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As significações de um texto, ou melhor dizendo, uma entrevista semiestruturada transcrita, se situam no encontro de dois horizontes, o do sujeito entrevistado e o do analista. O que se deve considerar neste caso, é que cada sujeito possui sua zona de percepção e interpretação e por isso, cada um terá uma leitura/significado diferente devido ao fato de relacionarem o que leram a horizontes semânticos distintos.

O que está além do horizonte do analista não pode ser percebido por ele. É a razão pela qual, como eu próprio constatei, um psicanalista e um sociólogo lerão significações diferentes, porque relacionarão o que lerem a horizontes semânticos diferentes. [...] Da mesma maneira, quanto mais rica for a cultura sociográfica, sociológica e histórica de um leitor sociólogo, mais largo é seu horizonte, mais capacidade ele terá de perceber em uma entrevista biográfica os traços ainda incipientes de processos sociais. Verifica-se isso facilmente, voltando, no final de uma pesquisa, à primeira entrevista, na qual certamente serão descobertas significações passadas despercebidas no início. (BERTAUX, 2010, p. 107).

Deste modo, ao analisar as entrevistas semiestruturadas – já transcritas – para identificar as abordagens pertinentes para esta pesquisa doutoral, esclareço que utilizarei o método hermenêutico de interpretação. Os modelos de compreensão desenvolvidos na Alemanha nas ciências históricas têm por característica interpretar a experiência individual, a experiência de vida e de existência. Assim, a hermenêutica se caracteriza da seguinte forma:

O círculo hermenêutico define o movimento do sentido tal como ele nasce das relações das partes para o todo e do todo para as partes: como as palavras ganham seu sentido nas frases que compõem, a significação de uma parte do texto nasce das relações internas que ela mantém com todas as outras partes na consideração do todo (contextus) e do sentido unitário visado pelo todo (scopus). A hermenêutica consiste na arte (kunstlehre) de clarear a rede dinâmica dessas relações e de interpretá-las em si mesmas, em sua circularidade interna, sem apelar para um princípio de leitura exterior (o dogma para os textos sagrados, tal ou tal a priori educativo para os textos clássicos). Uma primeira ampliação desse modelo foi realizada no século XVIII na esteira dos estudos históricos quando se reconheceu que, para serem compreendidos, os documentos escritos deviam ser submetidos não somente a uma interpretação filológica, mas também histórica, e que convinha a partir daí estender a noção de contexto ao conjunto da realidade histórica à qual eles pertencem. (DELORY-MOMBERGER, 2014, p. 205-206).

Ao pesquisar sobre a hermenêutica, é possível verificar que Schlermacher foi um dos principais autores que mais trouxe contribuições para compreender as implicações que definem e discutem este tema. Foi este autor quem propôs que ao discutir sobre a hermenêutica histórica as reflexões consistem “num deslocamento dos conteúdos submetidos à compreensão para o próprio problema do compreender”, explica Delory-Momberger (2014, p. 207). Essa autora também afirma que a questão da interpretação passa pelo âmbito psicológico e assim, corrobora para o processo de compreensão. “O que deve ser compreendido, pois, não é mais somente a forma do texto e seu sentido objetivo, mas sim a individualidade daquele que fala ou que escreve”, esclarece Delory-Momberger (2014, p. 207).

Discípulo de Schleiermacher e aluno de Ranke, Wilhelm Dilthey foi quem ampliou os estudos sobre a compreensão e propôs reflexão sobre a teoria do compreender. Delory- Momberger (2014) explica que para Dilthey (1997) é na experiência de suas próprias vivências que o homem reúne as condições para compreender o campo de realidade a partir do qual pode ser construído o conhecimento da vida. “O indivíduo, mesmo considerado em sua existência particular, é um ser historial. Ele é definido por sua posição no tempo, sua localização no espaço, seu lugar nos conjuntos interativos que constituem os sistemas culturais e coletivos aos quais pertence”, explica Dilthey apud Delory-Momberger (2014, p. 212).

Assim, interpretar a vida a partir de vivências e experiências me faz compreender que o homem é antes de tudo um ser carregado de encontros, caminhos cruzados, ou mais precisamente: um sistema de relações não só com o tempo, com os lugares, mas com o coletivo, ou seja, todo um universo que configura em relações interpessoais que caminham ao encontro daquilo que se pode considerar como uma relação vital com o Eu e com o ser-no-mundo. Deste modo, “cada experiência vivida singular [...] está ligada a um conjunto estruturado, do qual ela constitui uma parte; em tudo o que diz respeito ao mundo humano, nós encontramos tais conjunto estruturados; assim a estrutura é uma categoria que surge da vida”, assevera Dilthey (1997) apud Delory-Momberger (2014, p. 213).

