• Nenhum resultado encontrado

1.1 Pensamento de Raymond Aron sobre guerra e política

1.1.1 Considerações de Aron sobre Maquiavel

Aron considera a obra de Maquiavel O príncipe7um dos mais importantes textos de literatura política, razão pela qual incentiva inúmeras discussões sobre as intenções de Maquiavel com esta obra e sobre os seus verdadeiros sentidos. Esse livro é considerado por Aron como a própria imagem da dialética, porque sempre retorna ao princípio quando tenta responder às questões, por ele apontadas: “O que quer dizer Maquiavel? A quem ele quer dar as lições, ao rei ou ao povo? Ao lado de quem ele se posiciona? Ao lado dos tiranos ou dos republicanos? Ou nem de um nem do outro?”.8

Maquiavel dedica-se à observação dos tipos de estados e dos gêneros de classes social, a partir da qual chega às conclusões que fundamentam as leis por ele propostas, consideradas por Aron como científicas e não morais. Daí por que afirma: Maquiavel é o

fundador da ciência política.9 Maquiavel valoriza a história e o passado; considera que os

grandes feitos políticos e militares, acontecidos no decorrer dos tempos, deveriam ser analisados como formas para se evitarem futuros enganos. A história é vista por ele como uma fonte de aprendizado.

Maquiavel analisa a realidade e os acontecimentos políticos, colocando na origem da formação política, as paixões humanas, a vontade do homem. Como bem afirma Aron:

6ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Brasília: UnB, 1986. 7MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Rio de Janeiro: Ediouro, 1986.

8ARON, Raymond. Prefácio. In: MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Paris: Gallimard, 1962. p. 5. 9id., ib., p. 7.

“a identidade das paixões humanas é a idéia decisiva, é ela que assegura a existência de uma natureza política (...) ou de um ‘determinismo político’ que a ciência analisa e sobre a qual se funda o ato prático”.10 Aron, em suas reflexões, apresenta o homem como um ser imutável, em um estado de conservadorismo permanente: l´homme ne change pas 11. Por essa razão, defende o determinismo político; não acredita na mudança de comportamento do homem e não desacredita na teoria da prevalência das paixões humanas.

Para Aron, o pensamento de Maquiavel, além realista, é racionalista; parte da análise racional dos feitos ocorridos na realidade para formular conselhos de virtude que possam conduzir o homem por caminhos mais seguros. Aron salienta, entre os defeitos humanos, a preguiça e a cegueira, que impedem o indivíduo de perceber o perigo iminente. Referindo-se a Maquiavel, diz:

Ele é realista no senso que ele parte dos feitos, mas ele é mais racionalista ainda que realista, porque ele sempre se esforça em restabelecer a desordem dos eventos a uniformidades inteligentes, e regulariza em conselhos prudentes as regularidades observadas.12

Mas Maquiavel é contrário à repetição de condutas do passado: mesmo que os eventos, as desordens, os acertos e os erros de antigos governantes se repitam, ele não admite a imitação dos feitos anteriores, porque, em sua concepção, cada estado deve trilhar seu próprio caminho, de acordo com o seu tempo, cujos homens e valores são distintos dos de outras épocas. Pensa também que as circunstâncias, os confrontos, os interesses e as necessidades do príncipe na atualidade não seriam os mesmos que as dos príncipes de antanho, pois os fatos ocorrem em circunstâncias diferentes e com agentes diferentes.

É, nessa perspectiva, que Maquiavel escreve as obras O príncipe e A arte da

guerra13, que tanta inovação trazem à literatura política: a partir das experiências das

guerras passadas, ele confere uma nova conotação à arte de guerrear e também à ordenação militar. O novo em Maquiavel não reside no valor por ele atribuído à ciência da guerra, mas na maneira como ele transcende o valor do exército, do comandante, do soldado, das leis e da virtude, percebendo o grau de relatividade existente entre a guerra e a política.

10ARON, Raymond. Maquiavel et les tyrannies modernes. Paris: Fallois, 1993. p. 63. (grifos do autor). 11id., ib., p. 63.

12id., ib.

