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2. Perturbação psicológica em ex-combatentes

2.2. Consequências psicossociais

Para além do impacto na saúde mental e física dos ex-combatentes, a literatura tem assinalado o impacto no ajustamento psicossocial após a experiência de guerra (Bonomi, 2003; Drescher & Foy, 2008; Laufer, 1988; Vukšić-Mihaljević, Mandić, Benšić, & Mihaljević, 2000). A investigação qualitativa encontrou verbalizações do pós-guerra como um período de infortúnio atribuído à severidade dos sintomas pós-traumáticos duradouros (Ajdukovic et al., 2013; Connell et al., 2013; Maedl et al., 2010). Neste particular, a presença de maior severidade de sintomas da PSPT apresentava uma associação negativa com o bem- estar psicológico (Durai et al., 2011; Lunney & Schnurr, 2007) e uma associação positiva com a percepção de maiores dificuldades nas relações interpessoais (Erbes, Meis, Polusny, Compton, & Wadsworth, 2012; Maedl et al., 2010; Osran, Smee, Sreenivasan, & Weinberger, 2010).

Em ex-combatentes da GCP, Pereira et al. (2010b) verificaram que os participantes com critérios de diagnóstico da PSPT apresentavam maior sintomatologia psicopatológica generalizada e menor qualidade de vida (psicológica, física, social e geral) comparativamente aos participantes sem PSPT. Estes resultados obtidos junto de amostras nacionais e internacionais levam-nos a considerar que as consequências na saúde mental dos ex- combatentes associadas à participação na guerra abrangem uma combinação complexa de fenómenos biológicos, psicológicos e sociais (Alayarian, 2011; Drescher & Foy, 2008; Herman, 1992, 1998; Kudler, 2007; Lansky, 2000; Rosenbaum & Varvin, 2007; Varvin, 2003).

Alguns trabalhos qualitativos encontraram verbalizações referentes à percepção da transformação do contexto psicossocial e da estranheza da adequação dos seus comportamentos ao contexto social (Brenner et al., 2008; Demers, 2011; Laufer, 1988). Neste particular, Stein (2007) observou a verbalização de sentimentos de insegurança e ameaça no regresso à vida civil devido à privação das armas e do apoio dos camaradas que tinham assegurado a sua segurança no TO. Em ex-combatentes da GCP, foram igualmente encontradas verbalizações da percepção da ruptura ou descontinuidade na identidade pessoal e na relação com os outros entre os períodos pré e pós-militares (Sendas, 2010). Desta forma, no pós-guerra, os ex-combatentes percepcionam a sua existência como ocorrendo em dois

mundos separados e irreconciliáveis: o mundo das memórias traumáticas e o mundo pós- guerra (Bragin, 2010). Os ex-combatentes percepcionam o mundo pós-guerra como dotado dum significado diferente do possuído antes da guerra (Bragin, 2010; Werbart & Lindbom- Jakobson, 1993).

A percepção de mudança abrange igualmente uma transformação da personalidade após o regresso do TO associada a um conflito entre os valores morais do contexto de guerra e os “novos” valores da vida civil (Drescher & Foy, 2008; Stein, 2007; Whealin, DeCarvalho, & Vega, 2008). Este processo foi observado nalguns trabalhos que verificaram em ex- combatentes com perturbação mental associada à experiência de guerra, a descrição dum processo de identificação ao seu papel social como soldado (Laufer, 1988; McNally, Lasko, Macklin, & Pitman, 1995). A identificação com um Self militar (Laufer, 1988) origina um sentimento de ambiguidade associado ao conflito entre um estado de simbiose (com os camaradas e com a instituição militar) no contexto de guerra e as exigências de efectuar escolhas individuais no pós-guerra (Amati Sas, 1992).

Foram igualmente encontradas descrições de dificuldades de ajustamento psicossocial em ex-combatentes da GCP, tendo alguns trabalhos qualitativos extraído temas de dificuldades nas relações interpessoais, percepção de fraco suporte social, isolamento social, desligação e estranheza na relação aos outros, e dificuldades de expressão emocional e das necessidades pessoais (Começanha, 2011; Começanha & Maia, 2011; Pereira, 2012). Outros trabalhos observaram maiores dificuldades de adaptação sociofamiliar e no relacionamento interpessoal, e percepção de menor suporte social em ex-combatentes com diagnóstico de PSPT comparativamente a ex-combatentes sem PSPT (Anunciação, 1997; Pereira et al., 2010b). As dificuldades no ajustamento psicossocial foram atribuídas a maior impaciência e irritabilidade após o regresso da guerra e ao desconhecimento dos outros sobre essa experiência que originavam sentimentos de desconfiança e a percepção de incompreensão por parte da sociedade (Pereira, 2012).

