rússia e da China.

O que fará o Japão caso julgue ter as provas suficientes sobre capacidades missilísticas ou nucleares da Coréia do Norte? Após o teste nuclear norte-coreano, a pergunta é retórica: o Japão julga ter todas as provas de que precisa. Sua resposta já foi dada, há tempos atrás, pelo primeiro ministro japonês. Junichiro Koizumi afirmou que seu país atacará primeiro. A mudança formal na EOD japonesa deixa claro de que não se trata de uma bravata do ministro. Por este viés canhestro, a preempção japonesa pode ser o pivô de uma guerra mundial. Afinal, é sua disposição de atacar preventivamente a hipótese mais consistente para o estalar de uma nova conflagração na península407. A doutrina da guerra preventiva nos conduz ao absurdo: note-se, o Japão − e não o programa nuclear ou missilístico norte-coreano − converteu-se na principal ameaça à paz na península.

Finalizando, cabe consignar: em torno da Coréia, aliam-se as principais economias da APEC (Rússia, EEUU, China, Japão e a própria Coréia do Sul). Até agora, o interesse comum na prosperidade econômica tem evitado desdobramentos deletérios ou minimizado o efeito de incidentes militares. A situação da região fica mais nebulosa se considerarmos os relatórios que comparam a crise econômica, ora em curso nos EEUU, com a Grande Crise de 29.

406 Cf. LIEBER e PRESS, 2006, pp. 47 a 56.

407 Se depender exclusivamente das duas Coréias, a despeito da pressão militar recíproca, agora mais

intensa até da parte do sul, a situação da reunificação se resolve no contexto mais amplo de integração da região. Mas de modo pacífico. O prejudicado com a integração da Coréia do Sul, com a Rússia e a China, é o Japão. Daí a ser o único possível interessado em uma nova guerra na península.

Motivos não faltam: a enorme expansão de crédito no setor imobiliário e a desconfiança acerca da saúde financeira dos grandes bancos408. Além disto, a desvalorização do dólar

lembra a expansão financeira de Fernand Braudel e Giovanni Arrighi. Segundo estes autores, tal expansão precede o fim de um ciclo econômico e de uma hegemonia mundial.

Qualquer que seja o caso, a desvalorização do dólar gera um problema de confiança. E a confiança é ó valor que alicerça todas as expectativas de mercado. O problema é como vão se comportar os atores da região, que têm em suas mãos tanto a maior fatia do PIB mundial, com o problema coreano. Neste caso, a doutrina da preempção não é um condutor auspicioso para as relações internacionais da região no mar conturbado da crise econômica mundial.

Quaisquer que sejam as motivações estruturais, caso estale uma nova guerra na península coreana, ela se deverá, sobretudo, às mudanças na EOD dos países da região suscitadas pela digitalização. O conceito de guerra preventiva é uma decorrência direta desta modernização no âmbito da doutrina. De uma recepção da era digital deformada pelo militarismo.

408 Hobsbawm, a respeito da Grande Crise de 29, afirma: “Os bancos foram atingidos pelo boom

especulativo imobiliário que, com a tradicional aliança entre otimistas auto-iludidos e a crescente picaretagem financeira, chegou ao auge. Eles estavam sobrecarregados de dívidas não saldadas e recusaram novos empréstimos para habitação e refinanciamento para os existentes. Com hipotecas domésticas em atraso e propriedades em atraso sendo executadas, os bancos estavam à beira da ruína. (...) O que tornou a economia tão mais vulnerável a esse boom de crédito foi o fato de que os consumidores não usavam seus empréstimos para comprar os bens de consumo tradicionais. Em vez disso, os consumidores compravam os bens supérfluos da moderna sociedade de consumo”. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos .São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

3) GUERRA LOCAL ENTRE ÍNDIA E CHINA

Este capítulo procura responder à pergunta: até onde a digitalização alterou o equilíbrio produzido pelas armas nucleares nos Complexos Regionais de Segurança da Ásia nos termos descritos por Arpit Rajain, o qual em seu Nuclear Deterrence in Southern Asia, afirmou que a Índia, o Paquistão e a China produzem um sistema de balanços e contrapesos estável que se equilibra mutuamente409.

A resposta à pergunta é afirmativa. A tecnologia digital de seus aplicativos alterou a correlação de forças e, sob certas condições, as expectativas de êxito em uma guerra local. Entre estes avanços, temos os sistemas mais recentes incorporados aos arsenais da Índia e da China, tais como o Squall, o torpedo de supercavitação (resultado da realidade virtual), as ogivas termobáricas (tributadas da nanotecnologia), os projéteis de guiagem final a laser do tipo Krasnopol e a digitalização das comunicações em nível de grupo de combate (team).

A estes desenvolvimentos, somam-se as possibilidades abertas pela logística mais leve. Maior acurácia, menor o impacto das requisições de munição sobre a cadeia de logística e suprimentos. A digitalização relaciona-se também com a expansão da indústria aeronáutica, graças ao uso de simuladores virtuais que reduziram o custo de aviões de combate de primeira linha e trouxeram um novo fôlego para indústrias de bens de capital nos ramos de propulsores (jatos e pistão), cujos motores criam novas possibilidades às operações, alongando a cadeia de suprimentos.

Entretanto não é a presença das armas que fazem a guerra. Por isso é obrigatória uma reflexão sobre o grau de determinação e liberdade que paira sobre as relações sino indianas. Aqui se procura responder à pergunta: serão a Índia e a China equivalentes asiáticas no século XXI, da França e Alemanha na Europa do século XX?

409RAJAIN, Arpit. Nuclear Deterrence in Southern Asia: Índia, China and Pakistan. Nova Déli: