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De acordo com Martins, a cultura é dinâmica e inclui ação, formação e transformação. As idéias são as diretrizes do sujeito; elas interpretam o passado, explicam o presente e projetam o futuro. O campo cultural é constituído pelas idéias que elaboram os argumentos racionais, sendo fatores culturais que influenciam as políticas e os comportamentos.24

Para se construir uma identidade, é necessário que exista a memória cultural, pois, segundo Martins, “a cultura é um elemento constitutivo da condição humana”.25 O nacionalismo cultural consolida-se como forma ideológica, tornando a identidade cultural um mecanismo de controle do estado. A instrução é, sem dúvida nenhuma, um instrumento político que, colocado a serviço do estado, atravessa fronteiras.

A sociedade estrutura-se, tomando como referência essa identidade cultural, constituída por valores afins, tais como tradições, hábitos e costumes, enfim, por tudo aquilo que faz dos indivíduos parte integrante de uma nação, que aponta para o que eles têm em comum, e possibilita com que eles se identifiquem reciprocamente. Nessa perspectiva, a diferença sempre representa uma ameaça, razão pela qual a cultura não a admite. Os indivíduos nascem no interior de uma cultura, transmitida de geração para geração: estão, pois, imersos nessa cultura, bem como na língua que a traduz e expressa.26 Dessa forma, a latinidade age como fator de união dos interesses, sustentando o vínculo cultural entre a França e a América Latina.

Mas, embora o indivíduo exista em uma sociedade, ele pode aprender valores diferentes. De acordo com classificação de Reboullet, a cultura pode ser existencial ou conceitual. “A cultura ensinada é essencialmente uma cultura ausente, porque o ensino é

23 LESSA, Mônica. A dimensão cultural das Relações internacionais França-Brasil entre 1886-1934. In: BRANCATO, Sandra Maria Lubisco (org). III Simpósio Internacional: estados americanos, relações continentais e intercontinentais – 500 anos de história. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. p. 86.

24MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. Relações internacionais: cultura e poder. Brasília: IBRI, 2002. 25id., ib., p. 58.

realizado no seio da cultura própria do indivíduo”.27 É preciso considerar que o indivíduo,

ao nascer, recebe a cultura materna, mas que, posteriormente, lhe são ensinados valores advindos de outras instituições, tais como a escola e a universidade.

A cultura ensinada pode coincidir com a materna, ou operar por meio da aculturação, ou seja, pelo contato com uma cultura diferente da materna. Segundo Reboullet, a cultura, tanto a existencial, quanto a conceitual, é um processo que funciona em três níveis: como modelo, como código e como imagem.

O modelo cultural determina as regras de conduta a serem seguidas. A França, por exemplo, ao defender um modelo universalista, passa a atuar, como centro de difusão cultural. Os códigos culturais conduzem ao conhecimento, ao saber; decifrando-os, o indivíduo detém o domínio sobre determinada questão. Enquanto imagem, a cultura estabelece os sistemas de valores que pautam a ação de uma sociedade, grupo ou pessoa. Dito de outra forma, a imagem é o recorte da realidade, a partir do qual se estabelecem valores subjacentes às regras de convívio entre os membros de uma comunidade. De acordo com Reboullet28:

Indivíduo Cultura

Modelo Condutas

códigos conhecimento

imagem sistema de valores

O modelo cultural fornece a estrutura de conduta a ser seguida. Um modelo é desenvolvido e transmitido por intermédio de códigos que, quando decifrados, comprovam o grau de aprendizado do indivíduo. Identificados os códigos veiculadores do modelo, o passo seguinte é em direção à imagem, parte mais ampla do processo, pois ela se constitui em um sistema de valores; é ela quem define a noção de certo e errado que o indivíduo, em interação com o modelo, vai adotar.