Tal como acima descrito, o conflito entre os valores sociais e morais do contexto de guerra e da vida civil originam um dano sistema de crenças acerca da segurança do mundo e do valor positivo do Self e dos outros (Herman, 1992; Payne, Joseph, & Tudway, 2007). Neste sentido, Campbell e Morrison (2007) encontraram uma associação positiva entre crenças mais negativas do Self e do mundo com maior preocupação com as memórias de combate e crenças mais negativas dos outros. Estes resultados sugerem que a percepção de instabilidade e insegurança no contexto pós-guerra origina a percepção de menor suporte

social e a redução da rede de relações sociais nos ex-combatentes (Ajdukovic et al., 2013; Herman, 1992; Viñar, 2005).

As atitudes da comunidade após o regresso dos ex-combatentes do TO foram propostas como um factor com influência no ajustamento psicossocial dos indivíduos (Bragin, 2010; Carr, 2011). Alguns trabalhos verificaram que a percepção de atitudes negativas ou hostis da sociedade estava positivamente associada a maior severidade de sintomas da PSPT e depressivos (Koenen et al., 2003; Maedl et al., 2010; Vasterling et al., 2010; Vukšić- Mihaljević et al., 2000). A percepção das atitudes da sociedade era uma variável mediadora do efeito dos sintomas de PSPT na satisfação com a vida (Tsai, Harpaz-Rotem, Pietrzak, & Southwick, 2012). Estes resultados sugerem que a percepção de desinteresse da sociedade relativamente aos sacrifícios dos ex-combatentes durante a guerra e a desvalorização das qualidades pessoais prévias à guerra agravam o desajustamento psicossocial nesta população (Demers, 2011; Elder & Clipp, 1989; Herman, 1992).

A percepção de rejeição social relativamente aos ex-combatentes foi designada como traumatização secundária (Alayarian, 2011; Elder & Clipp, 1989; Herman, 1992; Maedl et al., 2010). A traumatização secundária abrange tanto o sofrimento psicológico causado pela experiência de guerra, como a percepção de condenação da sociedade desse sofrimento (Hinton, 2005; MacNair, 2007; Nussio, 2012). Este processo era mais notório em países envolvidos em conflitos militares sem apoio social durante o seu descurso, particularmente nos ex-combatentes da Guerra do Vietname (Elder & Clipp, 1989; Grossman, 1996; Vasterling et al., 2010). A condenação social dos ex-combatentes foi um factor atribuído à percepção de estigmatização social nesta população (La Bash & Papa, 2014; Maedl et al., 2010; Nadelson, 1992; Nussio, 2012).

A investigação qualitativa explorou a percepção de estigmatização social em ex- combatentes, identificando temas de estereótipos dos combatentes como indivíduos violentos e perigosos, percepção da ida para o serviço militar por vontade própria dos ex-combatentes, incompreensão dos civis e compreensão apenas por ex-combatentes, evitamento do tratamento por receio do rótulo de doente mental, e diferenças na simpatia do público comparativamente a outros tipos de traumatizações (Hinton, 2005; MacNair, 2007; Mittal et al., 2013). A percepção de estigmatização social estava positivamente associada ao agravamento de sentimentos de vergonha (Campbell, Pickett, & Yoash-Gantz, 2010; Carr, 2011), constituindo uma barreira ao início duma intervenção terapêutica nesses indivíduos (Carr, 2011; Hoge et al., 2004; Reger et al., 2013; Sayer et al., 2009).

A percepção de estigmatização social foi proposta como acentuando a divergência entre a visão do mundo do ex-combatente comparativamente aos outros originando a auto- percepção do ex-combatente como um ser alienígena possuindo uma visão modificada do mundo (Bragin, 2010, 2011; Shay, 2002). Alguns trabalhos qualitativos encontraram verbalizações referentes à percepção dos ex-combatentes como um grupo social distinto e uma sobrecarga para os outros que foram atribuídos à manutenção do sentimento de alienação social (Ajdukovic et al., 2013; Brenner et al., 2008; Bryan, Cukrowicz, West, & Morrow, 2010). A percepção de alienação social era uma variável mediadora da relação entre o nível de exposição ao combate e a severidade dos sintomas de PSPT (Fontana & Rosenheck, 1998). Alguns trabalhos qualitativos junto de ex-combatentes da GCP com diagnóstico de PSPT, identificaram verbalizações de processos similares, extraindo temas de abandono social, revolta e falta de apoio do Estado Português (Campos, 2008; Começanha, 2011; Pereira, 2012). A percepção de atitudes negativas da sociedade e do Estado relativamente aos ex-combatentes era itensificada pela atribuição de que tanto as experiências traumáticas, como as consequências psicológicas dessas experiências, tinham ocorrido em defesa da Pátria (Pereira, 2012). O abandono e a falta de apoio do Estado eram percepcionados como um processo de desmentido e negação da experiência que prejudicava o trabalho de transformação e significação dessas experiências (Campos, 2008; Pereira, 2012).

