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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No documento Índios e Terras Ceará: 1850-1880. (páginas 176-183)

Os povos indígenas que habitam a região Nordeste foram envolvidos, ao longo de séculos, em diferentes processos de integração populacional, territorialização e assimilação forçada, que os deixaram marcados por diferentes fluxos e tradições culturais.

O “desaparecimento” dos povos indígenas, no Ceará, propagado no decorrer da segunda metade do século XIX, está intrinsecamente relacionado a um plano político promovido pela história oficial, com o objetivo declarado de legitimar a desapropriação de suas terras. Logo após a regulamentação da Lei de Terras, em 1854, vários foram os atos do Governo Imperial ordenando que fossem extintos os aldeamentos e que vendessem suas terras ou as reaproveitassem de acordo com as orientações da dita Lei. Os argumentos que justificavam essas decisões eram quase sempre os mesmos: os aldeamentos eram considerados abandonados e, conseqüentemente, caracterizados como terrenos devolutos, cabendo ao governo vendê-los, aforá-los ou legitimá-los na posse particular (SILVA, 1996, p. 169).

As autoridades imperiais e provinciais visavam dinamizar a sua concepção integracionalista. Para isso tomavam medidas cada vez mais agressivas. Ao proceder com descaso e indiferença com relação aos povos indígenas, essas autoridades planejavam integrar arbitrariamente um contingente significativo de índios à sociedade nacional. Assim procedendo, deixariam as terras indígenas disponíveis para serem reaproveitadas de acordo com as diretrizes da nova política de terras.

Com a abolição definitiva das leis do Diretório foi também abolido o sistema de aldeamento. As medidas que legalizaram a inserção de estranhos nas terras indígenas também serviram para justificar o desmonte das aldeias, sob a alegativa de que esses índios não necessitam mais ser aldeados, em razão de se encontrarem confundidos na massa geral da população civilizada, e pelo fato de que parte das suas terras havia sido considerada devoluta, sendo, assim incorporadas ao patrimônio do Estado e dos particulares.

A negação do índio enquanto etnia diferente, construída pela história oficial durante a segunda metade do Século XIX, no Ceará, associa-se a um projeto

político que visava a apropriação do que restou das terras indígenas. Observa-se uma profunda falta de sintonia entre o que propagava o discurso oficial acerca dos índios e as informações fornecidas pelas fontes documentais. Da parte das autoridades competentes, há uma disposição para negar a presença forte de índios nos limites territoriais da Província do Ceará. Os documentos, por sua vez, apontam para a perspectiva de que ainda havia uma considerável presença indígena, muito embora, em função da violência cultural ao longo de séculos de colonização, esses povos se encontrassem destituídos de parte de suas formas de organização social.

A negação da condição étnica dos povos indígenas pode ser compreendida como uma estratégia cuja implementação resultaria na apropriação das terras dos índios. Observa-se, pois, uma tendência a um silenciamento oficial quanto ao reconhecimento étnico dos índios, no Ceará, tendência essa que será posteriormente revertida em decorrência da organização de movimentos sociais indígenas.

As autoridades nacionais e provinciais faziam o discurso da brandura. Contudo, as práticas de violência contra os índios predominavam, no período. Assim, não só muitos índios eram exterminados. Eliminava-se, também, boa parte das possibilidades de a sociedade brasileira, conjuntamente com os índios, construir um futuro melhor para os povos indígenas do Brasil.

A indisposição do governo central em legislar de modo favorável aos índios abria espaços para o surgimento de práticas cada vez mais abusivas em relação aos índios em contato com a sociedade “civilizada”. Foi em nome dessa política discriminatória e da indiferença no tocante a esses povos, que as Províncias foram, uma por uma, negando a presença indígena em seus territórios.

O processo de construção do “desaparecimento” dos povos indígenas, pelo Governo do Ceará, como venho afirmando na discussão desenvolvida nesta Tese, está associado ao processo de consolidação do pacto de adesão do Governo Imperial aos interesses das oligarquias regionais. Na Província do Ceará, enquanto os litígios entre nativos e fazendeiros locais atingiam patamares alarmantes, o Governo tratava insistentemente de não reconhecer a existência dos seus nativos.

Paradoxalmente a essa informação, a presença indígena é confirmada através das numerosas petições e reclamações, em decorrência dos permanentes

atritos entre índios e moradores circunvizinhos, motivados pela questão da terra. Esse é um momento crucial para os índios do Ceará: as autoridades provinciais passam a imprimir um caráter mais agressivo ao projeto de integração dos povos indígenas aldeados à sociedade regional.

À proporção em que as terras indígenas iam sendo ocupadas, quase sempre por vias ilegais, o máximo que os índios conseguiam assegurar, ainda assim de forma temporária, eram pequenos pedaços de terras que, com o passar do tempo, acabavam sendo completamente incorporados ao patrimônio dos particulares.

Isso ocorria de modo diferente com relação aos moradores não-índios. Mesmo agindo contrariamente às determinações das leis, ou seja, mesmo realizando suas posses através de atos considerados espúrios, esses moradores terminavam por contemplar seus interesses por meio das leis, quando eram promovidos da condição de invasores à condição de proprietários “legítimos” dessas terras.

Sendo assim, as práticas caracterizadas pelas permanentes invasões tinham diferentes sentidos e significados, conforme o ponto de vista fosse o dos fazendeiros ou o dos índios. Se, para os índios, as invasões se caracterizaram como um dos instrumentos mais violentos e eficazes de violação de suas vidas e de seus direitos patrimoniais, para os fazendeiros, amparados pelo poder político instituído na Província do Ceará, nesse período, as invasões constituíam o caminho mais curto para verem ampliados os seus já imensos latifúndios. Simultaneamente esses mesmos fazendeiros, através das Câmaras Municipais instaladas em suas respectivas vilas, exerciam uma forte pressão sobre o Poder Provincial, para a legitimação das porções de terras que sorrateiramente iam sendo incorporadas aos seus patrimônios.

No século XIX, as terras indígenas passaram a ser o alvo predileto de cobiça. Nesse sentido, como lembra Cunha (1996, p. 145), em sua análise sobre a legislação indigenista do século XIX, a questão indígena deste período deixou de ser essencialmente uma questão de mão-de-obra para se tornar uma questão de terras:

No século XIX, a política de acesso e valorização da terra submeteu as populações indígenas cearenses a um intenso processo de expropriação de suas

terras, em função dos interesses que se firmavam como dominantes no cenário político e econômico da época.

Apesar da insistência das autoridades provinciais em negar a existência de índios em seus territórios, a documentação analisada apontou na direção contrária: no período de 1850 a 1880 há uma efetiva presença indígena, resistindo bravamente à expulsão de suas terras e, conseqüentemente, a uma integração forçada à sociedade local.

A visão etnocêntrica extremada do europeu colonizador não lhe possibilitava compreender que qualquer sociedade organiza-se com base em suas práticas, costumes, crenças, leis, religião, deuses e nas suas formas de subsistência. O colonizador, com seu caráter dominador e arrogante, não reconhecia como “civilização” nenhuma sociedade que destoasse dos padrões culturais colonialistas metropolitanos.

O perfil da sociedade indígena diferenciava-se em extremo da sociedade européia. Os índios eram, então, qualificados como bárbaros, selvagens, verdadeiros animais que necessitavam urgentemente ser “civilizados” e transformados em vassalos a serviço de Deus e do Estado Português no Brasil.

O índio preservado em sua cultura não interessava às autoridades metropolitanas. Era necessário decompô-lo culturalmente para reconstruir em seu lugar outro “ser” que se adequasse às exigências da nova ordem econômica em ascensão no Velho Mundo. Assim, os missionários rejeitam tudo o que fosse emanado da cultura indígena45. No entanto, a fidelidade indígena à sua condição étnica constituiu uma considerável barreira para o trabalho dos missionários.

A literatura sobre a ocupação da Capitania do Ceará exibe um consenso segundo o qual essa Capitania somente começou a ser explorada econômica e efetivamente, a partir do final do século XVII, com a expansão da pecuária em direção às terras do sertão.

Segundo o discurso oficial, o processo de integração da população indígena aldeada à sociedade “civilizada”, que vinha sendo implementado pelos poderes oficiais desde o princípio da colonização no Brasil, teria supostamente se

45

Sobre o etnocentrismo europeu, ver TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1993.

consumado na segunda metade do século XIX. A análise documental aqui realizada aponta para outra perspectiva. No Ceará, ao invés de uma integração à sociedade regional, os índios foram “expulsos” de seus territórios, através de uma longa e violenta expropriação de terras.

Os mecanismos construídos e empregados na efetivação desse processo tiveram origem nas próprias leis que se propunham a proteger os índios. Esses mecanismos variaram conforme a conveniência e os interesses das elites dominantes nas localidades da Província.

A estratégia do Governo Provincial cearense foi afirmar repetidamente, nos documentos, o “desaparecimento” dos povos indígenas aldeados. Alegava-se que os remanescentes índios da Província encontravam-se civilizados e integrados à sociedade regional.

O mesmo governo que incentivou abertamente o estabelecimento de estranhos nas terras indígenas, lançou mão dessa prática para justificar uma aparente assimilação dos índios e, conseqüentemente, desapropriar as suas terras.

Essa decisão, tomada em conjunto pelos governos nacional e provincial, veio acirrar ainda mais a hostilidades no campo. Nesse período, tornaram-se numerosas as queixas e reclamações dos índios que denunciaram as arbitrariedades cometidas pelos moradores contra suas vidas e seu patrimônio. Diante dessa grave situação, o governo imperial, num dos raros momentos da nossa história, recua em suas decisões anteriores, e reconhece o pleno direito dos índios sobre suas terras. Entretanto, com o passar do tempo, constatou-se exatamente o contrário.

O patrimônio de aldeias indígenas havia sido usurpado, tanto pelos administradores inescrupulosos nomeados pelo próprio governo, através de contratos de arrendamentos, foros e vendas ilegais, como pelas sucessivas invasões encampadas pelos grandes fazendeiros locais. Esses territórios jamais foram reintegrados aos índios na sua totalidade. O máximo que estes conseguiram assegurar, e assim mesmo de forma temporária, foram pedaços de terras dentro de suas próprias propriedades.

Após a regulamentação da Lei de Terras em 1854, a questão das terras pertencentes aos índios agravou-se de forma acentuada. Um elenco significativo de ofícios, ordens e avisos foi expedido pelo Poder Central ao Governo do Ceará,

ordenando a demarcação das terras indígenas caracterizadas como devolutas, para que fossem aproveitadas de acordo com os critérios da referida Lei. Sempre com a mesma alegação de que não havia mais índios, apenas descendentes desses confundidos na população civilizada.

Enquanto as autoridades das províncias continuavam relutantes em não reconhecer a presença de índios identificáveis nas aldeias onde processou-se a demarcação de suas terras, os índios aparecem em várias petições registradas nesse período em confronto aberto contra os fazendeiros locais na missão quase impossível de tentar assegurar os últimos palmos de terra que lhes restaram. Nessa luta profundamente desigual, os índios que haviam conseguido sobreviver a sucessivos séculos de violência física e cultural, chegaram ao final do século XIX completamente expropriados de suas terras e de suas formas de organização social. Nesse sentido, considero a discussão oficial sob o suposto “desaparecimento” dos povos indígenas do Ceará, no correr da segunda metade do século XIX, um instrumento político elaborado pela elite dominante local, com o propósito deliberado de legitimar a desapropriação das terras dos índios aldeados e, ao mesmo tempo, forçá-los a integrarem a sociedade local como mão-de-obra. Numa sociedade em que a única relação de trabalho conhecida era a escravista, possivelmente o trabalho escravo era o que seria oferecido aos índios. Uma análise mais pontual das relações de trabalho, no Ceará, na segunda metade do Século XIX, constitui uma discussão complexa e merecedora de ser privilegiada por outros estudos, por se tratar de aspecto importante sobre a história do passado de nossos ancestrais.

As fontes analisadas sugerem que os argumentos utilizados pelo poder dominante no Ceará para justificar o “desaparecimento” dos índios assumem características de uma construção cuja costura, aparentemente contraditória, embora exiba, no entanto, coerência aos propósitos de apropriação das terras indígenas. Primeiramente, a suposta incorporação de outros valores culturais às tradicionais formas de organização social dos índios não anula a sua identidade étnica. Em segundo lugar, o índio não foi integrado à sociedade local em conseqüência de um sistemático processo de civilização. O que houve foi uma violenta devastação das terras indígenas, operada pelas políticas oficiais e pelas sucessivas invasões dos moradores. Essas invasões eram freqüentemente consentidas pelas autoridades oficiais responsáveis pela questão. Contudo, em

virtude da importância desta temática para a compreensão da História Indígena e do Indigenismo no Ceará, é necessário que outras pesquisas possam desencadear-se trazendo à tona discussões sobre aspectos pouco privilegiados pela literatura que trata dessa problemática.

O desafio de reconstruir a história do passado indígena no Ceará, no período delimitado por esta pesquisa, é uma tentativa de fazer com que o índio seja percebido como sujeito legítimo e transformador da nossa história, sob uma nova ótica de análise e interpretação, específica também na busca de uma compreensão da nossa história.

No documento Índios e Terras Ceará: 1850-1880. (páginas 176-183)