Aron compartilha da defesa dessa noção de relatividade existente entre guerra e paz e também de outras idéias de Maquiavel. Daí por que é perfeitamente reconhecível a influência das idéias desse teórico italiano sobre o pensamento de Aron, dentre as quais se cita a valorização da indústria no campo militar. Como afirma Aron: “não há um grande exército moderno sem uma grande indústria”.14 Maquiavel acredita que as cidades ou estados podem ser protegidos graças à evolução da indústria, que, em seu tempo, correspondia, em grande parte, ao desenvolvimento da engenharia. Como ele bem aponta: “a primeira indústria é fazer as muralhas retorcidas e cheias de curvas e recessos”.15

Para Maquiavel, os seres humanos não são totalmente bons ou maus, mas providos de virtudes que os capacitam a agir como homens de bem. Maquiavel aproxima o poder político do militar. Pensa o político e o militar como forças homólogas, pois um estado não se pode prover apenas com leis, mesmo que sejam boas leis. Segundo afirmação sua, um estado precisa de armas:

E como não podem existir boas leis onde não há boas armas, e onde há boas armas convém que existam boas leis, referir-me-ei apenas às armas. (...) A experiência ensina que os príncipes, agindo por si mesmos e as repúblicas armadas alcançam grandes progressos, ao passo que as armas mercenárias só causam danos.16

O diferencial no pensamento de Maquiavel reside exatamente na maneira como aprofunda suas concepções, para chegar à conclusão de que a guerra é a política e a política é a guerra. Da guerra depende a permanência de determinado poder político ou não, sendo ela própria uma atividade política. Daí por que, como aconselha Maquiavel, a preocupação maior do governante deve ser com a guerra, mesmo em tempos de paz: “Um príncipe deve, pois, não deixar nunca de se preocupar com a arte da guerra e praticá-la na paz ainda mais mesmo que na guerra e isto pode ser conseguido por duas formas: pela ação ou apenas pelo pensamento”.17

Maquiavel, dessa forma, propõe uma moderna teoria político-militar, na qual a força militar é um instrumento de estado que se vai adequar aos desígnios políticos. O militar está diretamente relacionado ao político. Como bem elucida Obino: “A doutrina de

14ARON, op. cit. nota 1, p. 119.

15MAQUIAVEL, op. cit. nota 13, p. 195. 16MAQUIAVEL, op. cit. nota 7, p. 75-77. 17id., ib., p. 87.

Maquiavel ainda comporta um outro ponto relacionado com o poder, que é a razão de Estado. Ela traduz a norma de ação política dos homens de governo”.18 Como, em sua concepção, o exército obedece à razão de estado, ele não pode ser composto por homens que visam ao lucro, mas por fiéis adeptos do rei.

Maquiavel defende o exército ordenado que luta pela glória, e critica o exército mercenário, que combate por ambição.19 Para ele, os bons homens valem mais que a

fortuna, e, acima de qualquer interesse material, está o bom e fiel soldado. Maquiavel ressalta a importância da moral do soldado e afirma mesmo que a qualidade do guerreiro supera o alcance das boas armas. Acredita que, para se ter um exército bem ordenado, o comandante tem um papel relevante: deve ministrar técnicas de guerra, identificar a natureza dos combates, conhecer geograficamente a área de conflito e disciplinar seus homens.

O estudioso italiano pensa que tanto os homens do meio civil, quanto os homens do meio militar possuem as mesmas necessidades, paixões e desejos. O indivíduo político, ao pretender representar o povo em cargo público, precisa ter boa oratória para convencer e persuadir àqueles que ele representa e a terceiros, que podem dificultar sua conquista. Esse mesmo fenômeno ocorre no meio militar com os indivíduos que combatem.

Mas, entre os militares, o poder da oratória tem como finalidade a manutenção dos homens unidos e disciplinados em prol de uma mesma causa. Em razão disso, a oratória do comandante torna-se elemento imprescindível para a coesão da tropa. Como afirma Maquiavel: “(...) os excelentes capitães precisavam ser oradores, porque quem não souber falar a todo o exército não poderá realizar boas coisas a não ser com grande dificuldade”.20 O dirigente militar tem que saber entender e falar na perspectiva do soldado. Com essa qualidade de orador, o comandante pratica um ato político, relativizando as fronteiras entre guerra e política.

Maquiavel acredita que a maneira mais viável de defesa e manutenção de um estado independente, é uma poderosa força militar. “Nenhum Estado, portanto, pode sustentar-se

18OBINO, José Luiz Feio. O pensamento de Maquiavel. A Defesa Nacional, Rio de Janeiro, n. 714, p. 77-87, jul./ago. 1984.

19MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 132.

sem um Exército”.21 Aliás, é devido a essa preocupação que Maquiavel passa a ser

considerado um pensador militar moderno, que, fundado em ensinamentos do passado, constrói, a partir deles, uma nova perspectiva de análise a respeito do poder político e militar, apontando para a inexistência de limites precisos entre o campo militar e o político, pois qualquer desses poderes só age e atinge sua plenitude com a presença do outro.