Desta forma, as dificuldades de adaptação social após o regresso do TO originam um dano na identidade dos ex-combatentes (Maedl et al., 2010; Osran et al., 2010). Alguns trabalhos qualitativos encontraram uma interacção entre o dano na identidade e a percepção de fraco suporte social (Brenner, 2008; Tsai et al., 2012). De igual modo, a percepção de fraco suporte social estava positivamente associada a maior severidade dos sintomas da PSPT e dificuldades na recuperação da PSPT (Besser & Neria, 2012; Erbes et al., 2012; Fontana & Rosenheck, 1998; Jakupcak et al., 2010; Pietrzak et al., 2010) e sintomas depressivos (Pietrzak et al., 2010). Em ex-combatentes da GCP, foi encontrada uma associação positiva entre a percepção de menor apoio social com maior severidade de sintomas de PSPT e menor utilização dos serviços de saúde (Começanha & Maia, 2011).

Desta forma, as evidências da investigação sugerem a ocorrência dum efeito bidireccional entre a percepção de suporte social e a severidade dos sintomas da PSPT. Por um lado, o agravamento da severidade dos sintomas da PSPT origina a percepção da redução de suporte social, ao mesmo tempo que a percepção de reduzido suporte social intensifica os sentimentos de insegurança e ameaça que contribuem para o agravamento dos sintomas pós-

traumáticos (Allen, 2005; Brenner et al., 2008; Scaer, 2007; Stein, 2007; Tsai et al., 2012). De acordo com alguns autores, a interacção entre estas duas variáveis poderá auxiliar na compreensão da dificuldade sentida por muitos ex-combatentes em beneficiarem do suporte social no coping dos sintomas (Jakupcak et al, 2010; Nadelson, 1992; Solomon & Mikulincer, 1990).

As observações clínicas de ex-combatentes identificaram resistência em procurarem ajuda devido a crenças de fraqueza pessoal (Carr, 2011; Kudler & Straits-Tröster, 2009). A demonstração de dor ou reconhecimento da presença de perturbação psicológica era percepcionada como um sinal de fraqueza pessoal que contribuía para o predomínio da resolução individual dos problemas (Osran et al., 2010; Sayer et al., 2009). Em resultado, o dano no sentimento de pertença ao grupo e/ou comunidade origina a substituição da empatia pelo egocentrismo, a percepção das relações de intimidade como uma intrusão ou exploração, e a transformação da capacidade de cuidar dos outros em negligência (Varvin & Rosenbaum, 2003).

A percepção da incompreensão do sofrimento psicológico pelos outros origina a percepção de apenas serem compreendidos por antigos camaradas e/ou inimigos (Bragin, 2010, 2011). Este processo foi identificado na investigação qualitativa onde foram encontradas verbalizações referentes à insegurança nos vínculos com os outros e à percepção de fraco suporte social como factores atribuídos ao estabelecimento de relações de proximidade apenas com ex-camaradas (Osran et al., 2010). Ainda que o suporte de ex- camaradas pareça ter um efeito benéfico na redução de sintomas pós-traumáticos e na restauração do sentimento de ligação aos outros (Ajdukovic et al., 2013; Kilshaw, 2004), o suporte social dos camaradas poderá acentuar a desligação e a alienação social relativamente à vida civil (Brenner et al., 2008; Burnell et al., 2006).

Deste modo, o restabelecimento de relações de intimidade parece ser nuclear no ajustamento psicossocial dos ex-combatentes (Tsai et al., 2012; Vasterling et al., 2011). A percepção de vínculos sociais tinha um efeito benéfico na redução de sintomas de PSPT (Fontana, Rosenheck, & Horvath, 1997; Kimhi & Eshel, 2009). Em ex-combatentes da GCP, a percepção de compreensão das famílias foi descrito como um factor de apaziguamento de sentimentos de culpa e mal-estar (Pereira, 2012). Este processo foi estudado nalguns trabalhos que observaram uma associação positiva entre vínculos sociais positivos com maior estabilidade emocional e eficácia no coping dos sintomas pós-traumáticos (Balderrama- Durbin et al., 2013; Lee, Sudom, & McCreary, 2011; Pietrzak & Cook, 2013). Deste modo, o

restabelecimento de vínculos seguros e a percepção de suporte social promovem a percepção de mais recursos internos, auto-estima e a percepção de controlo dos stressores (Ajdukovic et al., 2013; Bartone, 2005; Lee et al., 2011).