Esse processo de se relacionar com lugares, pessoas, o tempo, enfim, está ligado as relações interativas das partes com o todo e do todo com as partes e, assim, ao comunicar, o homem busca dar sentido na mensagem que pretende enviar, estabelecendo tramas de relações: “assim as palavras adquirem seu sentido na frase, a frase, no ato da fala, este, na situação de comunicação, esta, na estrutura última produtora de sentido, reagindo por sua vez, aos poucos, até ao sentido das palavras na mensagem”, conclui Delory-Momberger (2014, p. 215).

A articulação da vida, da expressão e do compreender [...] é o processo pelo qual a vida se ilumina a si mesma em suas profundezas, e nós só nos compreendemos a nós mesmos e aos outros transpondo nossa experiência da vida em todas as formas de expressão que ela pode assumir, as nossas e as dos outros. Assim, em todos os domínios, a articulação da experiência vivida, da expressão e do compreender é o processo específico pelo qual a humanidade se constitui para nós como objeto de conhecimento científico [...] Uma ciência só pertence às ciências humanas se seu objeto nos é acessível pelo método fundamentado na articulação da vida, da expressão e da compreensão. (DILTHEY apud DELORY-MOMBERGER, 2014, p. 216-217).

A compreensão que se desenvolve a partir da experiência vivida possibilita ao pesquisador a capacidade epistemológica de aderir a sentidos distintos que os seus e, por meio do ato de re-viver, de reconstruir as relações significantes particulares a seu objeto de estudo, o pesquisador é capaz de praticar sobre si mesmo o princípio do conhecimento histórico.

Delory-Momberger (2014) explica que Dilthey (1997) volta-se em suas reflexões para discutir sobre a maneira como o homem se apropria de sua própria vida para dar-lhe uma forma e um sentido. Ao transformar essa apreensão significante em uma unidade de um conjunto estruturalmente ligado, faz da vida vivida tramas do seu próprio curso de vida.

O curso da vida se compõe de partes, de experiências, que mantêm uma articulação interna umas com as outras. [...] Não é porque a própria vida constitui um conjunto estruturado, no qual as experiências vividas podem ser relacionadas umas com as outras, que a estrutura da vida nos é dada. (DILTHEY apud DELORY-MOMBERGER, 2014, p. 218).

Delory-Momberger (2014) explica que o processo de estruturação da vida é submetido a dois tipos de categorias, são elas: temporalidade e significação. O homem está ligado a um passado e também a um futuro e, assim, o que é possível depreender é que cada experiência encontra seu lugar e passa a ter sentido no âmbito da forma construída sob a qual o homem se representa a partir do próprio curso de sua vida. Já a categoria de significação configura-se estreitamente ligada a essa representação da vida como totalidade, igualmente se constrói no trabalho da lembrança.

A categoria de significação designa a relação das partes da vida com o todo, que é baseado na essência da vida. Nós estabelecemos essa articulação exclusivamente por meio da lembrança pela qual podemos abarcar o curso passado da vida. A significação se manifesta aqui como a forma sob a qual a vida é apreendida. Percebemos a significação de um momento passado: nele, através dos atos de nossa vida ou através de um acontecimento exterior, realizou-se um elo com nosso futuro; ou então nós fizemos projetos que empenhavam a conduta de nossa vida futura; [...] Em todos esses casos e em muitos outros, um momento singular possui uma significação através de sua

relação com o todo, através da relação com o passado e com o futuro, com a existência individual e com a humanidade. (DILTHEY apud DELORY- MOMBERGER, 2014, p. 218).

Portanto, cada vida possui um sentido que lhe é próprio e que se constitui num conjunto de relações significantes, no qual cada momento suscetível de ser rememorado possui seu valor particular, mas apresenta ao mesmo tempo, em sua relação com a lembrança, uma relação com o significado da totalidade. Assim, ao ouvir as narrativas de histórias a respeito das práticas pedagógicas gamificadas meu caminhar deverá ser atento a todas essas relações de sentido que abarcam a lembrança daquele que narra sua experiência.