A França, ao projetar o campo cultural francês como modelo universal, passa a defender sua posição: convoca valores comuns de latinidade para intervir junto aos países latinos, pois essa pretensão de similaridade facilitaria a assimilação cultural. Nesse tipo de processo, o país preponderante repassa sua cultura aos países menos favorecidos, utilizando como sustentação os traços em comum entre as culturas; a convocação desses traços é empregada como justificativa plausível para a expansão cultural. Ora, essa expansão vem

27REBOULLET, op. cit. nota 26, p. 34. 28id., ib., p. 33.

sempre acompanhada de comércio e de produção cultural. Como elucida Coelho: “o sistema que melhor da conta da questão cultural quando o que está em jogo é uma política cultural é o sistema de produção cultural”.29

A política externa da França nos anos 20/30 volta-se então para uma expansão cultural, que se desenvolve pela ação dos agentes culturais, a serviço do estado. O que esses agentes fazem é ministrar cursos, conferências e aulas, impregnadas de propaganda que enaltece escritores, literatos, cientistas, e produtos franceses. Trata-se de uma propaganda sutil, utilizada no cotidiano, para dar prosseguimento às disciplinas. De acordo com Doka, constitui-se em uma maneira bastante profícua de conquista do mercado:

A propaganda cultural é a propaganda a longo termo, tem por conseqüência, si ela cumpriu sua missão, uma estima durável, uma consideração durável, uma durável simpatia. Ela acumula um capital de confiança onde o retorno é incalculável; ela fará seu trabalho em circunstâncias imprevisíveis e, por conseqüência, em situações críticas.30

O acordo cultural repousa nas relações diretas entre os indivíduos; diz respeito ao contato direto da cultura de uma dada comunidade com a de outra comunidade. Inicialmente, essa troca de conhecimentos efetiva-se no interior de um pequeno grupo, pertencente à elite local, abrangendo os domínios técnicos, científicos, políticos, econômicos e culturais.

A relação cultural está intrinsecamente ligada à diplomática, e, embora os países que efetuem essa permuta cultural não mantenham, necessariamente, um elevado diálogo diplomático, essa interação se realiza por meio da expansão cultural, que não escapa ao domínio da diplomacia. Logicamente, quando um país coloca sua elite intelectual no exterior com uma tarefa explícita de difusão cultural, está esperando, em troca, algo bastante sólido: não apenas admiração, ensino de sua língua ou respeito a outros valores morais, mas também a exportação de bens culturais e, o mais importante, a continuidade desse mercado. Conforme Dollot:

As grandes potências culturais (...) tem uma verdadeira política de relações culturais apoiados sobre princípios e conduzidos em direções precisas. Planos de ação e de reconversão, escolhas fundamentais, formação de quadros

29 COELHO, Teixeira. Guerras culturais: arte e política nos novecentos tardio. São Paulo: Ilumineiras, 2000. p. 129.

especializados, ajuda financeira graduada e escalonada, tudo deve concorrer para a difusão cultural, ser organizado e dirigido de maneira metódica.31

Dollot deixa claro o alto nível de organização e precisão com que os membros do ministério francês dirigem a ação de seu país no exterior. Tanto de maneira bilateral, como multilateral, a cooperação e a expansão cultural é efetivada em diferentes níveis de organização: nas escolas, nas universidades, nos comitês, nas alianças francesas, entre outros, fornecendo as sementes necessárias para a transformação de jovens estrangeiros em conhecedores do mundo francófilo.

É importante, não obstante, perceber que toda essa ação planejada pela França conta com a anuência dos países submetidos à ação dos agentes culturais: eles desejam acolher essas missões universitárias, bem como todos os outros meios de propagação cultural francesa. Aliás, esse tipo de projeto só é viável com a concordância do país que recebe essa influência, e principalmente, com o aval da comunidade-alvo dessa ação político-cultural de assimilação de uma nova cultura. Não se trata apenas de uma prática ditatorial de estado, uma vez que ela acontece mediante o assentimento de todas as comunidades associadas, que almejam a concretização dos cursos, conferências, palestras, mostras e feiras.