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2. Perturbação psicológica em ex-combatentes

2.3. Memória

A literatura tem salientado que o restabelecimento de vínculos sociais e a percepção de suporte social eram factores facilitadores da recordação de experiências traumáticas em ex- combatentes (Balderrama-Durbin et al., 2013; Hautamäki & Coleman, 2001; Rosenblum, 2009). A recordação e o relato de acontecimentos traumáticos foram propostos como factores nucleares na criação duma representação coerente e organizada do acontecimento traumático e na reorganização da identidade pessoal do indivíduo (Amir, Stafford, Freshman, & Foa, 1998; Demers, 2011; Palgi & Ben-Ezra, 2010). Este processo depende da organização da experiência numa memória autobiográfica coerente com a integração do acontecimento na estória de vida do indivíduo (Beaudreau, 2007; Hautamäki & Coleman, 2001; van der Kolk, 1989).

Porém, as memórias de acontecimentos traumáticos podem apresentar ausência de organização e coerência (Bohleber, 2007; Foa & Riggs, 1993; Ornstein, 2003; Palgi & Ben- Ezra, 2010). Esta característica conjuntamente com o facto da maioria dos sintomas da PSPT estarem associados ao funcionamento da memória e à forma como o acontecimento traumático é processado, conduziu alguns autores a proporem a PSPT como uma perturbação da memória (Brewin, 2003; MCNally, 2003; van der Kolk, 2007). Desta forma, concordamos com Grey e Holmes (2008) quando sugerem que as psicoterapias focadas no trauma sejam consideradas como psicoterapias focadas na memória em virtude do foco na memória do trauma por parte do paciente e do terapeuta.

Neste sentido, as evidências proveninentes das neurociências salientam que os acontecimentos traumáticos ou de violência extrema são processados pelo cérebro de forma distinta comparativamente a outros tipos de acontecimentos (Schore, 2003; Siegel, 1999). A informação dos acontecimentos traumáticos é maioritariamente codificada e recuperada em memórias implícitas ou não-declarativas (LeDoux, 1992; Tulving, 1985). Como resultado, verifica-se o predomínio da reactivação de respostas emocionais e/ou sensações somato- sensoriais associadas à experiência traumática (Berntsen, Willert, & Rubin, 2003; LeDoux, 1992; Tulving, 1985; van der Kolk, 1999, 2000; van der Kolk & Fisler, 1995).

Um conjunto de trabalhos verificou esta proposição ao observar que a recordação de experiências traumáticas da guerra ocorria predominantemente em modalidades somato- sensoriais (e.g., sensações somáticas, estados afectivos, imagens) associadas aos acontecimentos (Horowitz, 1992, 1998; van der Hart, Brown, & Graafland, 1999; van der Kolk, 1999; van der Kolk & Fisler, 1995). Leuzinger-Bohleber (2008) denominou estas recordações como memórias corporificadas (embodied memories) caracterizadas pela reactivação das sensações corporais, afectos e fantasias vividas durante a traumatização. O processamento, armazenamento e a recuperação da informação numa memória implícita foi propostas como originando a desorganização das narrativas do acontecimento traumático (Amir et al., 1998; Bedard-Gilligan & Zoellner, 2012; Bucci, 2003; Burnell et al., 2006; Foa & Riggs, 1993).

A fragmentação das memórias traumáticas foi proposta como originando a sua dissociação relativamente às memórias doutros acontecimentos (Bohleber, 2007; Freud, 1895; Janet, 1889; Simmel, 1921). Este processo manifesta-se na amnesia, total ou parcial, ou na distorção de detalhes do acontecimento traumático (van der Hart et al., 1999; van der Kolk & Fisler, 1995). Um conjunto de trabalhos encontraram maior severidade de sintomas dissociativos em ex-combatentes com diagnóstico de PSPT (Kulkarni, Porter, & Rauch, 2012; Zerach, Greene, Ginzburg, & Solomon, 2014), e uma associação positiva entre sintomas dissociativos e sintomas da PSPT (Lynch, Forman, Mendelsohn, & Herman, 2008; Vukšić- Mihaljević et al., 2000; Waelde, Silvern, & Fairbank, 2005). Estes resultados sugerem que a dissociação do Self poderá ser causada tanto pelo agravamento da PSPT, como a manutenção da dissociação do Self poderá conduzir ao agravamento dos sintomas da PSPT (Carlson, Dalenberg, & McDade-Montez, 2012; Freud, 1895; Janet, 1889).

A dissociação do Self prejudica a integração das percepções, sentimentos e pensamentos associados à traumatização na identidade do indivíduo (Bucci, 2003; Herman, 1992; Horowitz, 1992, 1998; Nash, 2007b), originando o dano na coerência e continuidade do Self (Bedard-Gilligan & Zoellner, 2012; Hurvich, 2000). O indivíduo revela dificuldades em compreender a experiência (Boulanger, 2002a; Rosenblum, 2009), intensificando a percepção da descrença tanto do próprio, como dos outros, acerca da veracidade do acontecimento (Auerhahn & Peskin, 2003). Por outro lado, o prejuízo na integração da informação associada ao acontecimento traumático na representação global do Self origina a oscilação entre memórias intrusivas vívidas e a omissão das memórias do acontecimento traumático (Herman, 1992; Horowitz, 1992; van der Kolk & Fisler, 1995). O indivíduo é confrontado

com o fenómeno paradoxal da incapacidade em recordar detalhes do acontecimento e a incapacidade em esquecer impressões associadas à experiência traumática (Berntsen et al., 2003; Gerson, 2009; Palgi & Ben-Ezra, 2010).

As memórias intrusivas da traumatização são percepcionadas como recordações precisas do acontecimento traumático (Berntsen et al., 2003; Bohleber, 2007; Horowitz, 1992, 1998; Oliner, 2000; van der Kolk & Fisler, 1995). Alguns autores propuseram que estas memórias constituem formações de compromisso com imagens mais aceitáveis acerca do acontecimento que protegem da ansiedade originada pela recordação da experiência (Blum, 2003; Brown, 2006). Porém, a natureza somato-sensorial das memórias prejudica a organização temporal dessas experiências (Auerhahn & Peskin, 2003; Zornig & Levy, 2011), conduzindo igualmente, a desorganização temporal das memórias doutros acontecimentos de vida (Boulanger, 2002b; Varvin, 2003).

Deste modo, a desorganização temporal da experiência contribui para a ruptura do sentimento de continuidade do Self (Bedard-Gilligan & Zoellner, 2012; Varvin & Rosenbaum, 2003). Este processo poderá manifestar-se na amnésia de períodos anteriores à traumatização e na hipermnésisa da traumatização de guerra (van der Hart et al., 1999; van der Kolk, 1999; Wexler, 1972). A ausência de recordações do passado pré-traumático seguro foi atribuída à sua dissolução nas imagens da destruição da guerra (Auerhahn & Laub, 1984; Blum, 2003; Kaplan & Laub, 2009; Moore, 2009). Como resultado, as memórias de acontecimentos traumáticos de guerra formam pontos de referência na atribuição de significado a outros acontecimentos da estória de vida (Berntsen et al., 2003; Bohleber, 2007; Pereira, 2012). Em suma, os trabalhos clínicos e de investigação junto desta população sugerem que o processamento das memórias de acontecimentos traumáticos afecta tanto a manutenção, como a recuperação, da perturbação mental associada à traumatização de guerra.

2.4.Representação do Self e representação das relações de objecto